Com muita pena nossa, não pudemos acompanhar o Fantasporto da forma que gostaríamos, como fizemos para outros festivais. Em jeito de contrição, decidimos destacar uma das obras a concurso, um filme de que se tem falado muito por esse mundo fora, como se verá, com toda a razão. Da mesma maneira que o Fantas já não é bem um festival (só) de terror também Berberian Sound Studio (2012) se afasta do género, embora se sirva dele e dos seus códigos. E, contas feitas, assuste mais do que boa parte dos objectos mais puros.
De terror terror é Il Vortice Equestre, o filme que nunca se vê, aquele que um incauto engenheiro de som inglês vem sonorizar a Itália, história de bruxas a lembrar as de Dario Argento, um giallo à antiga. Aliás, tudo traz à memória o período dourado do terror italiano; a época de Berberian Sound Studio é essa, uns pastosos e mortiços anos 70 (muito bem encontrados na fotografia e personificados pelo protagonista, interpretado pelo excelente Toby Jones, muito bem posto e composto, a antítese da fanfarronice italiana), em que todo o processo de pós-produção sonora – a gravação dos diálogos, dos passos, dos gritos, das facadas em melancia que soam a um corpo a ser esventrado, a manipulação dos sons – é feito analogicamente. E há um prazer enorme de Peter Strickland, o realizador do filme, em mostrar este trabalho moroso e metódico, executado com um equipamento antiquado aos olhos de hoje; melhor, há algo de sensual, fetichista na maneira como são filmados os microfones, as mesas de mistura, as bobines. Até a banda-sonora dos Broadcast emula as que os Goblin fizeram para tantos filmes de Argento e as de outros músicos da altura (veja-se e ouça-se o genérico do filme dentro do filme).
Não se pense, porém, que Berberian Sound Studio se fica pela recriação exemplar de um certo cinema de um dado tempo. Nesse sentido, não é o habitual filme de época que se compraz em mostrar como era e como se fazia, parece antes habitado pelos fantasmas desse mundo (a que se junta uma triste coincidência: o facto da voz de Trish Keenan, a vocalista dos Broadcast, ser literalmente a voz de uma morta), como se Il Vortice Esquestre escorresse do ecrã e permeasse a cabeça do protagonista e, assim, o filme actual, o de 2012, o que espectador vê agora. Berberian Sound Studio centra-se em absoluto no ponto de vista de Gilderoy, o britânico tímido e cordato que se vê metido entre italianos de temperamento irascível, bastantes venais, com os quais tem tremenda dificuldade em lidar (atente-se na situação recorrente do pedido de reembolso do bilhete de avião ou na guerra surda com o velho funcionário do estúdio), um homem que ainda escreve cartas à mãe, a sua melhor amiga, cuja mente começa a ter problemas em distinguir a realidade do irreal, do sonho, do filme em que trabalha.
Como noutras obras em que a loucura é filmada por dentro, por assim dizer, caso de Spider (2002) de David Cronenberg, Berberian Sound Studio é escorregadio e incerto, fazendo por baralhar o espectador. A própria montagem estabelece a confusão, passando de cenas em que a personagem está acompanhada no estúdio para outras em que está sozinha no quarto, de cenas plausíveis para outras fantásticas, sem qualquer corte, fluindo de uma realidade para a outra com cada vez menos atrito. No fim de contas, tudo pode ter acontecido, mesmo não ter acontecido coisa alguma e ser tudo imaginação de Gilderoy, que bem pode ser, afinal, um realizador britânico da actualidade, como quem diz, bem pode ser Peter Strickland. Não se trata de terror psicológico, antes de terror fantasmagórico.
Berberian Sound Studio passa no Grande Auditório do Teatro Rivoli na próxima quinta-feira, dia 7, às 23:15.