A família é o centro nevrálgico da obra de Yasujirô Ozu. No âmbito da programação de Fevereiro da Cinemateca Portuguesa dedicada à infância, passam duas das suas obras. Exibido algumas semanas depois de um dos seus mudos com o qual tem alguns laços, Otono no miru ehon – Umarete wa mita keredo (Nasci, Mas…, 1932), Ohayo (Bom Dia, 1959) fecha o programa “A Iniciação ao Cinema: Encontros e Reflexões”.
O impacto das mudanças sociais do Japão na família é um dos temas recorrentes da obra de Ozu, elevado a um pico de excelência em obras como o aclamadíssimo Tokyo monogatari (Viagem a Tóquio, 1953). Ohayo não surpreende pelo círculo de família e vizinhos onde se ambienta, mas pelo tom mais leve, menos dramático, a espaços extremamente cómico. Não é caso único na obra de Ozu, onde momentos de humor existiam até em filmes onde a tónica era no drama, mas certos aspectos de sátira estão em Ohayo particularmente refinados.
Ao contrário do que algumas sinopses dão a entender, o filme não revolve em torno dos dois irmãos mas envolve toda uma série de personagens que habitam o mesmo bairro suburbano e que corporizam toda uma série de atitudes que Ozu aborda com um olhar simultaneamente crítico e sereno, como as vizinhas que espalham boatos maliciosos, a mãe exigente, a professora e o tradutor enamorados mas incapazes de verbalizarem as suas intenções, os pais trabalhadores mas ausentes, e, claro, os filhos que se rebelam para poderem ter uma televisão.
A televisão, que uma personagem a dada altura apelida de “caixa dos idiotas” assume no filme uma dimensão óbvia de comodidade-símbolo de um Japão no pós-guerra, americanizado e no caminho da recuperação económica. Mas será precipitado vê-lo apenas como a adopção de uma cultura americana: afinal é para ver sumo que os miúdos querem o aparelho. Como muitas outras coisas no Japão, a televisão de Ohayo é mais complexa que uma mera cópia do “Ocidente” mas funciona como símbolo da apropriação selectiva de elementos modernizadores que são aglomerados num todo que é japonês. O guarda-roupa das várias personagens será talvez a marca mais evidente da coexistência entre tradicional e moderno que perpassa a filmografia de Ozu.
Talvez mais significativo seja o modo como os miúdos expressam a sua revolta, via um voto de silêncio (em Otono no miru ehon – Umarete wa mita keredo era com uma greve de fome). E se essa ideia, por todo o seu potencial cinematográfico, bastaria para impressionar, menos não o faz a forma como Ozu brinca com um dos aspectos da reclamação dos miúdos, que acusam os adultos de passarem os dias a dizer frases triviais mas vazias como “Bom Dia” ou “Boa Noite”. Se se pode ver nas deixas dos rapazes um sinal de crítica implícita, Ozu dar-lhe-á a volta mostrando-nos, via alguns diálogos ou mais subtilmente que isso (como na muito Ozuana cena da estação de comboios quase no final) o quão essas deixas do dia-a-dia são reais, tão parte integrante da vida (e Ozu preocupa-se precisamente com essa vida, essas evidências de humanidade) como os silêncios, com as quais às vezes partilham essa arte de “não dizer” o que se quer dizer.
Também tecnicamente Ohayo congrega os elementos que se convencionou associar a Ozu: os seus planos filmados em espaços interiores, fixos e a baixa altura (os chamados “tatami shots”), os seus emblemáticos planos sem personagens, e o seu olhar sobre o exterior em permanente fluir (o caminho para a escola, a estação) estão, naturalmente, presentes, bem como a atenção dada a todas as personagens, ao extremo detalhe que existe no aparentemente simples desenrolar da existência.
Talvez pelo seu tom mais leve e divertido (mais do que Nasci, Mas… com o qual é associado) nunca comova o espectador como outros trabalhos seus, bem mais propensos a uma comunhão com a sua perfeição contemplativa, mas Ohayo não deixa de reflectir vários dos traços essenciais do cinema de Yasujirô Ozu – e, não esqueçamos, também de um Japão em transição.
Ohayo passa na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema dia 23 (sábado), às 21:30.