O humor é de todas as áreas de criação artística aquela que mais vezes é olhada com despeito por parte da crítica. São os filmes sérios sobre as angústias da vida e as agruras da morte que ganham os maiores elogios. Poucos são os realizadores que através do riso têm conseguido ganhar o estatuto de autores dignos, ainda menos são os nomes dos últimos 50 anos: Tati é um deles, Étaix foi agora redescoberto, Lewis / Tashlin também (mas em muito menor escala) e além destes, desde os anos sessenta, poucos foram os nomes unanimemente aceites como maiores no mundo da comédia (podemos acrescentar Woody Allen, Blake Edwards e pouco mais). Talvez não ajude o facto de em anos recentes os nomes que mais facilmente associamos ao humor serem os de actores que muito raramente fazem a passagem para trás das câmaras (penso em Jim Carrey ou em Rowan Atkinson, mas excepção seja feita a Ben Stiller). No entanto, realizadores (e reporto-me apenas aos estado-unidenses) como Adam Mckay e Jay Roach assim como Judd Apatow (e a sua trupe) vêm mostrando que esta tendência está a inverter-se.
Dito isto, de todos esses criadores de gargalhadas, um deles é particularmente desdenhado, Mel Brooks. Os motivos para tal reacção a obra tão encantadora são facilmente distinguíveis: Mel Brooks tem um gosto particular por um humor juvenil (piadas sobre o tamanho de orgãos sexuais são abundantes) e talvez seja ele o mentor ideológico de muitos dos atentados que o cinema comercial americano tem vindo a cometer desde Porky’s (1982) e seus sucedâneos. Mas a verdade é que por entre essa camada, daquilo que passámos a chamar o humor fácil, vive um desejo imenso de cinema e um gosto particular pelo meio através do qual se chega à graça.
Brooks terá percebido muito cedo – diria que isso é mais evidente a partir de Blazing Saddles (Balbúrdia no Oeste, 1974), a sua terceira longa metragem – que fazer um filme, qualquer que ele seja (e viver de fazer filmes), é uma actividade por si só cómica. Juntar um monte de pessoas em frente a um aparelho e desempenhar pedaços de texto e gestos vezes sem conta é algo intrinsecamente ridículo [não será por acaso que muitas das comédias clássicas americanas se passam exactamente dentro dos estúdios, mostrando os processos que dão origem à magia que a tela nos devolve: Singin’ in the Rain (Serenata à Chuva, 1952) ou The Errand Boy (O Mandarete, 1961)]. Tomando consciência dessa inerente e bela trafulhice que é o cinema, Brooks passou a trabalhar sobre os clichés dos filmes e sobre a potencialidade do humor (que posso chamar pedantemente de) metareferencial. Isto é, a feitura dos filmes é a matéria viva que Brooks molda e re-molda ao longo das suas 11 longas-metragens.
Numa rápida viagem pelos filmes do realizador refiro alguns dos momentos mais marcantes desse trabalho incansável sobre esta arte-ilusão: o final de Blazing Saddles é inclassificável – onde um vilarejo do velho oeste tem a ideia de construir uma cidade de estúdio (só fachadas) para que a matilha de pistoleiros fosse ludibriada e, como se isso não bastasse, Brooks filma a batalha final num traveling gigantesco que subindo nos ares revela que afinal todo o deserto era mesmo um estúdio no meio de Los Angeles; Silent Movie (A Última Loucura, 1976) tem no título já a explicação necessária, corresponde à ideia peregrina de um realizador (Mel Brooks a fazer de si mesmo, no seu primeiro leading role) que tenta convencer os executivos dos estúdios a financiar o filme mudo que estamos a ver; History of the World: Part I (Uma Louca História do Mundo, 1981) onde, à beira do degolamento pela guilhotina, Luís XVI chama por um milagre e vindo da época romana vem um carroça que o salva e quando pergunta How did you get here from the Roman Empire? recebe a resposta Don’t be square, mon cher! Movies is magic! [para não referir a homenagem que Young Frankenstein (Frankenstein Júnio, 1974) é aos monstros do mudo, ou Spaceballs (A Mais Louca Odisseia no Espaço, 1987) é à ficção científica dos anos 70 e 80 – Star Wars, Planet of the Apes e Alien].
