Sopa dos pobres ou sopa dos ricos? Até à mesa os problemas com dinheiro nos são servidos. O cinema também se alimenta dessa sopa, apesar de, por norma, serem “de ricos” os seus ingredientes. Arte industrial, “de milhões”, o cinema sempre tendeu a cozinhar histórias sobre amor e dinheiro – dois termos quase equivalentes num certo cinema clássico norte-americano – mas por demasiadas vezes foi um “unhas-de-fome” a reparar naquela gentinha que não tem dinheiro para fazer cinema – esses miseráveis que somos todos ou quase todos nós, os condenados a espectadores do cinema. As excepções, contudo, ficaram na história – Chaplin será o ícone máximo desta pobreza multimilionária da Sétima Arte – e hoje a norma parece ser (des)gastar apenas o que se pode. Eis a nossa esmola.
Para André Bazin, Umberto D. (Humberto D. 1955) era um “filme-cão”. Sabemos que o amor de Bazin por animais esteve na base da sua lei da montagem interdita – segundo o autor de O que é o cinema?, o realizador estava proibido de usar o corte em cenas partilhadas simultaneamente por um humano e um animal -, sabemos que Umberto D. é um filme sobre essa co-habitação no espaço entre um homem em risco de terminar a sua vida na rua e um cão rafeiro solidário com o pobre dono, sabemos aliás que Kelly Reichardt sabe muito bem como adaptar a fórmula do “filme-cão” à contemporaneidade ou então não vi bem Wendy and Lucy (Wendy & Lucy, 2008)… Sabemos o que sabemos, mas o que sabemos não está fundamentalmente correcto. Com efeito, o “filme-cão” de Bazin não se refere, em primeira mão, nem à vadiagem, ao devir-cão, de Umberto Domenico nem à humanidade, ao devir-Homem, do seu simpático cãozinho; refere-se, antes, à estética ou à ética da precariedade que enforma a escola neo-realista lançada por De Sica e Rossellini. O homem idoso lida com a iminência do despejo da casa onde previa acabar os seus dias, ele desespera por uns trocos que adiem esse fim que não é um “fim da morte” nem um “fim do envelhecimento” mas um “fim-rua” ou, finalmente, um “fim-cão” da sua existência. Ele perambula no espaço – e o filme acompanha-o – à procura desse crédito divino que tem vergonha de reclamar: uma velhice minimamente suportável. Ter dinheiro ajudava e muito.
Luís Mendonça
Parece impossível mas é verdade. Já lá vão quase trinta anos desde esse magnífico pedaço de bizarria realizado por Martin Scorsese chamado After Hours (Nova Iorque Fora de Horas, 1985). Se a passagem dos anos transformou os eventos que preenchiam a odisseia de Paul Hackett (Griffin Dunne) – para chegar a casa depois de uma tentativa de romance falhado – em algo próximo de um modelo de diversão nocturna, já no que diz respeito a uma visão do dinheiro a história é outra. Como o “tropic” de Miller, “spit in the face of art”, o singelo exercício de faculdade de Joseph Minion (que lhe valeu nota máxima dada pelo professor de argumento Dušan Makavejev) nunca sabe bem se as notas (os dólares) são objectos estéticos ou mero capital. Como filmar o capital? Aqui ele não tem peso: é leve, voa pelas janelas dos táxis, muda de valor à meia-noite, é colado como adereço numa escultura ou está preso numa caixa registadora. Para não “fugir”. Não é por acaso que Paul está interessado em comprar um paperweight (vulgo pisa–papéis) para corrigir essa leveza. O “time is money” de hoje é, no filme de Scorsese, um tique-taque na banda-sonora e uma busca romântica por um “papel” que significava o regresso a casa. A estranheza suprema é que em 85 Scorsese filmou o “full circle” sugerido por Michael Powell (que ia assistir às rodagens) e arranjou uma alternativa ao papel. Isso hoje parece ser a maior bizarria de todas. A que permanece.
Carlos Natálio
Da mesma maneira que em Dial M for Murder (Chamada para a Morte, 1954) quase ninguém (nem as personagens, nem o espectador desatento) percebia muito bem onde é que é que tinham ficado as chaves da porta, pouca gente liga ao que acontece aos 40 mil dólares que Marion Crane recebe do patrão (na imagem) para depositar no banco, mas é a decisão de ficar com o dinheiro que espoleta a sua fuga e a torna na vítima daquele duche de sangue a preto-e-branco, a cena mais conhecida de Psycho (Psico, 1960). Claro que o próprio Hitchcock aparenta não lhe dar muita importância, MacGuffin para o que verdadeiramente interessa (o terror inesperado e brutal da morte da protagonista, em primeiro lugar), ainda que não deixe de mostrar o seu percurso: os 40 mil dólares servem para comprar um carro em segunda mão, quando Marion sente a desconfiança do polícia, deixando de ser 40 mil dólares; à chegada ao Motel Bates, o restante é embrulhado num jornal, e por lá fica, mesmo depois de Marion decidir que o melhor é voltar para trás e devolvê-lo, antes de ir tomar o banho retemperador; mais tarde, quando Norman Bates limpa as provas da presença de Marion no motel, acaba na mala do carro que é afundado no lago, na última vez que o “vemos”. No entanto, de certa maneira, volta, pois é à sua procura que vem o detective Arbogast, a outra vítima de uma morte chocante. Se calhar, o dinheiro tem mais valor do que parece.
João Lameira
1960 é um ano marcante na obra de Jerry Lewis, uma vez que foi nesse mesmo ano que se estreou o actor atrás da câmaras com o indescritível The Bellboy (Jerry no Grande Hotel, 1960). Mas este pequeno projecto (sem orçamento e sem argumento) era apenas o filme de Verão que preparava o filme do Natal, e é esse que trago para a sopa. Cinderfella (Cinderelo dos Pés Grandes, 1960) é o primeiro filme que o actor fez depois de terminar o contrato com o produtor Hal B. Wallis e o terceiro título (de cinco) que o actor fez com o realizador Frank Tashlin depois do ‘divórcio’ com Dean Martin. Tashlin (mais ainda que o próprio Lewis) é um realizador que compreendeu a importância do espaço na construção do gag cómico (e as cores, talvez a sua marca mais evidentemente autoral) e é através disto que se decidiram (Lewis produziu e Tashlin também escreveu) a masculinizar a história da Cinderella (e da sua fada e das suas meias-irmãs) capitalizando (cá está) a persona de servente atolambado – que Lewis tão bem soube gerir. A história é a que todos conhecemos e, como é conhecido, os meios-irmãos querem avidamente o dinheiro da família, pois bem: se é dinheiro que queres, é dinheiro que te dou. Daí o plano acima, um enxurrada de moedas cai sobre o ganancioso irmão. Fella não quer o dinheiro para nada, só o afecto da família e o amor de uma bela moça são-lhe suficientes.
Ricardo Vieira Lisboa
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[…] de Dr. Jerryll, 1963) por causa do desporto, Cinderfella (Cinderelo dos Pés Grandes, 1960) pelo dinheiro e The Errand Boy (O Mandarete, 1961) debaixo de água. De facto há uma força no trabalho de […]