Como o quase homónimo Terrence Malick, o inglês Terence Davies é um dos grandes cineastas bissextos (aqueles que demoram uma eternidade entre cada filme). As suas longas-metragens de ficção contam-se, literalmente, pelos dedos de uma mão. Antes de The Deep Blue Sea (O Profundo Mar Azul, 2011), que chega a Portugal com dois anos de atraso (atraso que, no meio de ausências tão prolongadas, mal se dá conta), Davies não filmava há onze anos, desde The House of Mirth (A Casa da Felicidade, 2000).
Ao contrário do quase homónimo Terrence Malick, adivinha-se que os compridos intervalos de Terence Davies não resultam de uma vontade de reclusão. Numa altura em que tanto Terrence, como Terence, começam a filmar mais assiduamente (o novo filme de Davies está marcado para esta ano – mas nunca fiando), a razão por que o realizador inglês de 67 anos tem uma obra tão curta parece ser a dificuldade em arranjar financiamento para os seus filmes pesados, pausados, austeros e um tanto lúgubres. Ou seja, “difíceis”. No entanto, Davies goza de uma reputação impoluta junto da crítica e de um certo público (em Portugal, por exemplo, onde as suas obras nunca deixaram de estrear). Tal dever-se-á à sua raridade (uma aura que partilha com o quase homónimo Malick) mas também à particularidade do seu cinema. Seria impossível confundir um Davies, os seus defeitos e qualidades, com um filme de qualquer outro cineasta.
Em The Deep Blue Sea, Davies volta a Inglaterra, depois da “jornada americana”, em que adaptou John Kennedy Toole e Edith Warthon [The Neon Bible (A Bíblia de Neon, 1995) e o citado The House of Mirth, respectivamente], com uma peça teatral do realmente homónimo Terence Rattigan. Como na longa-metragem de estreia, Distant Voices, Still Lives (Vozes Distantes, Vidas Suspensas, 1988), o cenário é o país mortiço do pós-Segunda Guerra Mundial, em que as chagas da contenda não estão completamente saradas e os únicos momentos de alegria são induzidos pelo álcool que se consome nos pubs, onde se cantam as músicas populares da época (a banda-sonora, dominada pelas cortantes cordas de Samuel Barber, é pontuada por estas canções, que, contudo, afundam ainda mais a tristeza). A personagem principal, uma mulher adúltera, dividida entre o amante e o marido, está perfeitamente acorrentada a esse lugar e a esse tempo, quando se tenta libertar da prisão, embica em novos becos sem saída.
Há algo de anacrónico em The Deep Blue Sea e não é apenas por ser um filme de época. Também não é propriamente pela maneira de filmar de Davies, que não tem raízes no cinema clássico. A compostura (que enforma e é enformada por essa característica tão britânica das personagens, mesmo quando trata a paixão sensual, sexual) e o rigor devem mais a outras artes: à pintura (com os enquadramentos gizados a régua e esquadro), à literatura (o peso da palavra pode ser esmagador; assim como o dos silêncios, escreva-se a bem da verdade), ao teatro (com as entradas e saídas bem marcadas) e, sobretudo, à música (o trabalho de som é luxuoso, afastando os sons naturais e o mundo circundante do que realmente interessa, criando uma artificialidade de Musical; um Musical parado, entenda-se). Davies é culto e cultivado, um homem de outro tempo, talvez o anacronismo dele e do seu cinema venha daí.
Paradoxalmente, embora o texto de Rattigan seja muito da sua época, o filme de Davies atinge a intemporalidade, na universalidade das situações e das personagens. Findo The Deep Blue Sea, com um travelling em sentido contrário ao do princípio (para longe da tentativa de suicídio inicial), Hester (uma interpretação superlativa de Rachel Weisz) é menos uma vítima dos cinzentos anos 50 britânicos do que da eterna (e estranha) compulsão para a auto-destruição e humilhação gravada na natureza humana. Ela arrasta-se e rebaixa-se perante o amante desinteressante e agastado, enquanto que se desfaz numa doce crueldade com o marido, corno manso tão apegado a ela como ela ao amante. Tragédia? “Sad perhaps, but hardly Sophocles”, responde ela. Apesar da calma geral (“anger fades”), temo que esteja enganada.