Pila, erecção, cu, mamas. Há uma personagem num filme de Chantal Akerman que pergunta à mãe como deve escrever um conto erótico, ela diz-lhe para incluir palavras como estas e a filha assim o faz: conta a historieta e termina metralhando palavras como “pila, erecção, cu, mamas”. É isto que se procura numa sopa de planos onde se recusa vender implicitamente aquilo que é explícito – e quando dizemos explícito também podemos dizer, fingindo que não há aqui ponta de provocação ao leitor, natural e humano. “Aquilo”, “o coiso”, “a coisa”, se calhar não estaríamos a ultrapassar “os limites” se nos referíssemos ao sexo através deste género de escapatórias linguísticas, sobretudo em tempos em que a erecção de Denis Lavant no filme Holy Motors (2012) é desfocada para que o pobre público americano aguente, em tempos em que um filme como Killer Joe (2011) é considerado pornográfico no seu país e é tido como inaceitável na Alemanha – na Alemanha, sim! -, em tempos em que um Trier oferece, mais ou menos censurado, dependendo dos destinos, o sexo ninfomaníaco como grande performance, realizada por duplos e não por actores – a acrobacia não é um perigo físico, mas moral ou cultural. Nestes tempos assim e assados, dizemos alto e em bom som: pila, erecção, cu, mamas! Dito e de seguida mostrado. Sem desfoques.
O tempo é uma coisa extraordinária, porque actua de formas tão misteriosas como as decisões do conclave. Pois bem, tendo visto Tian bian yi duo yun (O Sabor da Melancia, 2005) de Tsai Ming-liang quando estreou nas salas (na sala do King…) portuguesas [mais pela curta China China (2007) do que pelo filme do realizador malaio], o espanto foi uma coisa que me desorientou violentamente. Para quem viu o filme, a minha reacção não é de estranhar, trata-se de um filme que é tanto um porno, uma comédia romântica, um musical e um violento ataque à própria industria pornográfica. Mas não se pense que esta teia de coisas se emaranha bem (como podia?), os números musicais surgem do nada e vão-se com a mesma pressa com que apareceram (ejaculação precoce musical?). Mas na minha memória (é aqui que entra o misterioso efeito do tempo) fica uma cena tristíssima, pelo ridículo que a pornografia consegue por vezes alcançar. Uma menina masturba-se com uma garrafa de água e descobre – com espanto – que, quando o falo plástico se ausenta dos seus interiores, por lá terá ficado a respectiva rolha. Ao início achamos graça, mas depois deixa de ser apenas ridículo e passa ao confrangedor e daí ao simples incómodo. Ming-liang desmonta (não é a melhor escolha de palavras) o erótico ponto por ponto e entrega-nos os corpos sem qualquer ideia de sexo. Talvez não tenha sido a melhor escolha para esta sopa, mas há coisas que enjoam e este é o ingrediente adstringente que corta o salgado do suor (que o sexo sempre traz).
Ricardo Vieira Lisboa
Numa semana em que estreia o novo filme de Thomas Vinterberg, o outro criador do manifesto Dogma 95 e realizador do Dogme #1, Festen (A Festa, 1998), escolhemos para esta edição da sopa de planos o filme do meio da “golden heart trilogy” de Lars von Trier – Idioterne (Os Idiotas, 1998). É curioso que tenha sido um dogma, com as suas dez leis também intituladas de kyskhedsløfter ou ”vow of chastity”, que tenha estado na origem da libertação psicótica de Trier, originando acusações de exploração emocional por parte dos seus fãs. A partir daqui esse lado extremo, de convocação do sofrimento das suas protagonistas feministas (contudo, a tradição aqui é bem longa) pô-lo nessa outra lista de brincalhões mais ou menos perversos (penso em Gaspar Noé ou Michael Haneke por exemplo). No caso de Idioterne, ainda não estávamos tão longe, e o propósito era que o “dogma quebrasse o dogma”, o da repressão e responsabilidade das pulsões humanas como forma de conformar a sociedade. A nova técnica de libertação do “self” visava a manifestação e libertação da idiotice dentro de cada um, e, com ela, o estilhaçar da fronteira do dogma da sexualidade. Se loucos, o sexo não tem malícia, pode mostrar-se. Por isso, nas cenas explícitas de orgia essa libertação que busca a abolição da fronteira entre o “full realism” e a pornografia tenta ultrapassar um efeito de choque. Ironicamente esse choque está presente a partir daí na sua cinematografia e não podia estar mais longe de uma penetração…
Carlos Natálio
É perigoso enfiar sexo não simulado num filme não-pornográfico (e é perigoso enfiar um “enfiar” num texto sobre práticas sexuais), pois muitos não verão mais do que pornografia, para o melhor e para o pior – é sintomático que na edição americana de O Fantasma (2000) houvesse uma selecção das cenas sexuais, o “extra p’rá punheta”, como lhe chamou João Rui Guerra da Mata na entrevista ao À pala de Walsh, algo que, contudo, não agasta o colaborador e companheiro do realizador do filme, João Pedro Rodrigues. Guerra da Mata defendia, nessa entrevista, que a pornografia tem um propósito (contrariando aquela ideia de Orson Welles de que o sexo e a reza não se devem filmar), embora não considere a cena acima, em que o protagonista “recebe” um fellatio numa casa-de-banho, propriamente pornografia, já que nos filmes de João Pedro Rodrigues o sexo é uma coisa malsã, pouco propício à masturbação. Ou seja, que é uma manifestação das obsessões, dos fantasmas do protagonista, do realizador, e, sobretudo, do espectador.
João Lameira
Num livro excelente de um autor pouco lembrado, é escrito a certa altura isto: “não há medo sem desejo nem prazer sem morte”. O livro O Poder do Cinema de Eduardo Geada saiu em 1985, 18 anos depois nascia The Brown Bunny (2003) de Vincent Gallo, filme maldito que chocou a maioria do auditório do festival de Cannes desse ano e que acabou por merecer uma distribuição muito limitada pelo mundo numa versão já forçada a uns tantos retalhos. Portugal foi dos poucos países a receber esta obra, o que constituiu, quanto a mim, um dos pontos ou mesmo “o ponto” mais alto na história da distribuição de cinema em Portugal. Que filme é este? Ou melhor, que viagem é esta que nos leva até àquele quarto onde o homem “perdido” (Vincent Gallo) e uma mulher (a bela Chloë Sevigny) se encontram para fazer sexo? A resposta não é clara, mas pela errância melancólica que antecede essa penetração/devoração explícita, mas amargurada, dos corpos podemos dizer que esta foi uma viagem de luto e que o ritual da morte se consome naquele quarto. A uma viagem interior sucede uma experiência do toque, entre corpos – como depois percebemos – temporalmente inconciliáveis. Quem faz o fellatio é um fantasma e quem recebe esse prazer de morte é um morto-vivo à deriva, incapaz de “libertar” a angústia profunda… não existencial, mas puramente física: a angústia de nunca mais poder vir a tocar ou, mais ainda, vir a ser tocado pela mulher que ama – e que ama agora ainda mais intensamente, não fora a morte a libido mais bem escondida da vida.
Luís Mendonça