A propósito da estreia de Quarta Divisão (2013), o Ricardo Vieira Lisboa e o João Lameira entrevistaram Joaquim Leitão, um dos cineastas portugueses com mais êxitos em carteira. A conversa, que decorreu nos escritórios da MGN, a produtora de Tino Navarro, por entre cartazes de obras de José Fonseca e Costa e do próprio Leitão, centrou-se mais na obra do realizador do que propriamente no seu último filme. Falou-se de Portugal, do cinema português, da Escola de Cinema, da geração de 80 e, sobretudo, da visão que Joaquim Leitão tem do cinema.
Ricardo Vieira Lisboa: O Joaquim Leitão foi aluno do conservatório e hoje em dia o conservatório é muito diferente do que era. De que forma encara o ensino do cinema em Portugal?
Eu não posso responder muito concretamente porque não estou na escola de cinema e houve uma altura em que dei aulas, mas deixei-me disso – não tenho muito jeito. Por isso não estou muito por dentro do que se passa. Eu acho que o problema das escolas de cinema em geral, e também em Portugal, é que para fazer uma boa formação, os cursos e as instituições deviam ter um nível de equipamento e de meios que normalmente não têm. Algumas delas têm equipamento, mas depois não têm meios para os usar. E as escolas de cinema têm muito que ver com a prática, há uma parte que se pode “ensinar”; não se trata de uma ciência. As pessoas devem ser estimuladas a desenvolver as suas próprias visões e os seus próprios gostos. E isso é complicado. Por outro lado, as pessoas que dão aulas de cinema são pessoas que estão há muito tempo fora do próprio meio – não realizam ou não trabalham nas suas componentes técnicas regularmente – e isso cria uma distanciação do estado da actividade. No caso das escolas de cinema que são mais direccionadas a formar criadores, nomeadamente realizadores, há o problema desagradável da pequenês do mercado. Estão-se a receber pessoas que acreditam que vão ter uma carreira, e algumas com talento, mas o mercado é de tal modo restrito que as pessoas vão ficar entaladas. Acho que as escolas deviam restringir as entradas, porque isso permitiria uma formação mais prática e de uma forma mais intensiva. Mas eu não sei como se resolveria este dilema: as pessoas têm direito a seguir a vocação que desejam, mas acho que é uma situação que se está cada vez mais a agudizar.
João Lameira: Diga-me uma coisa, foi aluno do António Reis? É dessa geração?
Sou da geração logo a seguir ao 25 de Abril. O Conservatório é criado um pouco antes do 25 de Abril e depois pára na sequência daqueles eventos todo. Eu acabei por ir parar ao Conservatório vindo da faculdade de direito onde não havia nada, passávamos o tempo todo em reuniões gerais de alunos. Acabei por ir para lá um bocadinho como hobby. A vantagem do conservatório naquela altura era a relação entre professores e alunos. Grande parte dos alunos, eu era o mais novo de todos, já tinham carreira e gostos formados – ou deformados. E havia ainda outra vantagem enorme, grandes quantidades de película. Mas a grande vantagem dessa geração era haver muita gente ligada à profissão e que era muito apaixonada pelo cinema. Eu não me identificava nada com os gostos do António Reis, mas era para mim um prazer imenso ir às aulas dele. Havia uma determinada visão, que embora não fosse a minha, me esclarecia, nem que fosse por contradição. Isso para mim foi muito útil e a escola era muito aberta. Foi lá, e graças a pessoas como o António Reis, que eu passei do lado dos que gostam de cinema, para os que querem fazer cinema, que são apaixonados por cinema.
RVL: Ao longo dos seus filmes foi tendo vários assistentes de realização que hoje são realizadores importantes: Pedro Costa, Jorge Cramez, Pedro Caldas. Gostava de saber como é esta relação, aliás entrou como actor na primeira longa do Jorge Cramez, O Capacete Dourado (2007). Mantém uma ligação com as pessoas que trabalham consigo?
