Não será com espanto que no final de En kongelig affære (Um Caso Real, 2012), quando já descem os créditos finais, encontramos um nome familiar no conjunto de produtores executivos: Lars Von Trier. Já lá vão mais de 15 anos que o Dogma fez a sua aparição e logo desde início percebemos que não era coisa para durar. De qualquer forma, para quem reverenciava os dez mandamentos do voto de castidade que o grupo impunha (alguns deles tão ridículos como não se poder filmar assassínios ou usar props) aparecer agora como mentor de um dramalhão de época à inglesa é, no mínimo, intrigante.
Antes de irmos ao filme, e convenhamos não há muito para onde ir, debrucemos-nos sobre o referido Dogma. Formado inicialmente por Trier e Thomas Vinterberg [que estreou há duas semanas Jagten (A Caça, 2012)] o propósito era fazer filmes que fizessem o contraponto aos produtos de orçamentos milionários, sem o peso do academismo (ou outro qualquer) e a custo zero. Mas, logo à partida, o manifesto foi usado como manobra de marketing inteligentíssima na celebração do centenário da criação do cinema, dando atenção a um conjunto de cineastas dinamarqueses que, fora o próprio Trier, pouco ou nada haviam feito. O resultado está à vista, Lone Scherfig faz hoje comédias românticas nas Américas, Susanne Bier faz dramas que ganham prémios da Academia e Von Trier é mais conhecido que nunca (e faz filmes cada vez piores). O que ficou, além de uma catapulta para os participantes, foi pouco, ou muito pouco.
Feito o parêntesis introdutório podemos olhar para a obra de Nikolaj Arcel. O que cedo percebemos é que esta é uma história que já ouvimos dezenas de vezes: uma duquesa casa com um príncipe de uma terra estrangeira e é muito infeliz por lá, até que aparece-lhe um bem formado serviçal – neste caso um médico, interpretado por Mads Mikkelsen, a estrela do cinema dinamarquês – e não tarda muito já temos caso – um caso real. Note-se que aqui tanto é real o caso, no sentido em que se trata de realeza, como é real a história que se conta, uma vez que se pretende fazer um retrato do reinado de Christian VII. Se já conhecemos a história, então é possível que o tom seja diferente do que estamos habituados. Mas nem isso. Os bastidores da corte nunca chegam ao intrincado pervertido de Stephen Frears, os passeios pelo bosque não são nem romântico-virtuosos como os de Joe Wright nem infinitamente sedutores como os de Pascal Ferran. En kongelig affære tenta ser um bocadinho de todos e não consegue nunca decidir-se por nenhum. Demora um tempo infinito na reconstituição histórica e torna lateral o triângulo amoroso, obrigando-nos a mais de duas horas de filme que parecem estender-se interminavelmente. Se há algumas ideias de composição do plano ou até de introdução de perspectivas nos pensamentos iluministas tudo isso é arrasado por uma mão tão pesada que esmaga tudo (muito ao gosto da Academia de Hollywood que nomeou o filme na categoria de Melhor Filme Estrangeiro).
Talvez sobreviva à mão pesada apenas um actor de nome impronunciável, Mikkel Boe Følsgaard – que o plantel de jurados da berlinale do ano passado soube premiar. Interpreta ele o dito rei encornado, mas a composição é muitíssimo eloquente. O papel é o de rei atolambado controlado pelos seus conselheiros, mas há aqui uma mistura de vulnerabilidade e de incapacidade de aceitar o próprio poder e o próprio crescimento que são impecavelmente construídas. Mas de novo, o olho de Arcel não deixa nada pela metade e, por isso, tudo aquilo que era delicado no trabalho de Følsgaard é terraplanado por um simbolismo infantil que reduz ao ridículo o rei perturbado.