Em E Unibus Pluram: Television and U.S. Fiction, David Foster Wallace perora contra os malefícios da televisão. O escritor americano não escolhe o discurso óbvio (raramente o fazia) de atribuir à televisão poderes diabólicos ou sobrenaturais sobre a sociedade (como parecem fazer alguns, por exemplo, o crítico de cinema João Lopes), até porque o ensaio trata sobretudo da literatura americana contemporânea (a da sua geração). O que preocupa realmente Wallace são algumas qualidades da criação artística deste tempo (embora o texto seja do início dos anos 90 não perdeu a actualidade, muito pelo contrário) que a televisão ajudou e ajuda a exponenciar: a ironia pós-moderna e a meta-referencialidade.
Pegando em boa parte das séries mais interessantes (e as melhores) da última década (principalmente, as sitcoms) – Arrested Development, Community, 30 Rock -, é difícil negar que exploram esse caminho. Qualquer delas joga numa distância que afasta o espectador do sentimentalismo, da ingenuidade, da sinceridade (apanágio dalgumas das piores memórias televisivas), reservando-lhe um lugar de superioridade face ao próprio género da sitcom (e à própria televisão, que tem uma capacidade infinita de absorver as tentativas de subvertê-la). Por outro lado, para se poder usufruir deste humor, é necessário ter um conhecimento assinalável da cultura popular recente (gerada em boa parte dos casos na dita televisão). Esta questão é especialmente problemática para a minha pessoa (repare-se como eu mesmo faço uso da ironia distanciadora, quando me proponho escrever sobre algo que me é caro; e como estou completamente enamorado pelas possibilidades dos parêntesis), uma vez que sou o que os americanos chamam um sucker pela pós-modernidade e tenho, ao mesmo tempo, de reconhecer a verdade nas palavras de Wallace: no fim da ironia e da meta-referência não há nada, apenas o vazio; esta energia não é criadora e acaba no absoluto marasmo em que se encontra a cultura ocidental, como demonstra o crítico musical Simon Reynolds no notável Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past. (Claro que este fenómeno não é exclusivo da televisão: veja-se Tabu (2012), eleito o melhor filme de 2012 no À pala de Walsh, a que podem ser apontadas exactamente as mesmas características.)
Tanto palavreado para chegar a uma série de que gostei tanto (ou não fosse a resposta portuguesa ao que “de melhor se faz lá fora”): Odisseia, criada por Bruno Nogueira, Gonçalo Waddington e Tiago Guedes. Lá se encontram a distância irónica (desde logo, a inclusão do próprio processo criativo no corpo da história: o escritório onde os autores discutem os episódios é um dos cenários e mesmo as filmagens fazem parte da narrativa) que faz implodir os momentos de tensão dramática bastante poderosos (lembro o final do terceiro episódio, provavelmente o melhor) e “desculpa” as situações menos conseguidas, como a participação de Rita Blanco (mas não apaga o facto de que o quarto episódio é mesmo o pior), ou põe o espectador completamente fora do enredo (a cena com os bonecos que traz à memória o episódio em claymation de Community) e as dezenas de referências a outras obras [em todos os episódios existe uma homenagem a um filme, recordo-me de Blade Runner (Perigo Iminente, 1982) e de The Deer Hunter (O Caçador, 1978)]. A originalidade de Odisseia em relação às suas congéneres estrangeiras será a “portugalidade” que orgulhosamente ostenta: a figura tutelar de toda a série é António Variações – que canta a canção do genérico (que é, diga-se, absolutamente brilhante) e é representado como o deus de uma estranha seita -, o músico português que tentou encontrar um lugar entre Braga e Nova Iorque e é talvez o nosso ícone pop mais interessante (e que, nesse sentido, nunca foi seguido). Não deixa de ser uma referência, mas mais do que do bom gosto dos autores diz muito da sua inteligência.
E Odisseia é uma série inteligente. Ainda que não fuja dos momentos mais baixos e grosseiros, o chamado low brow (não é uma crítica, as citadas séries estrangeiras também o fazem, e será neles que se anda mais longe da pós-modernidade), não envereda sequer pelo caminho da derisão a alvos fáceis, como me parece que acontecia com O Último a Sair, com a qual partillha alguns protagonistas e autores, cuja comédia vivia da improbabilidade das escolhas e do reconhecimento de situações dos verdadeiros reality shows (a par da telenovela, provavelmente o alvo mais fácil que há). Aqui quem se expõe são os próprios autores-actores, Nogueira e Waddington, mas também Tiago Guedes (autor-realizador) e Nuno Lopes, Rita Blanco, a equipa de filmagens, a direcção da RTP, etc. Todos se interpretam a eles mesmos, à semelhança do que acontece em Louie, a série do cómico americano Louis C.K, um dos maiores no humor auto-depreciativo. Para além de ser (ou parecer) mais honesta, a auto-depreciação costuma ser fonte de boa comédia, porque mais à flor da pele, mais arriscada (posso estar enganado, mas parece-me uma corrente da comédia pouco explorada pelos nossos stand-up comedians, que não têm pejo em ver os defeitos dos outros e bastante dificuldade em descortinar os próprios, o que resulta geralmente em piadas gastas e estafadas sobre políticos e outras figuras da sociedade). E em Odisseia também é fonte de excelente drama que, apesar de sabotado de mil e uma maneiras, é forte o suficiente para a estruturar: há uma tristeza que perpassa (e vai passando) durante toda a viagem naquela roulotte, uma melancolia que vem também do universo de Wes Anderson [até fisicamente, Bruno Nogueira faz lembrar Adrien Brody em The Darjeeling Limited (2007)], outro que esconde mágoas em sorrisos amargos. É a sinceridade possível nos tempos que correm e talvez por isso seja tão comovente.