A “recuperação” de um filme como Sorcerer (O Comboio do Medo, 1977) levanta questões antigas sobre os limites desse sub ou sobregénero que é o remake cinematográfico, na medida em que põe face-a-face aquele que terá sido o maior sucesso, popular e de crítica, do realizador francês Henri-Georges Clouzot e o primeiro estrondoso fracasso imputado ao autor de The Exorcist (O Exorcista, 1973) e The French Connection (Os Incorruptíveis Contra a Droga, 1971). Os problemas começaram na pré-produção, alongaram-se para a produção e distribuição, persistindo hoje a vontade, reforçada muito recentemente pelo próprio realizador, de lançar no mercado home cinema uma edição aceitável do seu filme. William Friedkin, às custas de uma (falsa, avançarei) dedicatória/homenagem a Clouzot em geral e ao seu Le salaire de la peur (O Salário do Medo, 1953) em particular, tornou-se num dos primeiros movie brats a sentir na pele as vicissitudades geradas no seio da regenerada, mas de novo temperalmentalmente degenerada, indústria do cinema norte-americano, vulgo nova Hollywood.
Por onde devo eu pegar neste remake de Le salaire de la peur, o filme clássico que, de uma vez só, valeu a Henri-Georges Clouzot o prémio máximo em Cannes e Berlim? A pergunta parece despropositada, já que caberia a este redactor saber responder a uma questão tão básica quanto esta, implícita na própria escolha do filme, e resistir ao desejo de passar a batata quente “metodológica” ao leitor. Contudo, no fim e no começo deparo-me com dois dados tão intrigantes quanto (des)norteantes: primeiro, o título, Sorcerer, de onde veio ele? Segundo, a dedicatória final a Clouzot, que nos diz ela ao certo? Primeiro, parece-me que o título enigmático diz pouco ou nada sobre o filme (tanto o de Clouzot como o de Friedkin, entenda-se), ao passo que essa dedicatória diz muito “sem dizer”; talvez até diga tudo… tudo o que é preciso saber para percebermos as razões desta estranha confluência entre dois cinemas, dois modos de conceber e ver o mundo, tão diferentes entre si: Clouzot via Friedkin? Um canaliza o outro? Ou será a dedicatória do segundo uma maneira elegante para, depois de reformulado, diria, quase “dinamitado” o original, lançar a nitroglicérica exclamação: Dear Mr. Clouzot, thanks, but this is how I do it!
À partida, o estilo higiénico e perfeccionista (fascista, escrever-se-ia nos Cahiers dos anos 50) ou a visão sofisticadamente pessimista do mundo (cínica, também se diria nos Cahiers dos anos 50) de Clouzot só parcialmente combina com o engenho irregular, por vezes malcriado (pouco polite, nada burguês, diria…), ou orgulhosamente cínico (pessimista, também diria…) da maneira friedkiniana. O pouco que os liga é o que tornará o encontro possível e a verdade é que Friedkin levou este projecto tão a sério que, entre pares, acabou por ferir de morte a sua boa imagem profissional, nomeadamente pela forma como se incompatibilizou com o elenco, a começar pelo actor principal, o excelente Roy Scheider, que o próprio Friedkin confessou ter sido uma solução de último recurso, após os assédios gorados a Steve McQueen, Clint Eastwood, Nick Nolte e Paul Newman; pela forma como tornou uma rodagem já de si, à partida, muito exigente num pesadelo logístico e humano – com a sequência da ponte a esticar até ao limite o equilíbrio orçamental, que acabou desfeito em pedaços no boxoffice por um filme pouco credível, que custou exactamente meio Sorcerer, chamado Star Wars (Guerra das Estrelas, 1977) -; pela forma, enfim, como o filme foi misteriosamente intitulado “Feitiçeiro” e pela maneira perversa q.b. como “viciou” a redescoberta do original de Clouzot, “O Salário do Medo”… Nem de propósito, pela via da justaposição dos títulos, regressamos ao essencial. Com efeito, a questão do dinheiro continua a ser fundamental no remake de Friedkin, mas o tema grande deste seu filme não cabe na narrativa de Clouzot, obra que resultou e resulta num entretenimento hábil e bem montado, pese embora demasiado limpo, excessivamente “claro” e “direitinho” para o realizador norte-americano.
