Um dos momentos áureos da cinefilia é quando, dentro do rodopio de filmes que nos alimentam o olhar, sentimos que o cinema se torna, de facto, superior à vida pela capacidade de dizer tudo por uma imagem, de nunca morrer na continuidade do seu movimento, ou de nos fazer emocionar pelos seus momentos de silêncio.
À medida que vivemos, essa nossa inocência transforma-se numa maturidade, e o nosso olhar, já pacificado, aprende a viver sob esse encanto e aceitar que a vida, ao contrário desses filmes, terá um fim, e que é por ela que devemos viver. E transferir então essa paixão para os corpos que nos rodeiam no dia-a-dia, para as outras vidas que se cruzam com o nosso olhar fora da sala de cinema. Talvez seja essa a solução: a aprendizagem que o cinema nos dá para sabermos olhar para a vida e senti-la, mais do que uma projecção, como uma fonte para toda e qualquer criação.
Ainda assim, essa nossa imperfeição faz com que seja impossível recorrermos às capacidades de uma montagem racional dos nossos gestos, dos nossos actos. O cinema, por responder sempre à capacidade emocional do nosso olhar, vive também por esse recurso. E pela capacidade de repetirmos ou melhorarmos o que fazemos e dizemos, de encontrar a forma certa para conseguirmos aquilo que desejamos. Não será essa a nossa busca constante? Como quando perguntam a Bernstein, em Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), o significado das últimas palavras de Charles Foster Kane no seu leito de morte, e percebemos que, antes que a vida termine, nos perguntamos sobre aquilo que gostaríamos de ter feito e não fizemos. Naturalmente, uma questão de sentimentos.
Na vida, não podemos voltar atrás e remontar as nossas cenas, remediar aquilo que gostaríamos de ter feito e não assumimos – por medo, por timidez. Mas essa é também uma das suas virtudes, pois parece que ela nos pede a coragem para recorrermos à improvisação, para pegar no que sentimos e pôr esses sentimentos em acção. Method acting? Método de vida.
Nem o cinema ignora esse poder. Porque se existe algo que o cinema nos ensina, é que as palavras acabam por ser o menos importante quando soltamos esses sentimentos. Se Bernstein teve de recorrer a elas para lembrar uma paixão não declarada que irá relembrar até ao fim da vida, em It’s a Wonderful Life (Do Céu Caiu Uma Estrela, 1946), James Stewart não precisou delas. Ao chegar a casa da sua paixão secreta, Stewart frusta-se consigo mesmo por não conseguir usá-las para mostrar aquilo que sente. Donna Reed, o objecto do seu interesse, muito menos. Mas aquilo que o cinema nos lembra é que, para os momentos em que a vida se abre, as palavras são o menos importante. Estas acabam por ficar para o pretendente de Reed, do outro lado da linha de telefone, enquanto fala, ao mesmo tempo, para estes dois. Stewart e Reed esquecem as palavras – os seus olhares, dominados pelos sentimentos que o medo esconde, ocupam o espaço que elas não sabem preencher. E quando o telefone cai ao chão, é a vida a acontecer. “O que eu quero?”, pergunta Stewart, agarrando Reed pelos braços. Nada mais é dito do que os seus nomes, toda a verdade é dita pelos seus olhares já apaixonados.
Será que a vida poderia ser mais assim – não termos de recorrer às palavras para deixar que a vida aconteça? No fundo, perceberemos que não somos obrigados a traír esse sentimento. E que se formos fiéis a nós mesmos, nada se esconde num coração que quer falar. É essa a nossa dádiva, nem que seja pelo olhar, a forma silenciosa de montarmos os nossos dias, os nossos gestos, os nossos anos. E nos momentos de silêncio ou de hesitação, nunca esquecermos: It’s a wonderful life.