O segundo Óscar de Melhor Realizador que Ang Lee recebeu há uns dias é uma oportunidade pertinente para revisitar um dos seus primeiros filmes. A comédia sobre identidade(s) Xiyan (O Banquete de Casamento, 1993) passa na Cinemateca Portuguesa no próximo Sábado.
Há muito que Ang Lee deixou de ser um realizador taiwanês para se tornar num exemplo paradigmático de autor transnacional. Podemos argumentar que isso é verdade desde o seu primeiro filme, Tui shou (Pushing Hands – A Arte de Viver, 1992), o primeiro de um conjunto do que se considera uma trilogia onde figuram também Xiyan e Yin shi nan nu (Comer Beber Homem Mulher, 1994): os únicos da sua filmografia a abordarem directamente a experiência asiático-americana e, no caso do último filme, taiwanesa. De certa forma, são também os filmes de Lee onde se descortinam mais facilmente alguns elementos autobiográficos. Foram concebidos durante o período em que Lee viveu como “doméstico” nos Estados Unidos, criando os filhos enquanto a mulher trabalhava, e reflectem a oposição inicial do pai de Lee à sua carreira cinematográfica. O cameo de Lee no filme reforça a sua ligação ao filme.
Um concurso promovido pelo governo taiwanês no qual venceu o primeiro e o segundo prémios de argumento deu a Lee a oportunidade de realizar os seus primeiros filmes e o sucesso foi imediato. Xiyan foi nomeado e ganhou vários prémios um pouco por todo o mundo, tendo sido o mais rentável filme de 1993.
Tal como em Tui shou, no centro de Xiyan está a figura de um homem a viver nos Estados Unidos que é confrontado com a sua família chinesa e algumas questões que enfrenta podem ser entendidas como um choque cultural: no caso do primeiro filme, o velho pai vai viver com o filho para a América mas problemas de convivência com a mulher caucasiana deste não tardam a surgir; no segundo os pais do homem, chineses que se fixaram em Taiwan após a guerra civil, viajam até Nova Iorque para participar no casamento do filho ignorando que este é homossexual. O casamento é de conveniência para os contentar e conseguir um green card para a noiva, uma artista da China continental em situação de ilegalidade nos Estados Unidos.
Em toda a obra de Lee, o argumento é a espinha dorsal do filme e, seguindo a tradição da Hollywood clássica, uma boa história é essencial: as peripécias do filme de Lee sucedem-se, num balanço que nunca fracassa entre comédia e drama. As temáticas mais complexas são exploradas da forma (aparentemente) mais simples, mas em todos os seus filmes abundam em ambiguidades perante a aparência de um discurso tradicionalista.
A riqueza de significados subtis em Xiyan começa logo no título chinês, em que o caracter 囍 conhecido como “felicidade dupla”, formado por uma junção de dois caracteres 喜 (“feliz”), associado a celebrações como casamentos, é transformado numa versão de “felicidade tripla” (alusão ao trio no centro do filme). No filme, Lee não deixa de fazer alguns planos que são de enorme graça pela sugestão: da focagem de Simon que corta a cabeça à noiva ao semáforo que passa de vermelho a verde na noite de núpcias.
Também as personagens estão longe de arquétipos, concentrando em si tanto traços culturais específicos como aspirações individualizantes e por vezes conflituosas. Veja-se figuras como Wei Wei, a artista que concorda em se casar com Wei Tong, que está longe de ser exemplo de virtude feminina (quem mais dela se aproxima é Simon) mas a quem cabe um papel fulcral no xadrez familiar. Ou o pai, que começa por ser apresentado como um modelo de rigidez conservadora, para se revelar ele próprio um rebelde. Alistara-se no exército para escapar a um casamento arranjado, e é bem mais razoável do que a mulher face a Simon. O próprio Wei Tong não corporiza de todo um estereótipo do asiático efeminado e dependente, antes pelo contrário.
O filme tem também, politicamente, aspectos curiosos, com o casamento de Wei Tung (de Taiwan) com Wei Wei (da China continental) a ser encarado como alegoria para uma possível reunificação territorial chinesa sob a mediação norte-americana (Simon). Curiosamente, May Chin, a actriz que interpreta Wei Wei, é uma aborígene taiwanesa que enveredou depois por uma carreira política na ilha.
Xiyan é, em suma, uma visão transnacional, em que as tradições se readaptam e congregam, com diferentes actores a agir e a reinventar-se num espaço de modernidade globalizada: um mundo de classe média onde a distância é suprida pela tecnologia (as cassetes, os telefones, o telemóvel), de comércio internacional (a mãe vai às compras onde “os melhores produtos são feitos em Taiwan”), de transferências culturais (como o restaurante chinês nos Estados Unidos), de imagem universal (a fotografia)… Um mundo onde o preconceito perde o sentido quando confrontado com a evidência do amor que une os membros de uma família, qualquer que seja a sua forma.
Neste universo desenha-se o que foi designado por “comédia sobre identidade”, ou talvez seja mais uma comédia sobre identidades: identidade nacional, de diáspora, individual, sexual, familiar, social. São estas múltiplas dimensões que tornam Xiyan um filme bem mais rico do que às vezes lhe é dado crédito e onde a cada visionamento lhe descobrimos algo de novo.
Xiyan passa na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema dia 2 de Março (sábado), às 19h.