A cada filme de Jacques Audiard, vai-se sedimentando a ideia de que, apesar das aparências, é um classicista (e de que tem uma ligação muito forte com o cinema americano). A câmara à mão, o mais das vezes inquieta (doutras, queda-se lentamente nalguma imagem), as brincadeiras com o foco, a fotografia naturalista, técnicas dominantes no cinema actual, distraem da essência.
Depois de De battre mon coeur s’est arrêté (De Tanto Bater o Meu Coração Parou, 2005), remake confesso de Fingers (Melodia para Um Assassino, 1978), uma recuperação dos “gloriosos” anos 70 americanos, e de Un prophète (Um Profeta, 2009), um filme de gangsters (com laivos dos Godfather, um remake velado), mascarado com alguns temas socialmente sensíveis. Este último De rouille et d’os (Ferrugem e Osso, 2012) é um melodrama à antiga, de um tempo anterior a Douglas Sirk, que representa uma espécie de pós-modernidade no género, portanto, distante do praticado pelos seguidores do realizador alemão (Fassbinder, João Pedro Rodrigues, Xavier Dolan).
No osso, é a história de duas almas feridas (física e/ou psicologicamente) – um jovem belga que emigra para o Sul de França com o filho, de uma delicadeza que só os brutos e embrutecidos são capazes (interpretado por Matthias Schoenaerts, sem preocupações de adocicar a personagem); uma belíssima francesa (uma Marion Cotillard longe de cabotinices recentes), que gosta de se sentir desejada e, embora tenha namorado, vai a discotecas para excitar os homens (e apenas isso) – que se encontram na desgraça. Não fosse o comeuppance de Stéphanie – perder as pernas num acidente de trabalho (com orcas); deixar de despertar desejo (como naquele cena em que um homem lhe pede desculpa ao ver que tem pernas biónicas) – provavelmente ela jamais ligaria a um rude segurança que a havia levado a casa uma noite qualquer. Provavelmente, nem se lembraria dele. A bem da verdade, nem ele, demasiado entretido entre biscates e o sonho de lutar, se lembraria dela. De resto, a razão por que ela decide telefonar-lhe é um tanto misteriosa: será por ter sido ele o último homem a desejá-la antes do acidente?
O certo é que este encontro entre um corpo frágil (é intensamente perturbante a cena em que ela percebe que lhe amputaram as pernas) e um corpo forte (que nem se quebra nas ferozes lutas em que se envolve) se dá. E nesse encontro de corpos, num filme em que estes parecem sempre em perigo (e a sua fragilidade é posta a nu), atinge-se uma qualquer ligação espiritual (a que se costuma chamar amor). Mesmo que ele não tenha grande sensibilidade (parece alheado das consequências que as suas acções e palavras possam ter), é o único que a deseja verdadeiramente, sem pingo de perversão; mesmo que ela lide mal com a sua nova condição, de diminuição do seu ser (em todos os sentidos), é a única que reconhece que a força física dele é também força de carácter.
Como em qualquer bom melodrama, no final teme-se que os dois não vão ficar juntos, afastados pelas contrariedades da vida (boy meets girl, boy loses girl). É de novo um acidente (desta vez com Sam, o filho de Alain, com quem este tem dificuldades em relacionar-se, por não saber demonstrar o seu amor) que vai selar o destino.