Por vezes o cinema português é encarado com um certo paternalismo que aceita qualquer coisa que se faça por cá, simplesmente porque o facto de se fazer um filme neste país já é por si um feito. Quarta Divisão (2013) é um filme que tem vários problemas (já lá iremos) mas a verdade é que não destoa da obra que Joaquim Leitão vem fazendo e, pelo contrário, acrescenta alguns pontos de interesse.
Para perceber o conjunto dos filmes do realizador Joaquim Leitão (e a forma como estes formam uma obra) há dois aspectos que não podemos descurar: um, é um dos poucos realizadores nacionais que ao longo dos anos tem conseguido estabelecer uma relação com o público que funciona nos dois sentidos (o público não é tratado como incapaz, nem lhe é pedida uma dedicação que a maioria dos espectadores não está disposto a oferecer); dois, por ser um realizador com a característica anterior é tomado, por uma certa intelligentsia, como um caso a ignorar ou desprezar.
Se há algo que distingue Joaquim Leitão dos outros realizadores nacionais é o seu cinema de temas. Antes de mais dou a palavra ao próprio: “normalmente há uma espécie de tema por trás dos filmes, um assunto ou um tema que me intriga. São coisas sobre as quais tenho dúvidas, para as quais não tenho respostas, e o próprio filme é uma maneira, não de encontrar respostas, mas de pôr as perguntas de forma mais clara. Depois disso há um clique qualquer com um facto narrativo, com uma coisa qualquer que li num jornal, ou vi, uma ideia que tive, as duas coisas juntam-se e a partir daí tem-se a história, o esqueleto sobre o qual o tema vai ser desenvolvido” (excerto da entrevista que o realizador deu a Vanessa Sousa Dias, para o projecto Novas & velhas tendências para o cinema português). De todas as características dos seus filmes a questão temática é a mais forte: em Adão e Eva (1995) era a imprensa cor-de-rosa, a ‘ética’ das televisões privadas e as novas formas familiares (quem é o pai da criança? somos nós os três), em Inferno (1999) os traumas da guerra colonial [e o tráfico de droga, tema também de Tentação (1997)] e em 20,13: O Purgatório (2006) a guerra em pessoa; mais recentemente tivemos a crise imobiliária, a corrupção no futebol e a integração dos bairros sociais em A Esperança Está Onde Menos Se Espera (2009). Ou seja, parece-me que Joaquim Leitão vem conseguindo tomar as rédeas dos momentos que filma, como se cada filme seu se tornasse uma janela para a época que representa. Talvez por isto se identifique o público mais facilmente com as situações retratadas.
Dito isto, Quarta Divisão é um caso exemplar deste procedimento. Se logo a abrir o filme temos uma brigada de polícias que se prepara para ir para uma manifestação então sabemos que este é um filme de hoje, em que até as figuras de autoridade estão dispostas a fazerem ouvir as sua reivindicações. Mais à frente teremos um confronto entre os profissionais que andam na rua e os que apenas dão ordens (ou apenas as reproduzem) das suas cadeiras estufadas, veremos também a influência política no funcionamento das forças policiais e casos de abuso de poder dos profissionais de segurança (ou a seu propositado descuido). O problema é que nada disto é novo. Quantos não são os filmes (e séries) americanos que retratam este lado particular do estado, e fazem-no muitas vezes melhor e de forma mais interessante que a que Joaquim Leitão escolheu. Como tentei ‘provar‘ recentemente, o cinema português não tem escala para produzir certos filmes que necessitam de um mínimo de desenvolvimento da indústria, mas Leitão sabe-o; a referida entrevista abre com a citação do realizador “Não há receitas para escrever ou para fazer um bom filme”, a pergunta que imediatamente desperta nas nossas mentes é: então porque é que insiste?
Embora com muitos desequilíbrios, Quarta Divisão parece conter em si a resposta e de novo é a questão temática que surge. Este último filme de Joaquim Leitão faz algo que não só é muito corajoso como representa aquilo pelo qual o realizador se vem batendo ao longo da carreira: uma expiação nacional. Se o trauma do ultramar teve a sua expiação ficcional através de 20,13 e Inferno, este obra mais recente centra-se num aspecto da sociedade portuguesa que é unanimemente considerado como corruptor do normal funcionamento da democracia, uma justiça desigual. Quarta Divisão é a resposta cinematográfica a casos como os de Madeleine McCann e da Casa Pia. Na demora judicial e no barroquismos dos processos que envolvam figuras públicas, a alternativa possível é inventar um caso (um menino desaparecido) e esperar que (ao menos na ficção) o caso se resolva em tempo útil. O trauma das investigações que não terminam nunca e dos tribunais que só condenam os pobres tem aqui a expiação possível, não só a criança é encontrada (ainda o filme não vai a meio) como uma figura de poder político-financeira é julgada e condenada.
Mas tudo isto poderia tornar o filme panfletário, uma espécie de ode às forças policiais, um país inventado pela propaganda. Muito pelo contrário, nesta sede de condenação o próprio Joaquim Leitão e o seu produtor, Tino Navarro, interpretam respectivamente o psicólogo que avalia a criança acusadora e o juiz que dá a martelada moral. Tomando o corpo dos condenadores, produtor e realizador mostram que este desejo que condenar quem quer que seja, apenas para que se mostrem resultados, é um desejo que não produz resultados construtivos. E é aqui que o filme descola da série americana da quinta à noite (ainda que tenhamos que sofrer uns flashbacks escusados e o filme se arraste sofrivelmente na última meia hora), através do retrato de um país cuja salvação parece ser possível (apenas) na ficção.