O que Friedkin faz ao filme de Clouzot é violar-lhe o espírito: manda pelos ares a sua longuíssima e mastigadíssima exposição – quase uma hora a manobrar as suas personagens estereotipadas, sem nos adiantar nada sobre o que verdadeiramente as move ou que forças as puxam para à frente – e torna a outrossim tensa odisseia on the road numa batalha não do homem contra o homem (competição de macho power), mas do homem contra o meio ou do corpo contra a matéria (das caixas com nitroglicerina até à Natureza selvagem que aqui nos assalta e que no filme de Clouzot nada nos diz). Se virmos The French Connection, To Live and Die in L.A. (Viver e Morrer em Los Angeles, 1985), Jade (1995) ou mesmo o mais recente (criminosamente subvalorizado) The Hunted (O Batedor, 2003), mas mesmo se pensarmos nos seus filmes mais estáticos ou teatrais, como os magníficos Bug (2006) (curiosamente, desenrolado num motel à beira da estrada, não estando de modo nenhum indiferente à vertigem do alcatrão) e Killer Joe (2011) (curiosamente, passado em rulotes estacionadas, dentro das quais personagens inquietas põem a acção em movimento), ficamos conversados quanto a uma ou duas coisas: o drama gera-se do exterior (set/meio) para o interior (personagem) e, “em campo aberto”, a perseguição (figura ontológica, segundo Kracauer, da linguagem cinematográfica) ou o movimento das pernas, o deslizar dos carris, o rolar das rodas… é uma performance discursiva para ser veiculada ao espectador apenas pelo recurso às imagens, no potente silêncio das palavras.
Em 1954, enquanto crítico dos Cahiers du cinéma, num célebre artigo intitulado «Uma Certa Tendência do Cinema Francês», François Truffaut denunciava a verborreia do cinema dos, por si considerados, bafientos mestres franceses e, neste ajuste de contas com o passado, dava o mote para que se arrastasse para a lama nomes como Autant-Lara, Duvivier, Grémillon, Clément, etc. e, apesar de menos desfavoravelmente no seu caso, o próprio Clouzot. Em 1957, numa conversa onde Truffaut, por sinal, não estava presente – mas estava Rohmer e Bazin – Rivette traça de modo muito claro quais são para si os principais “inimigos a abater” do cinema francês, quando qualifica de “corruptos” e “cobardes” uma série de “velhos mestres”, incluindo no lote, sem contemplações, o nome de Clouzot. (Truffaut acabaria por se alinhar, voluntaria ou involuntariamente, com esta facção quando escreve, no final desse mesmo ano, um artigo com o título «Clouzot no Trabalho, ou o Reino do Terror».)
Face a isto, importa dizer que, nalguns casos, Clouzot foi algo injustamente reduzido aos seus jogos de xadrez pequeno-burgueses (apolíticos e alheados da sociedade) ou à sua dimensão literária tão conformada quanto pedante – como contra-prova, veja-se ou reveja-se o exercício minucioso de mise en scène que é Les diaboliques (As Diabólicas, 1955) -, mas Friedkin é um filho “mimado” do cinema, um crítico mais que um leitor da sua história (daí a admiração que Tarantino nutre por ele e por este seu filme, um dos seus all time favourites?); logo, também ele devedor da postura geral dos arquitectos da Nouvelle Vague. Um realizador com um perfil que tinha tudo para não ajudar em nada a relativização das qualidades caducas do cineasta francês ou para transformar Sorcerer num Clouzot “só osso”, calado, sujo e paranóico (a haver, a carne é a paranóia, até porque estamos nos 70 e nos EUA, ou melhor, até porque Friedkin é fã de Fritz Lang…). E, de facto, foi isso que aconteceu.
Onde Sorcerer é cinético, Le salaire de la peur é literário, onde Sorcerer é enigmático, quase insondável, Le salaire de la peur é histrionicamente nítido, onde Sorcerer é animal, sujo, brutal, Le salaire de la peur é asséptico, estetica e eticamente higiénico, onde Sorcerer é estratégia, Le salaire de la peur é táctica, onde Sorcerer é 100% Friedkin, Le salaire de la peur, ainda que mais “horizontal” e “gráfico” do que lhe é hábito, é 100% Clouzot. Que “um é um e outro é outro” parece ser uma conclusão fraca para um texto que já vai longo, mas desde o momento em que nos aparece o título até ao momento em que nos surge a dedicatória a Clouzot esse é o statement mais audível de Friedkin.
Com a distância de sessenta anos sobre o original e mais de trinta sobre o remake – é curioso como à distância filmes com esta idade se tornam mais irmãos do que filho e pai -, já é possível perceber como este remake põe em campo a luta entre universos fílmicos muito diferentes entre si – ou, pelo menos, mais “diferentes” do que “iguais” entre si. Mediante a confrontação de um contra o outro – de facto, estes não se comparam, mas antes se confrontam -, vem à superfície o alcance da visão autoral de um no seu filme comercialmente mais desastroso e os limites da visão autoral de outro no seu filme “oficialmente” mais bem sucedido. Graças aos dois filmes, fica claro também como “rever” – Daney tinha, como sempre, razão – é a mais aventureira e rica tarefa cinéfila, nem que seja porque sem ela continuaríamos a pensar que este filme de Clouzot – a hit – é melhor que este filme de Friedkin – a failure. Algo que, aqui e agora, eu desafio o leitor a pôr em dúvida.