Há obviamente um crescendo liberal do ponto de vista da moral que explica que o realismo cinematográfico tenha querido apagar as fronteiras entre o que pode e o que não pode ser mostrado. Nessa voracidade, o sexo é a primeira coisa em que se pensa. Mas essa é também uma estratégia que comunga com a comunicação social, a publicidade, numa ânsia de proximidade, do directo, do explícito, do violento. Ou agitar os braços bem alto para ver quem repara em nós. Mas e então, qual o charme do que não se podia ver? Do por trás, do debaixo do lençol, da “marotice” em off? Será apenas uma nostalgia do passado, um desejo de ver menos? É um jogo complicado de jogar, o da caça sexual, o do voyeur ou o vai-vem do penetrado/penetrador. Por um lado, somos atraídos irresistivelmente para o buraco na parede (para o cinema, tout court), como Anthony Perkins para o corpo de Janet Leigh. Por outro, quando vemos demais já não podemos voltar atrás, só podemos pensar: “eu não queria saber isto”. É a depressão pós-coito.
Ora, os innuendos sexuais, solução pragmática de contorno aos don’ts do Código Hays têm precisamente essa dimensão de jogo: de dizer o que não se pode mas sobretudo de investir o espectador nessa função activa de, com a sua pornográfica mente, desvelar (se quiser, se tiver talento para tal) a imundice mais porca na mais alva das tramas. É, por isso, só uma coisa que está em causa quando falamos da dimensão implícita do sexo: de liberdade. Liberdade sexual de penetrar ou ser penetrado (por algum motivo Lubitsch tinha “apenas” um touch, que ora significa toque, ora significa apalpanço). O “charuto” de Errol Flynn, que Alexis Smith segura em Gentleman Jim (O ídolo do Público, 1942), um dos melhores Walshes, quando ele vai lutar pela primeira vez na academia, é símbolo fálico, pois é, e nenhuma temeridade nisso, não se pense. Walsh faz uma panorâmica para o próprio charuto e acaba nele a cena. Se é um simbolismo quase explícito, o innuendo revelado, ele é também uma marca do “machismo feminista” de Walsh que revela a exacta colocação dos sexos na mecânica da atracção. É essa também a função do sexo implícito: dar a vê-lo, veladamente, como quem observa o social. Pois um é parte do outro. (CN)
Se Walsh raramente mistura os géneros (não necessariamente os cinematográficos), fá-lo porque a relação entre os homens e as mulheres é, não poucas vezes, uma de desafio. Não necessariamente na posição missionária da mulher sedutora e do homem incapaz de se segurar mas em outras e diversas posições todas elas igualmente prazerosas. Penso nas mulheres desejosas de homem e do homem desejoso de dinheiro em The King and Four Queens (Um Rei e Quatro Rainhas, 1956) e também na flaming Mamie que desejando ardentemente o dinheiro deixou fugir o amor, porque a sessão de ‘convívio’ tinha chegado ao fim; a santa trindade – homem/mulher/dinheiro – aparece incontáveis vezes nos filmes de Walsh e talvez dela surjam os seus melhores filmes. Mas se os jogos sexuais em Walsh podem desinteressar os mais desejosos de novidades tântricas, muitos são os exemplos do que ficou tenuemente no ar (e vigorosamente nas calças) no trabalho de vários realizadores clássicos – ou mesmo antes disso. Talvez. Mas interessa-me mais outros subentendidos, daqueles em que o entendido está bem marcado e o sub é é coisa que já não se usa. Penso no humor folgazão em cenas como esta e esta – não por acaso são gags sobre a própria natureza do cinema como arte das sombras, que como todas as sombras, escondem mais do que revelam. Se os códigos impunham subterfúgios simbólicos aos argumentistas e realizadores, quando acabaram tais imposições muitos continuaram a fazer um cinema papal onde não havia renda descosida ou botão por abotoar. Mas quando tudo está no sítio, dá vontade de rasgar tudo com uma espingardada. (RVL)
Pois se, de facto, o Código Hays deixou de vigorar – chegou uma altura em que este espartilho nocivo da criação artística, como quase todos o viam, foi despido, entre outros pedaços de roupa (o cinema americano dos anos 70 tem várias nudezes) -, os códigos morais continuaram a comandar, principalmente a partir do momento em que toda a gente percebeu que os espectadores que restavam eram os adolescentes e que se deveria produzir filmes unicamente para estes, portanto sem quaisquer possibilidades da classificação etária os afastar. Foi como se nada tivesse mudado. Contudo, mudou: já ninguém conhece o segredo da argúcia com que os cineastas clássicos davam a volta à censura e mesmo as brincadeiras à Mel Brooks subsistem apenas naquele género que ajudaram a criar mas não lhes faz jus. E, no entanto, como escrevi logo ao início, parece que o sexo nunca esteve tão presente. Como se explica este paradoxo? Não sei, o certo é que nos filmes mais “inocentes” [lembro um exemplo português: Morangos com Açúcar – O Filme (2012)], a câmara se demora em decotes e calções diminutos, abdominais e bíceps, como se fora uma private joke entre esta e o espectador, a que os actores, argumentistas, realizadores, etc. são alheios. Porventura, será sobre este fenómeno que Spring Breakers (2012), que retrata antigas estrelas juvenis da Disney em bikini, se debruça. Algo a verificar no próximo IndieLisboa, festival em que passará o mais recente filme de Harmony Korine. (JL)
Falo, então, de algo mais elaborado que a simplista dicotomia explicitação/implicitação, denotação/conotação. O que falo aqui é do carácter pornográfico, poderosamente explícito, do não dito, do não mostrado. A criação erótica – toda a gente sabe – é muito mais poderosa que a dura e “não mediada” encenação fantasiosa do desejo, vulgo porno. O que o cinema ensinou a televisão a fazer, que já antes aprendera com a melhor propaganda de guerra – estávamos, aliás, em plena II Guerra Mundial quando o charuto fálico passou para a mão de Alexis Smith em Gentleman Jim -, foi passar para imagens – atenção ao plural, à polissemia fantasiosa – a proverbial máxima de “o fruto proibido é o mais apetecido”. Entretanto, não há nada totalmente subliminar, pensamos ante as imagens como desejamos pensar, isto é, sem grandes reservas morais. Assim, um charuto na mão de Alexis Smith só era um falo, nos anos 50 e 60, para meia dúzia de críticos dos Cahiers du cinéma, hoje, quando estamos (demasiado?) avisados de todas as “fintas retóricas” da publicidade, vemos um falo onde nos mostram um charuto ou vemos um charuto onde nos mostram um falo. Convém é ter sorte ou ser hábil a acertar no público-alvo: imagine que no primeiro caso “eu sou uma freira” e no segundo caso “eu sou o Bill Clinton”. O implícito explícito precisa de um bom targeting, já que é o destinário que dará ou não “o bom sentido” (leia-se, o desígnio certo…) à mensagem. Um grande e interminável Teste de Rorschach para o espectador pós-moderno. (LM)