Eu mantenho ligação com as pessoas que trabalham comigo, evidentemente. Com as pessoas que se tornam realizadoras a coisa é mais complicada porque eles próprios têm as suas carreiras e não estão disponíveis para retomar posições de assistência. Todas estas pessoas que tu falaste foram pessoas que escolhi porque senti que tinham capacidade para desempenhar as funções de que estavam encarregues no filme. Eu sou uma pessoa muito aberta, e cada vez mais, a ver isto como uma criação colectiva. Eu sou a ponta da pirâmide, mas gosto que se as pessoas que trabalham no filme sejam criativas e se têm ideias que mas digam – e isso acontece – e depois eu logo vejo se isso se enquadra na minha visão do filme. Isto foi uma coisa que foi acontecendo. Nos meu primeiros filmes, também porque era mais inseguro, estava muito mais fechado a qualquer mudança daquele meu plano de princípio. Eu ia para a rodagem com as coisas muito mais certinhas na minha cabeça e o meu trabalho nessa altura era tentar reproduzir esse plano, o que por vezes não era fácil. Conforme fui ficando mais seguro da minha visão fui sendo capaz de adaptar cada vez mais a parte técnica, da organização da rodagem, àquilo que acontecia de espontâneo no plateau. Todas essas pessoas que mencionaste, e muitas mais, tiveram todas a sua quota parte de trabalho técnico eficaz e parte desses filmes são também delas. Talvez alguns deles não gostem que eu diga isto [risos].
JL: Mas havia essa ligação na vossa geração…
Não… a única pessoa que é da minha geração é o Pedro Caldas, que começou como técnico de som e foi como tal que trabalhou nos meus filmes. O Pedro Costa ainda foi uma pessoa que frequentou a Escola de Cinema ao mesmo tempo que eu, embora estivesse num ano à frente; as outras pessoas também são oriundas da Escola de Cinema e há uma ligação que fica sempre, mas não é a minha geração. Da minha geração, trabalhei muito tempo com o director de fotografia Daniel Del Negro que era desse tempo, e que depois também foi professor na Escola de Cinema, foi das pessoas com quem mantive uma relação mais próxima, em termos de trabalho. Depois outro realizador, que também é professor na Escola de Cinema, é o Vítor Gonçalves, com tenho uma relação de amizade e cumplicidade que se manteve ao longo do tempo, mas que não tem muito que ver com a execução dos filmes. Tem mais que ver com o falar de cinema em geral, do que propriamente sobre cada um dos projectos em particular.
RVL: O Joaquim Leitão também participou, como actor, em vários filmes de Fernando Lopes e António-Pedro Vasconcelos. De que forma é que isso alterou a sua forma de realizar?
Não me alterou muito. Essas pessoas são pessoas que já estavam na actividade e com quem eu sentia alguma cumplicidade, e provavelmente da parte deles em relação a mim, e portanto criámos relações. Mas a razão para os convites para trabalhar como actor vinham da Escola de Cinema, onde não tínhamos muita gente para representar e acabávamos por entrar nos filmes uns dos outros. À parte tínhamos os alunos da Escola de Actores e da Escola de Bailado, que era no mesmo edifício na altura, mas nem sempre encaixavam nos papéis e chamávamo-nos uns aos outros. E portanto fui ganhando experiência e fui sendo chamado. A parte que é útil em ter trabalhado como actor é ter percebido o que é osso de representar e a partir daí passei a apostar muito mais no lado dos actores. Ao início não lhes dava muita liberdade, tinha uma ideia muito fechada do que gostava que eles fizessem. Mas esta experiência e o contacto com actores que tinham outra atitude, o caso do Joaquim de Almeida que tinha uma formação diferente, fez-me perceber que devia apostar nos actores e dar-lhes liberdade para não se acomodarem apenas à minha visão do personagem. Mas é como qualquer outra participação.
JL: É engraçado que o seu primeiro filme, Duma vez Por Todas (1986), não tem actores profissionais, é o Pedro Ayres de Magalhães e a Vicky.
Vocês são bastantes mais novos, mas naquela altura havia uma relação muito estranha entre os actores e os realizadores, o cinema português em geral. Havia a ideia de que os actores profissionais eram teatrais e aquilo não era o que se queria. Para se evitar isso ia-se buscar actores fora da actividade, mas depois quando se escolhiam pessoas com formação teatral e carreiras longas eles próprios sentiam-se estranhos, vinham com esse peso em cima. Mas parece-me que grande parte dessa ideia vinha dos próprios realizadores e argumentos que eles usavam. Eram realizadores que já tinham essa opção de princípio e era isso que pediam aos actores e as próprias cenas não davam muito para fugir a isso. Conforme esse mal entendido foi sendo limado acho que essa parte se limpou.
