Quando Lola (2009) estreou entre nós há cerca de dois anos escrevíamos, a propósito de método de Brillante M. Mendoza, sobre um “lirismo de intervenção” que fundia a representação naturalista dos actores, ao absoluto domínio dos exteriores como que num falso descomprometimento documental. O resultado era poderoso mas sobretudo exercia-se uma opção política de tornar o “pobre” como prolongamento do “rico”, a improvisação como extensão do controlo, e o dilema de duas avós como sinal de uma decadência económica na sociedade filipina.
Do mesmo ano, Kinatay experimentava o mesmo “código” no noir. O mesmo olhar de observação construtivo, a mesma câmara próxima do protagonista, jovem recém-casado, que por dinheiro (sempre o dinheiro) se vê iniciado no mundo do crime. Das viagens na escuridão, no vómito, na ânsia da espera, na matança. O mecanismo é sempre essa procura do indivíduo como sintoma do colectivo filipino e sobretudo no suspense, no horror, a técnica de Mendoza permite expor o lado diarístico, quase metafísico, da entrada a fundo na física, isto é, no sangue.
Depois de várias curtas-metragens e algum trabalho para a televisão, Mendoza, já com apoio do canal Arte, Canal + e outros tantos, realiza este Captives (Cativos, 2012). Também já há Isabelle Huppert a interpretar uma missionária cristã que se vê refém, juntamente com outros turistas, do grupo separarista Abu Sayyaf, durante cerca de um ano pelas florestas da província de Basilan nos montes filipinos. Se isto não fosse já suficientemente claro ainda tínhamos as sequências de explosões e tiros e a co-existência temporal deste episódio com o 11 de Setembro, para perceber que há dois novos impulsos por aqui.
Por um lado, há esta ambição de subir a escala de produção tentando o “grande” no cinema filipino, mas também percebendo qual o confronto do filme de acção com o universo de Brillante Mendoza. Por outro lado, há esta tendência, diríamos clássica, em que um cineasta se apercebe que carrega a bandeira de crítico do regime do seu país. Neste caso há então, pela primeira vez, o assumir da política no seu discurso. No primeiro aspecto esta vontade positiva de fazer diferente parece criar uma armadilha que vem da “poluição” visual dos esquemas imediatistas do cinema de acção. Pela primeira vez sentimos que a entrada turbulenta nas sequências de acção (a cena do hospital por exemplo), a câmara à mão, o desfoque – que podia ser Mendoza a entrar nesse código de género – é abocanhada na lógica da oficialidade “based on true events”. Isto é, a estética de Mendoza serve menos o filme do que as lógicas de acção mainstream usam o impulso do filipino. Por momentos, parece que Brillante filma Lost (in Filipinas). Heresia nossa ou deslumbre dele?
Sobre a política, diga-se, que pela primeira vez o cineasta sobe ao palanque para falar do terrorismo, da religião e do cinzento moral entre vítima e agressor. À medida que o tempo passava (e se frustravam as intenções de obter um resgate, valia ainda pedir algo? O quê?) o acto transgressor parece perder a sua alma. Não fazia sentido desistir (sob pena de morte ou prisão) mas já não havia animo em continuar. Por isso, nessas montanhas habitadas por formigas, morcegos, cobras, sanguessugas (que Mendoza filma com interesse e elegância como que para sair ou abrir a história, apesar de terem essa conotação às agruras da vida no mundo selvagem), a violência cola-se à amizade, dos dois lados, salvaguardando o que provavelmente interessou ao realizador: a desconstrução do jogo das caixas terroristas/vítimas.
E há também esta forma de compreender a relação entre a ilusão e o impulso que motivam as religiões (como grita Huppert quando lhe deitam as bíblias à água; tão certo está Ahmed de ir parar ao paraíso). Mas tirando estes motivos de reflexão e alguns momentos em que o cinema de Mendoza escapa a essa lição maniqueísta pós 9/11 (os atentados às torres gêmeas confirmavam a vontade dos sequestradores, ou estes já nem sabiam muito bem porque deviam estar felizes?), o tempo passa sem nos importamos assim tanto com o destino das vítimas, as cenas são dramaticamente pouco estimulantes e na maior parte das vezes assiste-se a um híper aproveitamento de persona de Huppert. Quer pelo seu perfil, quer pelas escolhas de carreira em desespero maquinal e frio [de Sarah Kane à repressão sexual de La Pianiste (A Pianista, 2001)] é difícil entrar aqui no seu drama missionário.
Por tudo isto, Captive leva-se em conta de subtileza mas nunca se impede de uma psicologia simplista e imediata. Afasta-se da relação da situação extrema (em suma, da experiência do individual que é o ponto de partida do comentário político no cinema de Mendoza) para se converter numa espécie de “documentário” sobre a realização de um filme de acção e a homenagem de um cineasta a uma actriz. Tudo soa assim a esforço inglório como numa inocente tentativa de triunfar, auto-inoculando Brillante Mendoza a perversidade natural da sua própria observação. Um resgate insensato de si próprio, é o que é afinal.