De todas as artes o cinema é aquela cujo poder hipnotizante é mais notório, isto porque é de todas a mais enganosa; aquela que nos ludibria sem pejos, aquela que nos passa a perna e, no entanto, é também aquela que não conseguimos largar. Gostamos de ser manipulados, porque sabemos que é por aí que vamos sentir algo novo, ou mesmo que já conhecido, forte e incontrolável. O cinema é isto mesmo, uma arte luxuriante, que sabemos que nos faz mal e que, no entanto, somos incapazes de contrariar. Um veneno bom, um oxímoro.
Paul Thomas Anderon é um realizador que percebeu isto, percebeu que o cinema é cada vez menos sobre as histórias que nos contam e mais sobre as atmosferas, os ambientes, as sensações que nos provocam. Talvez através dessa iluminação os seus filmes vêm sendo, progressivamente, menos narrativos (no sentido estrito, clássico). Se There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007) ainda permitia enquadrá-lo numa certa moldura de épico individualista, agora, com The Master (The Master – O Mentor, 2012) já estamos num mundo estilhaçado, num cinema estilhaçado, onde cada momento (é mais um filme de momentos) se crava na carne, como um (cá está) estilhaço de uma bomba ou uma sanguessuga que teima em não sair; de qualquer modo, é incómodo. É (demasiado?) doloroso ver The Master, porque vê-lo é admitir essa natureza dupla e pervertida do cinema, e gostar é cair num buraco de incertezas e contradições. O veneno não pode ser bom, mas sabe tão bem.
Anderson parece ter feito um filme que é, mais que tudo, a manifestação destes sentimos. Tal compreensão não é imediata, aliás, ao início ainda estamos crentes que vamos ver um filme com todas as cinco letras, mas a pouco e pouco a coisa vai-se desmanchando. Certamente terá havido muita gente que ao sentir esse desmanchamento (curioso que para escrever desmanchar tenhamos que escrever manchar, como se houvesse uma conotação negativa no acto, e curioso é também lembrar que desmanchar é uma forma popular de subentender o aborto) desistiu do filme, mas é preciso penar para lá chegar, é preciso atravessar o deserto (o deserto emocional e social que o filme retracta) para perceber, com clarividência, o projecto-súmula que é The Master.
As pistas são dadas pelos personagens, pelas suas acções. Primeiro há os cocktails assassinos que Joaquin Phoenix prepara, mistelas que levam à morte de um trabalhador da plantação porque ele não a soube beber, mas que, por seu lado, todos parecem adorar. O mestre, Philip Seymour Hoffman, pede-lhe para preparar mais daquela terrível poção. Um veneno bom, um oxímoro. Anderson não está preocupado com o alcoolismo, nem com a pregação, nem com a crendice de uns e o cepticismos de outros, ele está preocupado com o seu cinema e com o caminho que decidiu escolher.
The Master é um filme solitário, tanto que gira em redor dos que produzem explicações para a infelicidade, e infortúnio. A esse respeito vemos logo o primeiro plano do filme, um mar azul, perturbado pela ondulação produzida por um barco. Logo aí tomamos consciência (ainda que subtilmente) que a câmara de Anderson está mais focado no rasto do barco, nos vestígios que ele deixa, do que no barco em si. Paul Thomas Anderson é um realizador que, apesar de estar dentro do barco, não consegue deixar de olhar para fora dele. Anderson sente-se só, porque é o único (?) realizador que dentro de Hollywood filma como se não estivesse no barco, tirando as vantagens do serviço de quartos. Joaquin Phoenix é a manifestação deste homem perdido que gosta de fazer venenos bons, que gosta portanto de fazer cinema.
Quando o segundo livro da Causa (a ceita cujo mestre é o referido Seymour Hoffman) é publicado, um amigo e editor dos livros anteriores comenta que o novo tomo é ridículo, que podia ser resumido num panfleto de 3 páginas: é confuso e ininteligível. Anderson está a fazê-los falar sobre si. Ele sabe que The Master é um filme confuso, repetitivo, ininteligível. Ele sabe que o rumo que tomou é um incerto e sem destino exacto, Anderson sabe tudo isto e mesmo assim lançou-se no caminho errante (ele mesmo terá andado para trás e para a frente e só via uma parede, a fucking wall!).
Já no fim do filme Hoffman explica a Phoenix que ele tem duas opções, ou se mantém na Causa ou se vai embora para nunca mais voltar (go to that landless latitude and good luck). Diz também que se ele conseguir descobrir uma forma de viver sem um mestre, qualquer tipo de mestre, então que o diga a todo mundo. Anderson anda à procura dessa forma de viver (leia-se, de filmar) e embora ainda não tenha descoberto a saída, com certeza que nos dirá mal o faça.Se o primeiro plano era aquele do rasto do barco, logo depois vemos Joaquin Phoenix deitado, lado a lado, com uma mulher de areia. Esse plano aparece de novo já no fim do filme (o último plano); compreendemos então que a obra está encapsulada pela solidão avassaladora do personagem principal e da força criativa do seu mentor, que na impossibilidade do outro criam um ídolo ao qual se podem agarrar de sobre o qual podem finalmente adormecer. Mas como enquadra Paul Thomas Anderson este homem deitado no peito de uma mulher de areia? Exactamente colocando a câmara do outro lado desse peito, como se também a câmara estivesse a tentar adormecer junto da sereia imaginária. A personagem de Phoenix e o realizador são os dois a face de uma mesma moeda e parece que ambos se encontram para não mais se separarem. I’d like to be alone. So do I! Let’s do this together!