RVL: Os portugueses têm muita dificuldades de ouvir o português no grande ecrã e o Joaquim Leitão escolhe muitas vezes personagens estrangeiras que falam inglês ou espanhol, é uma forma de tentar contornar isso?
Os meus primeiros filmes, são filmes que tinham muito que ver com o meu estado de espírito na altura: o que se passava nos filmes era mais interessante do que se passava na vida real. As histórias são de pessoas comuns que acabam por ser confrontadas com um mundo que tem muito que ver com o mundo do cinema. É essa ideia que estava por trás dos filmes. Desde a Escola de Cinema que eu tenho um gosto muito ecléctico e gostava de coisas que não era muito comum gostar-se. Lembro-me que quando entrei na Escola havia uns exames de aptidão, vários testes e conversas com os professores da altura. Para se ver o estado de espírito da altura, eu disse que gostava do [Stanley] Kubrick e gostar do Kubrick nessa altura era uma coisa completamente inaceitável. Mas mais, eu gostava do [Clint] Eastwood como actor. Isso aí era uma coisa… o Eastwood era fascista. Não se podia gostar do Eastwood. Eu tinha uma grande fascínio pelo cinema americano, não só pelo clássico como pelo contemporâneo, e isso reflecte-se nesses meus primeiros filmes.
RVL: O Joaquim de Almeida, a Cristina Câmara e a Ana Bustorff também são actores que como dizia têm essa forma diferente…
Não, não. Eu escolho os actores por duas únicas razões, porque são bons actores e porque se encaixam bem nos papéis que eu escrevi ou cujo argumento estou a filmar, e esses são os meus únicos critérios. Evidentemente, se são pessoas com quem já trabalhaste e das quais és amigo, e já sabes como eles vão funcionar, é melhor. Há uma comparação que não é minha, mas também não sei de quem é: os actores são como um instrumento e se já sabemos como eles tocam é mais fácil compor a coisa, é mais fácil compor o esquema. Já sabemos como vai tudo soar. Se posso trabalhar com pessoas que encaixam nos papéis e são bons actores e com as quais eu gosto de estar e das quais já sei com que posso contar, óptimo. O que não impede que a alternativa não seja também boa, trabalhares com uma pessoa que não conheces, que te vai dar uma experiência que a principio não conheces, é também muito apaixonante.
JL: Tínhamos falado que tinha feito vários filmes como actor. Essas participações são quase sempre cameos, mas há um filme em que tem um papel maior, Jaime (1999). Como foi essa experiência?
A experiência foi… há um filme que não é muito conhecido em que eu até tenho um papel mais importante, o meu primeiro filme.
JL: Qual é o filme?
Um S Marginal (1983) do José Sá Caetano, que eu aconselho, quem o vir terá uma experiência pelo menos original, não sei se está disponível. No caso do Jaime, eu gosto imenso de representar porque não só foi uma coisa que me fez aprender muito na minha actividade de realizador, mas há um lado de enorme prazer. Faz parte do prazer de ser actor, que é aquela coisa extraordinária de ter uma cena em que estás a chorar e enquanto estás a representar estás a sentir aquela emoção e ao mesmo tempo estás a sentir imenso prazer naquilo que estás a fazer. Depois há outro aspecto, a actividade de realizar é muito apaixonante, mas também muito cansativa e com trabalho muito intensivo e não me permite desfrutar de uma coisa que eu gosto imenso: o ambiente do plateau. Eu gosto muito dos ambiente de rodagem, gosto muito das pessoas e quer corra bem quer corra mal aquilo é sempre muito interessante. Enquanto realizador não posso desfrutar disso da mesma maneira. Assim posso estar numa rodagem sem ter o mesmo peso de responsabilidade, consigo desligar, acabei de representar e pronto, estou à espera que comece outra cena e não tenho a preocupação em saber o que se passa, se começou a chover ou não. No caso do Jaime, como já tinha uma grande relação com o António-Pedro e como o papel era um que eu achava que podia fazer – eu tenho noção das minhas limitações e só aceito aquilo que acho que consigo fazer – e deu-me prazer e acho que o filme correu bastante bem, não fiz propriamente má figura e o filme foi bem recebido.
