Já vão uns meses desde a conversa com João Rui Guerra da Mata e igualmente tantos meses vão desde que vi o filme A Última Vez que Vi Macau (2012), por isso o que escrever agora é resultado do apuramento que o tempo provoca na memória de todos nós. Nem de propósito é este também um filme sobre esse apuramento, nas memória de Guerra da Mata – que viveu e cresceu em Macau até à revolução de Abril – e das memória cinéfilas (e imaginadas, por se transporem em imagens) de João Pedro Rodrigues.
Nessa mesma entrevista perguntou o João Lameira se os filmes de João Pedro Rodrigues (e os de ambos) bebiam mais do próprio cinema do que da realidade, ao que prontamente respondeu Guerra da Mata: “detesto filmes de referências”. Depois acabou por concordar que os filmes de ambos eram de facto muito influenciados pelo cinema que viam e amavam, “mas a citação é uma coisa, a influência é outra”. A Última Vez é um filme sintomático desta ténue diferença, onde parece que se confluem dezenas de filmes num só sem que com isso sintamos qualquer forma de pedantismo referencialista. Mas dediquemos-nos a tentar descortinar o que andou a borbulhar durante os meses que a montagem do filme demorou.
Começa o filme e temos um plano sequência que acompanha uns saltos altos que caminham, depressa ouvimos os rugidos de tigres e como quem não quer a coisa surge-nos Cindy Scrash a cantar You Kill Me (I’m sure that my love will survive/ Because you kill me and keep me so alive). Assim, em três planos temos já pano para mangas. Os saltos são os mesmo que vimos perdidos em Alvorada Vermelha (2011), a curta (também montada com os materiais recolhidos em Macau) sobre o mercado vermelho (e que segundo os realizadores veremos de novo em Mahjong, curta sobre a ‘Chinatown‘ de Vila do Conde); os tigres antecipam já o final e o gosto por felinos que os filmes de Rodrigues foram mostrando; Cindy (aqui chamada de Candy, a fazer lembrar a Candy Darling de Warhol) já a conhecíamos de Morrer Como um Homem (2009) e a canção vem de Macao (Macau, 1952) filme de Sternberg que Ray terminou, cantada por Jane Russel. Depois veremos as meias de Russel a oscilar à porta da caverna de piratas, veremos também uma trama de noir clássico, de ficção cientifica e de policial série B (Z?), mas também receberemos (receberá Guerra da Mata, ele mesmo) uma carta cujas primeiras palavras são: ‘quando leres esta carta eu talvez já esteja morta’, as mesmas palavras que abriam a carta que Joan Fontaine envia a Louis Jourdan em Letter from an Unknown Woman (Carta de Uma Desconhecida, 1948). Para não falarmos em The Man With the Golden Gun (007 – O Homem da Pistola Dourada, 1974) parcialmente filmado em Macau e a cuja rodagem o próprio Guerra da Mata assistiu quando lá vivia, ou de um Chris Marker omnipresente (“[o Chris Marker] trabalha a memória de uma maneira extraordinária. E obviamente que A Última Vez Que Vi Macau é muito influenciado pelo cinema dele“), ou ainda dos quadradinhos de Tintin e o Lótus Azul.
Demasiados filmes e realizadores para quem não gosta de citações (“A cinefilia tem algo de perigoso: não gosto de filmes de citações. Mas é assim que se desenvolve a intuição, nasce do trabalho de ver filmes e é essa sedimentação que faz o conhecimento“). Mas se pode parecer contraditória esta situação, tal equívoco vem da inabilidade de quem escreve estas palavras. A Última Vez é um documentário (mais ou menos) e como tal, muito deste gosto cinéfilo vem do desejo de usar imagens documentais com vista a reproduzir o efeito mágico de um certo cinema clássico americano (note-se que o cinema de João Pedro Rodrigues é muitas vezes associado a Sirk e Ophüls, o que faz todo o sentido). Ou seja, o filme de Rodrigues-Da Mata inaugura uma empresa sem precedentes (que eu me lembre) em que é o próprio território que decide que história se vai contar sobre ele. É Macau, e as suas gentes, que diz aos realizadores o filme que eles devem criar (durante as filmagens Jane Russel morreu sublinhando a necessidade da referência e a certa altura encontraram um bamboo com o nome Candy gravado) e eles estiveram dispostos a ouvir (suddenly it was as if the city was telling us stories). Sendo Macau uma cidade tão cinemática não será por acaso que o filme é como é.