Talvez valha a pena deixar uma breve nota sobre estes dois últimos títulos assim como sobre Dracula: Dead and Loving It (Drácula: Morto Mas Contente!, 1995) com essa figura incontrolável (da minha infância e do cinema) que foi Leslie Nielson. Há uma fronteira muito ténue entre a homenagem e a paródia nos filmes de Brooks onde o título incontornável é Spaceballs (May the Farce be with you). É através dessa enorme sátira sobre o poder do merchandising (merchandising, where the real money from the movie is made. Spaceballs-the T-shirt, Spaceballs-the Coloring Book, Spaceballs-the Lunch box, Spaceballs-the Breakfast Cereal, Spaceballs-the Flame Thrower) em torno do sucesso da saga Star Wars que está a chave para compreender de que lado Brooks se coloca. Já quase no final do filme, quando a nossa parelha de heróis jantam num diner intergalático, um grupo de indivíduos galhofeiros faz estardalhaço na outra ponta do estabelecimento, até que percebemos que entre esses está um John Hurt que subitamente se começa a sentir mal e não tarda muito que um alienígena lhe rebente o estômago, Hurt olha a situação e exclama, Not again! Este momento é marcante no sentido em que Brooks não foi buscar um actor qualquer para parodiar Alien (Alien – O 8º Passageiro, 1979), ele foi buscar John Hurt porque a piada está, antes de mais, no homem que sofre o tão triste fado de ser aberto pela minhoca espacial de novo. A paródia é portanto um acto de amor aos personagens ( “[Blazing Saddles] has to do with love more than anything else. I mean when that black guy rides into that Old Western town and even a little old lady says ‘Up yours nigger!’, you know that his heart is broken. So it’s really the story of that heart being mended.”), ou seja, é através de perceber o ridículo ou o horror do tratamento do negros nos westerns, ou os cientistas na ficção científica, ou os escravos nos épicos romanos que se devolve a honra a esses esquecidos pelo género. Fala-se muito de revisionismo histórico a propósito dos dois últimos filmes de Quentin Tarantino, mas verdade é que Mel Brooks fez o mesmo há mais de 20 anos.
Toda esta conversa pode levar a crer que Robin Hood: Men in Tights (Robin Hood: Heróis em Collants,1993) tem pouco por onde puxar, muito pelo contrário, é o filme que destaco da obra de Brooks por condensar em si aquilo que é a natureza do seu trabalho. Há qualquer coisa de estranhamente elegíaco no penúltimo filme de Mel Brooks, dá a sensação que ele suponha ser aquele o seu último filme e , por isso, sente-se um desejo de atar as pontas da obra, fechar tudo num embrulho medieval cheio de auto-referências [o último filme, o já referido Dracula, é já de outra categoria, a graça de Brooks torna-se desiludida e a porta fecha-se com algum rancor]. Os anos setenta e oitenta foram os anos de consagração do realizador em termos críticos e de bilheteira, os anos noventa só reservaram três filmes tristemente esquecidos e e muito mal tratados à época. Robin Hood sofreu esse desaire e por isso está na hora de o recuperar (assim como ao seu autor).
Como grande parte dos filmes da fase final da carreira do realizador, este surgiu como reacção a um sucesso da máquina de hollywood, Robin Hood: Prince of Thives (Robin Hood: Príncipe dos Ladrões, 1991) com Kevin Costner no principal papel (assim como Spaceballs saía em reacção a Star Wars, e Dracula saía em reacção ao homónimo de Francis Ford Coppola). Mas na verdade este era já um projecto antigo do realizador que havia criado uma série de televisão, When Things Were Rotten, com o mesmo material, à qual foi repescar alguns diálogos para o filme. Aliás, Robin Hood é um trabalho de arqueologia humorística, no sentido em que parece que Brooks quis compilar os gags de vários dos seus filmes num só: se aquele fosse seu último filme pelo menos seria um convite aos espectadores para irem conhecer os seus filmes.
De modo a que tal afirmação não fique apenas no ar concretizemos, elencando as ditas (auto-)referências: o rei tem um sinal no rosto muito semelhante ao sinal de Luís XVI em History (a mesma deixa, it’s good to be the king), que alterna do lado esquerdo para o lado direito da face como a corcunda do assistente em Young Frankenstein, que como o assistente não sabe da existência de tal característica; o talismã que Robin recebe do falecido pai é semelhante ao que iogurte dá ao ‘Han Solo’ de SpaceBalls, assim como o casamento final acelerado desse filme se repete neste (sendo desta vez é Brooks o casamenteiro – Do you? I do. Do you? I do.), a nomeação do novo xerife negro de Rothingham (It worked on Blazing Saddles…) ou o regresso do enforcador de Robert Ridgely , a consciência da presença da câmara, com embates da objectiva, ou o número musical presente em quase todos os filmes de Brooks.
Enfim, Robin Hood é uma ode ao próprio trabalho de Brooks sem que nunca se torne um filme egocêntrico (como alguns de Jerry Lewis). Como noutros filmes, a presença de Brooks é apenas secundária e surge como mentor (o sábio – aqui um rabino e não um jedi ou um velho índio) que auxilia as personagens na sua saga, Brooks não está lá para receber laudas, muito pelo contrário, aparece apenas para facilitar o sucesso da empresa dos protagonistas. Em particular neste filme é de novo o amor que propulsiona a narrativa e, aquando do casamento que Brooks orquestra, ouvimo-lo dizer, and now for the best part, como se todas as aventuras anteriores não valessem um carapau, ou melhor, afirmando que são os happy endings (nos dois sentidos da expressão) que lhe interessam. Pode haver piadas sobre os peitos das meninas e os apetrechos dos meninos, pode haver referências a fezes e outras pestilências, podem-se fazer as piadas mais fáceis, mas não se pode fingir este apego pelos personagens, pelas suas histórias e desejos. Pode parecer descabido, mas Mel Brooks é um romântico. À sua maneira, claro.