RVL: Há pouco estava a dizer que os seu filmes iniciais estavam mais próximos do mundo do cinema, quando escreve um filme pensa logo no género do filme?
Não… não é possível eu fazer-te uma descrição exacta. Não é um processo completamente previsível. Há um momento qualquer em que eu acordo e … eu vou pensar, acabei o meu último filme e há uma série de coisas que me andam a preocupar, que têm que ver com o que se passa com o mundo, ou problemas que eu oiço, ou coisas que eu não consigo perceber, coisas cuja lógica me escapa. Obrigas-te a estudar e a tentar perceber o lado de cada um dos personagens, pões-te do lado de cada um, dos bons, dos maus, dos assim-assim, das mulheres, dos homens que é um exercício com os seus limites. Eu na escrita tento defender os personagens todos e tentar fazer que eles sejam os mais interessantes e complexos possível, pequenos papéis ou grandes. A maneira como eu decido o filme que eu vou fazer é a junção de um tema com uma personagem ou com uma ideia mínima de história. Há um momento qualquer em que somo um mais um e é aí que eu percebo o que vou fazer e é este o pano de fundo e é este o personagem que vou seguir. Mas depois depende muito do meu estado de espírito na altura e aquilo que acho que é mais eficaz para abordar aquela história e aquele tema. Eu sinto-me tão confortável em fazer comédia como fazer um filme mais de acção ou melodrama, não tenho problema nenhum. E não gosto muito de fazer filmes que sejam iguais aos anteriores, gosto de fazer diferente. Não gosto muito de me repetir nos géneros e ainda me faltam alguns e espero ter oportunidade para isso.
JL: Não sei se é bem uma crítica, é um facto, os seus filmes falam sempre dos assuntos do dia. O Quarta Divisão fala da pedofilia, que já não é bem um assunto do dia, e da violência doméstica. Procura esses temas?
Eu não os procuro. Isto pode ser um bocadinho difícil de compreender para quem não está nesta actividade; eu não te consigo explicar porque é que faço um filme. Não é um processo racional. Nunca me passou pela cabeça: então agora o que ficava bem fazer nesta altura? O que é que as pessoas gostariam de ver nesta altura? ou o que venderia nesta altura? Não… é uma coisa que tem um lado de completa espontaneidade, ou se dá uma clique na minha cabeça ou… Eu de facto sou uma pessoa que se interessa pelo que se passa à minha volta e entendo que a minha felicidade só é possível se for a felicidade das pessoas à minha volta. Embora tenha grande fascínio pelo cinema americano, nunca me passou pela cabeça fazer filmes nos Estados Unidos. Eu gosto do meu país e acho que somos muito melhores do que por vezes achamos. Não falo em termos artísticos, somos melhores como civilização. O exemplo mais óbvio é termos tido 40 anos de ditadura e quando se derrubou a ditadura morreram apenas 3 pessoas no processo. Quase um milhão de retornados voltaram para portugal e nós lá nos fomos safando, lá os conseguimos integrar. Isto é um sinal de sofisticação que não nos podemos esquecer. Eu gosto muito de ser português e gosto de fazer filmes que lidem com a realidade portuguesa.
RVL: Mas sente que os seus filmes podem ser lidos como uma espécie de expiação nacional? Penso em particular no Inferno (1999).
Mas não, percebo o que quer dizer e percebo a sua leitura. Acho que a gente tem que falar das coisas que nos preocupam, dos problemas que não estão resolvidos ou das coisas que escondemos. Em relação à Guerra Colonial… eu não fui mas estive quase a ir – o meu irmão fez a guerra e conheço mais ou menos bem o que se passou (com a ressalva que quem não esteve lá nunca pode saber como foi). Para aquela geração aquilo foi uma coisa horrível e também uma das melhores alturas das vidas deles, a mais intensa, não necessariamente a melhor. Aquela guerra era uma perfeita estupidez, mas, mesmo tendo-se feito crimes, foi obra aguentar uma guerra em três frentes, com o tamanho do nosso exército, durante mais de dez anos. Em termos de eficácia é de bater palmas. Fazendo ressalva que a guerra é uma coisa que nunca devia ter acontecido, da maneira como aconteceu, a gente não se portou mal.
