Numa conversa sobre Jacques Tourneur com Chris Fujiwara no nº5 da LA FURIA UMANA, Pedro Costa divagava a propósito de Stars in My Crown (1950) e dos seus planos dos fenos, propondo que o francês teve que ter mais tempo do que era costume para filmar aquilo porque parecia preocupar-se um bocadinho mais com cada pormenor. A cena não parecia premeditada, mas antes uma experiência de improvisação com o décor e com os actores. Numa entrevista recente, Michael Cimino também falava de tempos, paisagens e espera, dizendo que se pode escolher: ou se filma a Natureza com aspecto medíocre ou então espera-se (tradução livre, a partir daqui) “a montanha sabe que estás a olhar para o teu relógio e diz ‘vou testar este banana‘, porque não te vai oferecer de bandeja a sua beleza, quer ver se és igual a ela. Se provares que és, vai-te permitir vê-la”.
King Hu talvez não fosse um estranho a estas esperas. Contratado pelo Shaw Brothers Studio em 1958 como actor com a opção de se tornar realizador, fez três filmes até se despedir de Run Run Shaw, depois de acabar o último, Da zui xia (Come Drink With Me, 1966), que se diz ser o filme em que começam os seus temas e as suas obsessões. De Hong Kong, Hu vai para Taiwan, onde tem um grande sucesso com Long men kezhan (Dragon Gate Inn, 1967), do ano seguinte. Xia Nu (A Touch of Zen, 1971) demora três anos a ser acabado mas deixa Pierre Rissient rendido e marca presença no Festival de Cannes, graças ao mesmo Rissient, que é quem apresenta Hu ao mundo ocidental. É neste filme de mais de três horas, se não se quis ver pelo menos em Da zui xia e na sua cena nocturna entre a “andorinha dourada” (Cheng Pei-Pei) e o “guerreiro bêbado” (Yueh Hua), que se percebe que a obra de Hu se faz de momentos que se estendem para lá do que é esperado. E ainda bem. Começam-se os filmes a vaguear por florestas e grandes paisagens, com panorâmicas, zoom outs e zoom ins. E assim é em Kong Shang Ling Yu (Raining in the Mountain, 1979) e, diz quem viu, é ainda mais na versão original de Shan zhong zhuan qi (Legend of the Mountain, 1979), que parece que vagueia durante a primeira hora com a sua personagem principal pelas florestas da Coreia.
O Kong Shang Ling Yu de que aqui nos ocupamos, começa com três silhuetas a percorrer as montanhas que albergam o mosteiro budista em que se vai situar o resto da acção. Por verdes e troncos velados pela luz do sol, quase em forma de neblinas. Quase torna secundário o porquê daqueles três (Suen Yuet, Ng Ming Shoi e a deusa que caminha entre nós mortais e que dá pelo nome de Hsu Feng) estarem ali. Isto é explicado, não se pense que não, há um pergaminho muito valioso que atrai visitas pouco desejadas pelos monges, que estão no processo de eleger um novo mentor e convidam os nossos heróis e um general e seu subordinado a acompanhar o processo. Mas eles só querem o pergaminho. Quando chegam aos aposentos – depois de subirem escadas e percorrerem passeios com muita calma, ao lado do monge que os recebe, e arrumarem os pertences – Hsu Feng e Ng Ming Shoi (creditado no filme também como “action director”) olham-se com “missão” escrito nos olhos e partem de rompante sem dizer nada a Yuet, que começou a comer. Ouvem-se tambores na banda-sonora e partem os dois com uma montagem prodigiosa que se dilui em acção por assentar em pontos de referência enquadrados por um mestre. Panorâmica com o sol à esquerda, esquinas e saltos trabalhados e encenados ao limite. Nos manuais não diz que ir da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda é um bailado que tem que ser encenado, mas ver estes dois a trocar de posição constantemente enquanto tentam escapar aos olhares dos monges, entrando em valas e abrindo portas, só nos faz querer que o pergaminho esteja longe, muito mais longe, e gritar “encontrou-se o Minnelli do Oriente”.
Depois disto tudo, vê-se a porta do salão das escrituras, que se vai tornar o eixo de toda a acção. O ponto de encontro das conspirações, dos disfarces e das manipulações políticas que se vão praticar durante todo o filme. Sempre com a destreza do “daqui para ali” do início. Danças e lutas por caixas que vão de mão em mão. Consegue-se a caixa do adversário, corre-se, perde-se a caixa e persegue-se – o “gato e o rato” – elevando a parada a cada cena que passa.
Mas onde está a espera, perguntará o leitor mais atento. Está na perseverança de quem sabe o que quer mas também sabe que não o pode ter cedo demais. O guerreiro tem adversários e condições que estão à frente dos seus objectivos. E por isso é que o filme é a duas velocidades e com personagens de dois mundos (o da pilhagem e o da meditação). As do primeiro, até se conseguem conter de vez em quando, mas estão sempre a correr. As do segundo têm noção perfeita do que está a acontecer e esperam que os outros subam os níveis e as câmaras todas que têm que subir, até os esperarem na margem de um rio ou no alto de uma montanha e lhes darem a lição derradeira de que “quem espera sempre alcança”.
Os melhores filmes de King Hu são: Da zui xia, Xia Nu, Ying chun ge zhi Fengbo (The Fate of Lee Khan, 1972) e este Kong Shang Ling Yu.