Embora o filme se distinga muito evidentemente do conjunto de 3 longas e várias curtas do realizador João Pedro Rodrigues há uma série de aspectos que se mantém e outros que ganham destaque por contradição. O primeiro não sou eu quem o destaca e, como tal, sobre ele não me demorarei mais. A importância do território no cinema de Rodrigues foi o tema do prefácio que Augusto M. Seabra escreveu para a edição de De casa em casa de Filomena Silvano [em que os documentários Esta é a Minha Casa (1997) e Viagem à Expo (1998) do realizador surgem como extra, uma vez que é sobre a sua rodagem que versa o texto da antropóloga e por lá aconselho que demorem o olhar. Outro aspecto é a questão da animalidade: na primeira curta de ficção fora da escola de cinema, Parabéns! (1997), aparece-nos o primeiro sinal dessa marca autoral através da felinização de um menino que bebe o leite do gato e se comporta como tal e que proseguirá, nas consequências devastadoras que quem viu O Fantasma (2000) não poderá ter esquecido – naquele homem-morcego que deambula pelo lixo. Mais recentemente tivemos Manhã de Santo António (2012) onde os jovens já não são gente, mas apenas zumbies que se passeiam pelas avenidas novas e agora, com A Última Vez essa animalização é levada ao extremo com o final apocalíptico onde todo o mundo vira bicho (e Guerra da Mata vira gatinho, muito parecido com o gatinho do referido Parabéns! que também protagonizava – esse gatinho era o gato da dupla de realizadores e morreu durante a rodagem de Morrer como um Homem, o qual lhe é dedicado). Deste modo a questão dos animais liga-se de forma óbvia com a questão da monstruosidade [Rodrigues’ previous features often feel like horror films, their monsters born of the characters’ insatiable desires] e da importância do corpo. Este último aspecto é interessantemente contornado quando em A Última Vez não vemos nenhum dos corpos que dão voz à narração, contrariando-se assim aquilo que vinha sendo um hábito no cinema de Rodrigues – em particular o sexo explícito, tantas vezes representado como algo malsão.
“Trabalhar o artificialismo total para um realismo eficiente. Actualmente penso que a grande maioria dos cineastas faz isto: tentam chegar ao realismo através do artifício” está é das frases que mais me ficou da entrevista que Adrian Martin deu ao Carlos Natálio, aqui para o À pala de Walsh, e nem de propósito encaixa no filmes de Rodrigues-Da Mata perfeitamente. Tendo-se proposto a fazer um documentário sobre a ‘Las Vegas’ do oriente, quando lá puseram os pés perceberam logo que não podiam fazer mais um documentário sobre Macau. Só conseguiriam oferecer algo ao espectador que lhe dissesse como é Macau se não mostrassem Macau como ela é, mas sim como eles a imaginaram, uma terra inventada onde o cinema é uma força espiritual sem freios. De tal forma que para além dos dois filmes que as viagens a Macau já deram os realizadores contam fazer mais dois, Fogo de Artifício e a Ma Kok Miu.
3 Comentários
Para quem diz não gostar de citações o exemplo desmente a afirmação. Todavia parece ser uma aventura, fazer cinema em Macau e valerá a pena. Aliás valerá sempre a pena quando acreditamos ser capazes.
Convém esclarecer que quando eu disse que “detesto filmes de referências” queria, na realmente, dizer que “detesto filmes de citações”, assim como não gosto de certos artistas que citam constantemente outros artistas como se não tivessem, eles próprios, uma verdadeira opinião. Reafirmo que em cinema, citações e referências são duas coisas distintas. As referências são inevitáveis quando se vê muito cinema… E, curiosamente, nem sempre nos apercebemos imediatamente dessas mesmas referências. No entanto, como Ricardo Vieira Lisboa muito bem observou, a carta que o personagem Guerra da Mata recebe da sua amiga Candy, é uma citação directa à carta que Joan Fontaine envia a Louis Jourdan em Letter from an Unknown Woman (Carta de Uma Desconhecida, 1948). E há outros momentos, no nosso filme, em que a citação é quase directa, embora adaptada, veja-se a voz off no início do Macao de Sternberg. Pode parecer que “o exemplo desmente a firmação”, como escreve JBL…
Continuo a afirmar que não gosto de citações mas, por vezes, elas são necessárias. No caso de A Última vez que vi Macau, resolvemos assumir esse risco.
Com os meus melhores cumprimentos,
JR Guerra da Mata
[…] obras de ficção: o filme que talvez melhor soube explorar a aura de mistério associada a Macau, A Última Vez que Vi Macau (2012), de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, precedido do atmosférico O […]