Existem (pelo menos) dois ódios consensuais produzidos na experiência do século que passou: o programa eugénico nazi e a pedofilia. Se um diz respeito ao “aperfeiçoamento” da raça humana pelos métodos que todos conhecemos, o outro, a pedofilia, trata precisamente da identificação de uma degenerescência, de um comportamento desviante face às regras impostas pelo processo civilizacional, e, mais concretamente, tal como definidas pelo dispositivo da sexualidade.
Desde Peter Lorre e M (Matou, 1931) de Fritz Lang que um dos “monstros” que escapavam à galeria da Universal era precisamente o pedófilo que perseguia as criancinhas na sombra. Desde então a personalidade do pedófilo tem sido objecto de um escrutínio ficcional absolutamente detalhado: o pedófilo com complexo de culpa, o pedófilo homem de família, o pedófilo doente, o apaixonado, o “animal”, etc, etc. O cinema parece rondar esta figura não já apenas no sentido de lhe denunciar a culpa, mas também para se chegar perto e perceber as razões incompreensíveis à maioria: a atracção sexual por crianças.
O novo filme do dinamarquês Thomas Vinterberg, nome importante da rebeldia dogma 95, não deixa de fazer parte deste universo de exploração da pedofilia, mas integrado no seu microcosmo de denúncia e acusação. Como em Festen (A Festa, 1998), filme pelo qual é conhecido, já lá vão 15 anos, a pedofilia é um pretexto para falar da reacção de uma família, e neste caso, em Jagten (A Caça, 2012), de uma comunidade local de uma pequena cidade dinamarquesa. E quem fala em reacção, fala em rumor, em descriminação tudo em caudal crescente despoletado pela abertura da caça ao pedófilo motivada pela (falsa?) acusação que uma menina, Klara (a presença enorme e radiosa de Annika Wedderkopp) faz sobre abusos sexuais que teria sofrido de Lucas, um homem de quarenta anos, divorciado, funcionário do jardim-escola e melhor amigo do pai da criança.
A Vinterberg interessa explorar a questão do pedófilo que não o é, inocente, num esquema de drama psicológico um pouco anacrónico, sem manifestações de um estilo aparente, e que toca o processo kafkiano da falsa culpa e a escalada de violência [a dita “caça”, à la Deliverance (Fim-de-Semana Alucinante, 1972) ou até puxando a corda, Straw Dogs (Cães de Palha, 1971) ou Dogville (2003)]. Claro que falamos de bússolas que orientam a cinefilia do espectador, sem nunca conseguir este filme de Vinterberg aproximar-se verdadeiramente desse lugar de predação e discriminação comuns a estas obras. Seja como for, a histeria do grupo ante um “pedófilo” que vive na “casa ao lado” é toda ela muito construída, a maior parte das vezes a partir da adaptação dos lugares comuns de uma perseguição de massas, restando como espaço de alguma individualidade (no seio do colectivo) o desempenho de Mads Mikkelson [o vilão de Casino Royale (007- Casino Royale, 2006)] devidamente premiado em Cannes este ano. É ele, trabalhando um espaço de subtileza e fragilidade, o que permite um pouco contrapor o constante estado de choque e caos que Vinterberg quer a todo o custo impor no espectador.