Num pequeno exercício à guisa de Louis Skorecki – imitação (im)possível, muito barata, que, descansem, não é para continuar -, procuro este mês perguntar a mim mesmo, ou melhor, falar comigo mesmo sobre dois assuntos: primeiro, a devida homenagem que a RTP (não) fez a Paulo Rocha e, segundo, a estreia via RTP2 – quando ainda havia Sessão Dupla, o famoso álibi de Jorge Wemans, ex-director do canal, para “haver cinema” no segundo canal – do magnífico Guerra Civil (2010) de Pedro Caldas.
Será que já está a gravar? Penso que sim… pelo menos, vejo a luzinha vermelha. Bem, então começamos em 3: 1, 2 e… Indo directo à questão, gostava de saber a tua opinião sobre a forma como a RTP assinalou na sua grelha a morte do realizador português Paulo Rocha. Faço-te a ti a pergunta, porque sei que és um crítico incansável da televisão pública. Desculpa, mas estamos a falar de quê? Estou a falar do ciclo que a RTP dedicou a Paulo Rocha, no qual tive o prazer de voltar a ver – e como não há DVD do filme, temos de aproveitar – a obra-prima Os Verdes Anos (1963) e onde vi, pela primeira vez, A Ilha dos Amores (1982) – quer dizer, este não vi, mas está bem gravadinho na box… Como assim? Estamos a falar da televisão pública portuguesa? Claro, mas não viste, é isso? Não viste o documentário que passaram, aquele que o Paulo Rocha fez dedicado ao mestre Imamura, que tu tanto gostas? E passaram também o segmento de Um Filme Português (2011) em que ele debate a situação do nosso cinema… Passaram? Sim… não passaram? Não, não passaram. Mas, se não passaram nada disso*… Sim, quer dizer uma coisa. Que sou mentiroso? Não, que a televisão pública continua a não prestar serviço público.
Bem, mas então deixemos de falar de televisão, também ver cinema na televisão não tem jeito nenhum. O cinema vê-se na gruta, na sala escura, em estado de semi-vigília, como dizia bem, citando Morin, o director de fotografia José Lobato num debate realizado há dias na Cinemateca Portuguesa. Pois, então falemos de cinema… no cinema. Guerra Civil de Pedro Caldas, gostei muito, parece-me um retrato muito duro e ao mesmo tempo com um certo arejo encantatório, fragmentário, quase de sonho-pesadelo de Verão, que parece cruzar a ambiência serena de Rohmer com a gravidade (em sentido duplo) elíptica (em sentido estrito) de Van Sant… O choque entre o isolamento do adolescente e a abertura “desbragada” da rapariga parece-me significativo: penso que ele, apesar da sua passividade extrema, se oferece muito mais a ela do que ela a ele, pese embora a proactividade (detesto esta palavra…) desta última. É um problema de comunicação. Pois, como é um problema de comunicação aquilo que “desliga” a mãe do pai. Sim, aliás, penso que todo o filme é um processo de des-ligamentos constantes: do adolescente com o exterior/praia, com o ratinho, com o gira-discos que se estraga, com a mãe, etc.
Nesse aspecto, a sequência do jogo de vólei na praia, sem bola, que lembra Blow Up (História de Um Fotógrafo, 1966) de Antonioni tanto quanto lembra Conte d’été (Conto de Verão, 1996) de Rohmer, reflecte de forma significativa essa ausência de meios, de comunicação ou de media em todo o filme. Daí a rapariga… ela oferece a possibilidade de ligação, como o pai oferece a possibilidade de um Verão “salvo no último minuto”, quando, regressado, resolve o problema do gira-discos. Uma possibilidade que acaba por cair no vazio. Literalmente. Mas… estavas a falar de televisão, depois quiseste falar de cinema. “Cinema no cinema”. Isso, “cinema no cinema”, mas depois falaste de Guerra Civil. Sim, vi-o recentemente e gostei muito, qual é o problema? Guerra Civil passou na Cinemateca e no IndieLisboa (onde até ganhou o prémio de melhor longa-metragem nacional), mas não teve qualquer tipo de distribuição comercial. Não? Não, passou sim, em “estreia nacional”, na RTP2. Então, isso quer dizer que o cinema, o bom cinema, foi parar… À televisão, sim. Estás a dizer que sou mentiroso? Não, estou a dizer que algo está muito errado nesta história.
* A única excepção foi-nos dada há dias pelo Onda Curta, que programou, para dia 27 de Janeiro, a média-metragem Máscara de Aço contra Abismo Azul (1988), tendo sido escrito a propósito desta exibição um texto sentido de homenagem ao realizador, que, ainda assim, não substitui, no timing e no alcance, o minimamente exigível a uma estação dita de serviço público.