No espaço de um ano esta é a terceira adaptação do conto da Branca de Neve que os irmãos Grimm recolheram do folclore popular germânico e que hoje em dia associamos mais depressa à adaptação animada da Disney. O filme que se estreia agora é Blancanieves (Branca de Neve, 2012), mas antes tinham já estreado Mirror, Mirror (Espelho Meu, Espelho Meu! Há Alguém Mais Gira do Que Eu?, 2012) e Snow White and the Huntsman (A Branca de Neve e o Caçador, 2012). O olhar do realizador e argumentista Pablo Berger destaca-se dos filmes referidos, mas rapidamente se perde noutras ideias feitas.
É curioso reparar que cada um destes filmes é sintomático das suas condições de produção: Snow White and the Huntsman é uma tentativa de reproduzir os resultados de bilheteira da adaptação de Tim Burton da Alice no País das Maravilhas, repetindo-se o esquema da heroína guerreira; Mirror, Mirror é o resultado das obsessões do seu realizador, Tarsem Singh, que num desejo constante de produzir imagens fofinhas se esqueceu como se contam histórias; e por fim Blancanieves surge como a versão espanhola de The Artist (O Artista, 2011).
Será certamente redutor encarar o filme desta forma, mas é impossível negar o facto de Blancanieves ser um filme mudo e a preto e branco que sai exactamente um ano depois do filme de Michel Hazanavicius. O leitor atento poderia então retorquir, mas o Tabu (2012) de Miguel Gomes é também a preto e branco e na sua segunda parte não tem diálogos, isso faz dele um ‘cópia’ de The Artist? Claro que não, mas não será desinteressante contrapor os filmes. Tanto The Artist como Blancanieves olham para o cinema mudo como uma época remota e cujos filmes têm pouco a acrescentar, fecham o conhecimento cinéfilo num bolo bonito e bem arranjado (alguém terá dito que o primeiro era a manifestação em filme do guia hipotético – Cinema Mudo para Totós) e oferecem-nos a coisa embrulhada e pronta a servir. Opostamente, Miguel Gomes usa a memória do cinema mudo para fazer cinema de agora, não como um monge copista mas como uma reinterpretação alegórica das atmosferas de então (um romantismo que escorre e uma nostalgia que não se cura). Os primeiros apresentam o mudo com medo que provoque alergia (e o filme de Pablo Berger é exímio em retirar os alérgenos, quer seja através de uma montagem que tem mais de publicitária do que ‘russa’ – como fica bem sublinhado nos flashbacks e pelos momentos videoclip –, quer seja por uma fotografia imaculada e uma câmara ao ombro a gritar filme de hoje) e o segundo proclama ao mundo o amor que tem pelos filmes que admira. Miguel Gomes com Tabu assume o epíteto de cineasta primitivo no sentido em que tenta ir ao início e recomeçar daí (interessante reparar na curta Ashes (2012) de outro cineasta dito primitivo, Apichatpong Weerasethakul – que estreará nas salas portuguesas dentro de poucos meses – onde parece que o realizador anda à procura do frame rate correcto), sendo o mudo uma matéria de trabalho, uma porta aberta para um cinema jovem; enquanto que Berger e Hazanavicius estão mergulhados no cinema actual e as suas homenagens são olhares de estrangeiro.
Terminado este parêntesis, retomo o conto dos senhores Grimm e cedo percebo que estas novas adaptações têm todas um ponto comum: a reconfiguração da mulher de fada do lar para guerreira da vida. Se, como referi, se veste a Branca de Neve numa armadura e se filma tudo como uma Crónica de Nárnia com batalhas épicas junto à praia, em Blancanieves, a menina doce (que no filme da Disney a primeira coisa que faz quando chega a casa do anões é escandalizar-se com a sujidade e iniciar uma limpeza furiosa de todos os recantos da cabana) é transformada no símbolo maior da masculinidade latina, uma matadora. E é aqui que me parece que o filme de Berger se distingue, na forma como reinventa a história clássica à luz da Espanha do início do século passado e assume o horror da versão literária (no conto original a madrasta não cai de uma escarpa como a minha memória infantil recorda, é convidada para o casamento da afilhada e é obrigada calçar um par de sapatos em brasa e a dançar com eles até à morte) num (melo)drama em que a morte está sempre presente e sobre a qual não repousam beijos redentores.
Esta senda do escurecimento das histórias infantis não vem de agora, e aqui não se cometem grandes rasgos de malvadez, mas há um aspecto interessante que não posso deixar de sublinhar. A câmara (objecto) surge várias vezes e sempre com uma conotação negativa: é o flash que provoca o ataque do touro, é uma sessão fotográfica que torna o herói-trágico em bobo-cadáver e é através de um fade de uma objectiva no olho da protagonista que revela o flashback – em plano subjectivo – do assassínio do pai. Ou seja, a câmara está umbilicalmente ligada à morte e Pablo Berger revela assim esse gosto pelo trágico que o filme prova no início, e não larga mais.