JL: Disse que os primeiros filmes são mais sobre o mundo artificial do cinema. O Duma Vez por Todas é quase um noir lisboeta: tinha esse prazer de trabalhar com dos códigos do género?
Sim, é o que tenho estado a tentar dizer. Eu tenho um grande fascínio pelo cinema americano, embora goste de filmes de muitas outras origens. Para mim o Pedro Costa é tão eficaz como o James Cameron: o género de filmes que eles fazem é levado até ao fim com uma coerência que eu consigo admirar. Aquilo que eu vejo com mais prazer é o cinema americano, e o seu imaginário: a música… Faz muito parte da minha geração, era aquilo que ouvíamos… e acabou por nos marcar e fascinar. Mas gosto muito de ser português, a não ser antes do 25 de Abril para fugir à guerra, nunca me passou pela cabeça sair de cá. É isso que eu tento fazer. A certa altura na minha vida passei a achar que o que se passava no mundo era mais interessante do que se passava nos filmes, mas não é uma reflexão sobre cinema, tem que ver com a minha evolução como pessoa.
JL: O que se nota, principalmente no Duma Vez por Todas é que há um imenso prazer em brincar com o cinema, se calhar é por ser o primeiro filme.
Esse prazer mantém-se até agora, brinca-se é de maneiras diferentes e com coisas diferentes. Os primeiros filmes têm sempre características muito particulares, há lá sempre algo que é um bocadinho diferente, também nos defeitos. Esse para mim teve um lado de muito trabalho, quando o fiz tinha uns 30 anos, ou seja, eu tinha 25 anos de ver cinema na cabeça e isso estava lá tudo acumulado à espera de sair. Provavelmente o que tu sentes é essa acumulação de coisas para dizer e de planos e cenas para filmar e de personagens.
RVL: O Joaquim Leitão trabalhou várias vezes para televisão, o Adão e Eva (1995) e o Até Amanhã Camaradas (2005). Acha que hoje em dia a televisão é uma alternativa à ficção em cinema?
Eu fiz várias coisas para televisão, aliás a minha primeira coisa profissional foi para televisão, foi uma encomenda para a RTP2, O Aprendiz do Mar que correu muito mal, era uma estreia… Foi uma encomenda de quando o Fernando Lopes era o director da RTP2, fazia parte de uma série dedicada aos contos tradicionais portuguesas – o João César Monteiro também tinha um filme lá e mais pessoas da Escola de Cinema. Eu já fiz imensas coisas, já fiz campanhas políticas…. mas não consigo distinguir, a minha atitude é exactamente a mesma. O que evoluiu muito foi a própria televisão, e infelizmente em Portugal não temos possibilidade de explorar isso. Eu acho que muitas das coisas mais interessantes que se fizeram nestes últimos tempos são coisas para televisão, nomeadamente séries. Há uma diferença de produção… os filmes, em particular nos sítios onde a produção é mais industrial, têm uma incógnita grande, dependem do estilo do público. Por outro lado, os canais por cabo têm já à partida um género ou um produto definido. E assim há mais liberdade e mais tempo para contar histórias, dá para explorar coisas que nas duas ou três horas de um filme não dá. Outro aspecto é o facto de eu fazer uma coisa para um nicho, que embora seja um nicho é-o a nível global e logo já é suficiente para rentabilizar e fazer coisas já muito caras. E ainda há a questão da Internet dar a possibilidade de decidirmos o que queremos ver. Mas há um risco… a televisão não é um risco, o risco é o não respeito dos direitos de autor. As coisas estão muito disponíveis, isto para séries de televisão e filmes, e é tudo acessível a custo zero (o que à partida seria uma coisa boa, quanto mais pessoas virem o filme melhor), mas aquilo tem um custo e há muitas maneiras de pagar o preço. Este é uma daquelas questões, como tantas outras, em que nós não conseguimos resolver sozinhos. A globalização da economia e da informação obriga a que qualquer solução tenha que ser feita a nível mundial. Nenhum problema pode ser resolvido sem que antes todo o mundo o resolva, estamos todos dependentes uns dos outros – estou a pensar em políticas de cinema, mas também em políticas económicas.
