Este estranho e pequeno série B (dura pouco mais de uma hora e foi feito por tuta e meia) não é propriamente obscuro, muito por culpa do estatuto de primeiro film noir que alguns lhe atribuem, mas também da (sempre) espantosa presença de Peter Lorre (que devia uns dias de contrato à RKO). Ainda que, passados estes anos todos, não desmerecendo os outros atributos (principalmente Lorre), o que se destaca seja a delirante premissa.
Boris Ingster, imigrante russo mais dado à escrita e à produção, estreou-se como realizador (numa curta carreira de apenas três filmes) com este Stranger on the Third Floor (Não Matei, 1940) e, de facto, ensaiou alguns elementos típicos do noir – o jogo de sombras, o estilo expressionista (devidamente pesado), a voz-off do protagonista, o fatalismo, o cinismo (e a cara e os trejeitos de Peter Lorre) -, só que, apesar de conhecer e saber usar os ingredientes da confecção do género que iria ensombrar os anos 40 americanos, não tem as mãos de outros mestres desta culinária. Já Lorre (cabeça de cartaz; imagine-se o quão série B teria de ser um filme para Lorre ser cabeça de cartaz) entra em meia-dúzia de cenas e aparece um total de dez, quinze minutos. O que, já que interpreta um assassino fugidio e escorregadio, até acaba por ajudar o filme e a sua incrível história.
Um jornalistazeco de um pasquim nova-iorquino tem o seu big break quando se torna na testemunha de acusação do presumível homicida do dono do café onde costuma ir (cujo novo proprietário, segundo as regras deste mundo cruel e mesquinho, não tem pejo de mudar de nome para o seu, apagando o do assassinado). Está só a fazer o seu dever: viu o réu a fugir do café antes de encontrar o corpo, prova circunstancial mas suficiente para o condenar, e aproveitou para assinar a sua primeira manchete, num artigo escrito na primeira pessoa. A oportunidade vem mesmo a calhar, uma vez que vai casar com a namorada e o aumento no ordenado dá-lhe jeito. Nada disto empolga especialmente o espectador, que não se deixa enlevar pelos problemas do casal (ela não gosta que o seu casamento seja possibilitado pela condenação de alguém que pode estar inocente), interpretado por um par de actores bastante mauzito (o elenco, contudo, não é de deitar fora, tem alguns secundários reconhecíveis de outros e melhores filmes: para além de Lorre, comparecem Elisha Cook Jr. e Charles Halton).
Mas mal o jornalista chega ao quarto que arrenda numa pequena pensão na baixa de uma Nova Iorque recriada em Hollywood (aproveitando a “rua” de outros filmes, acrescentado um cenário de papelão de Washington Square Park), a coisa complica-se. Primeiro, dá de caras com Lorre, o que é sempre assustador, nas escadas do prédio (no terceiro andar, lá está); depois, deixa de ouvir o vizinho do lado ressonar. Nada de especial, mais uma vez, não fosse este simples facto iniciar uma alucinação, cheia de flashbacks, música ominosa e voz-off, em que o protagonista, entre o desejo e o medo, se vê como acusado da morte do vizinho que nunca procurou esconder que odiava, figura tão desprezível que o próprio espectador tem vontade de o esganar (“There is murder in every intelligent man’s heart”, como diz a dada altura um jornalista veterano), e culmina no pesadelo bem real do vizinho estar mesmo morto e dele ser o principal suspeito (numa “transferência de culpa” hitchcockiana).
Apesar do seu nome não constar no genérico, Nathanael West, um romancista nova-iorquino que sobrevivia a escrever argumentos em Los Angeles até se espetar com o carro numa estrada qualquer, ajudou à escrita de Stranger on the Third Floor. Virá dele a angústia que o espectador sente, colocado no lugar do protagonista, claustrofobia de que só se livra no desfecho atabalhoado, e a sentença aos julgamentos apressados (a justiça é mais desinteressada do que cega), em que qualquer zé-ninguém pode ser culpado por ter cara de pedófilo, ter gritado um impropério ou por estar no sítio errado a certa hora.