De entre os filmes produzidos na República Popular da China durante os “anos Mao”, Nü lan wu hao (Woman Basketball Player no. 5, 1957) será dos mais bem-dispostos. Não estando completamente fora da versão chinesa de realismo socialista que marcou os filmes do período, há elementos que não destoariam num filme de Hollywood – uma herança dos filmes de Xangai dos anos 1930s.
A sinopse de Nü lan wu hao poderia referir-se a um filme americano: Tian Zhenhua (Liu Qiong), um treinador que chega a Xangai para treinar uma equipa de basquetebol feminino, Lin Xiaojie (Cao Qiwei), uma promissora jogadora cuja mãe não quer que ela se dedique ao desporto, a mãe de Lin (Qin Yi), em tempos também jogadora de basquetebol mas que sofrera um desgosto de amor… causado pelo abandono de Tian, o seu namorado na altura e um talentoso jogador que é brutalmente agredido quando se recusa a perder um jogo combinado. Pelo meio há uma rivalidade entre Lin e outra rapariga da equipa e um conflito em relação à carreira: a mãe e o namorado de Lin querem que esta vá para a universidade estudar engenharia enquanto ela e o treinador preferem que vá estudar educação física.
Mas por entre esta trama, certamente pouco original aos nossos olhos de espectadores do século XXI, há toda uma imagem da “nova China” que é transmitida: um país grande, ordenado, pacífico, luminoso, com oportunidades. Um país desenvolvido, com comboios e aviões, um país com esperança no futuro: neste caso, no futuro em que a equipa representaria a China em competições internacionais. Nü lan wu hao é filho do seu tempo: pré-Grande Salto em Frente e pré-Revolução Cultural, está imbuído de uma aura esperançosa onde o sangue ainda não manchara demasiado o grande ecrã.
Esta imagem positiva é reforçada pelo uso de dois longos flashbacks, que recuam a acção para os anos 1930s, quando o treinador e a mãe de Lin eram jovens. A representação do período republicano como uma época de corrupção, desigualdade e opressão, não sendo tão dramática como noutros clássicos dos anos Mao, como Baimao nü (The White-Haired Girl, 1950) de Shui Hua ou Hongse niangzi jun (The Red Detachment of Women, 1960) de Xie Jin, não deixa de marcar presença, corporizado pela família da mãe de Lin Xiaojie e manifestado em contrastes na luz e nos décors usados para as representações do passado e do presente.
Embora não sendo dos mais explicitamente propagandísticos, Nü lan wu hao não deixa de apresentar marcas da variante chinesa realismo socialista que caracterizou a produção cinematográfica da China de Mao e que se pode descrever como uma combinação entre “realismo socialista” e “romantismo revolucionário”. O objectivo não era mostrar a realidade mas uma visão idealizada desta segundo a ideologia do partido e com vista a despoletar uma resposta emocional do espectadores.
Tal é perceptível em opções formais como o uso estratégico do grande-plano, por vezes extremo, normalmente acompanhado pelo “olhar de realismo socialista” de personagens centrais em poses irrealistas olhando o horizonte. Mais óbvios são as inserções de símbolos patrióticos, da bandeira aos equipamentos desportivos nacionais, passando pelo hino. A sua presença é comum a muitos outros filmes do período. O discurso que o treinador Tian dá sobre a necessidade da China triunfar no desporto como forma de afirmação internacional e fonte de orgulho nacional é particularmente enfático. As deixas sobre igualdade feminina são-no menos mas estão lá, apesar de permanecer a eterna contradição dos filmes de realismo socialista chineses: a emancipação feminina é concretizada pela acção experiente, dedicada e sapiente de um homem – neste caso o treinador.
No entanto, de Nü lan wu hao está ausente uma ênfase no partido como elemento chave na transformação do país. E se excluirmos a natureza competitiva do basquetebol, não há nenhum apelo nem visualização de qualquer “luta”. Nü lan wu hao, não deixando de ser um filme do seu tempo, é um herdeiro evidente dos filmes produzidos em Xangai nos anos 1930s, em que as preocupações sociais partilhavam espaço com o melodrama, o humor, a canção e/ou o romance. A produção de Xangai conhecida como “cinema de esquerda” consegue congregar elementos da tradição soviética com a de Hollywood, sendo mais ideologicamente ambíguos do que por vezes são rotulados e conseguindo a proeza de terem sido sucessos de bilheteira na época. Nü lan wu hao é um peculiar descendente dessa tradição e não é por acaso que nos lembra um pouco outro filme centrado em desporto feminino, Tiyu huanghou (Queen of Sports, 1934) de Sun Yu.
Não deixa de ser curioso que Xie Jin (1923-2008), um dos mais conhecidos realizadores chineses dos anos Mao, e que continuou a filmar até aos anos 2000s (terminou com uma espécie de remake do seu primeiro filme, Nü zu jiu hao (Woman Soccer Player no. 9, 2001), tenha começado a carreira com Nü lan wu hao, que ainda tem tanto da tradição do cinema do período que o filme vilipendia. A sua obra-prima viria anos depois, com Wutai jiemei (Two Stage Sisters, 1964), mas Nü lan wu hao tem uma leveza particular, que o coloca em sintonia não só com uma tendência cinematográfica passada como com alguns elementos de certo cinema de entretenimento chinês actual.