RVL: Nesse sentido um filme em Portugal só faz sentido se for para ser visto e vendido em todo o mundo?
Não… acho que devem ser vistos por todo o mundo, mas vendidos não podem ser. Ou fazemos inglês ou então estamos reduzidos ao mercado de língua portuguesa. A maior parte do público não está disponível para ver filmes do mundo, não é só um problema de distribuição. Quantos filmes romenos é que tu vês? E do Azerbaijão? Talvez um ou dois porque tiveram sucesso ou calharam no goto de alguém com poder. Não temos acesso e não temos interesse. Mas eu por exemplo acho que há muito a fazer na divulgação dos filmes mesmo dentro de Portugal. Neste momento tu mandas um filmes português para um servidor qualquer e não é possível impedir isso.
RVL: Estreia esta semana o Night Train to Lisbon (Comboio Nocturno para Lisboa, 2013) em que o Joaquim Leitão entra como actor. Acha que esta é uma alternativa para a produção de filmes em portugal, as co-produções? Penso por exemplo na notícia sobre a vinda dos estúdios de Bollywood para cá.
Quanto mais pessoas vierem melhor, mas o caso do Night train to Lisbon é muito particular. É inspirado num livro escrito originalmente em inglês e é de um realizador que não é de cá. Há um lado do cinema português que é evidentemente de autor, mas que é muito reflexo da literatura. Muito do que é o cinema português tem muito que ver com a literatura portuguesa. Tu pegas num livro americano e quando o lês pensas logo: isto dava um filme. Os nossos, interessantes ou não, são dificilmente transpostos em imagens. E por isto também o caso do Night train to Lisbon, que sendo bem-vindo, é único.
RVL: Eu estava mais interessado em saber como encara a situação de Portugal se tornar um local de produção de filmes estrangeiros.
Há muito tempo que isso é assim. Durante anos e anos esse sector floresceu e havia imensas pessoas a trabalhar, faziam-se muitas produções francesas por cá. Porquê? Porque era mais barato e porque havia técnicos bastantes bons. Mas isso levou a um aumento de preços… Mas como isto não tem nada de estrutural – cá não tinhas que pagar segurança social e lá tinhas – a produção foi-se mudando para os países de leste. Se fosse uma coisa mais estrutural era outra história.
JL: Referiu que o nosso cinema era muito literário. Entrevistámos há pouco tempo o Pedro Caldas que dizia que um dos problemas do cinema português é que filmavam pouco a acção, que é demasiado palavroso. Sente que isto é assim e tenta combater isso?
Eu acho que é difícil fazer essa generalização. Podes falar imenso num filme e ser um filme de acção. O que há é uma escola do cinema português em que não se acredita no efeito do real no cinema. O cinema que eu gosto de fazer é um em que as pessoas estão a ver e faz de conta que aquilo está mesmo a acontecer. Enquanto que em muito do cinema português tens que estar sempre a fazer aquela conta de cabeça que é: estás a ver uma pessoa que está a fazer um jogo contigo. Do meu ponto de vista é muitas vezes uma pós-modernice bastante rasca – mas por vezes também muito boa. Infelizmente, há mais vezes pós-modernice rasca do que pós-modernice boa.
JL: Então a diferença entre si e os outros realizadores é essa coisa da identificação do público com o filme.
Sim. Mas isto não tem nada que ver com realismo. Tu vais ver os Star Wars e aquilo não é real. O jogo que eu gosto de fazer com o espectador, e comigo próprio, é tentar criar uma coisa que qualquer um possa acreditar que seja possível.
JL: É a sua relação com o Tino Navarro que lhe tem permitido trabalhar mais do que outras pessoas da sua geração?
Isso é óbvio, mas não é só por causa disso. Nós temos uma cumplicidade que não tem só que ver com o facto de ele ser capaz de pôr os projectos a andarem mas também com a gente ter pontos de vista sobre o mundo e sobre cinema relativamente parecidos.
JL: E essa relação é mais uma parceria criativa, já que ele também participa na escrita de alguns argumentos?
Isso é com certeza, mas no bom sentido, cada um sabe qual é o seu lugar.