Há poucos dias foram finalmente homologados os resultados do concurso de apoio à produção cinematográfica do ICA de 2011, confirmando-se o apoio às novas longas de ficção de João Botelho e João Canijo, no entanto todos os outros sinais desta nova secretaria de Estado da Cultura apontam para um outro formato de produção; rodagens estrangeiras em território nacional.
As notícias vêm-se acumulando e os filmes vêm estreando também: este mês tivemos a estreia de Night Train to Lisbon (Comboio Nocturno Para Lisboa, 2013) – baseado no romance de Edle Hubay Cebrian que decorre em parte na cidade que lhe dá o nome -, a rodagem de Indomitable Will em Cascais e Estoril – também uma adaptação de um romance sobre a fuga de uma família judia para Portugal durante a segunda guerra mundial, com produção de Hollywood -, o anúncio da vinda de prospectores de locais de filmagem do mercado de Bollywood e da sucessiva produção de filmes e séries em território nacional (“o Algarve é muito cost-effective”) ou ainda a confirmação do convite de Woody Allen, por parte de António Costa, para filmar em Lisboa. Quando o governo nos convida a exportarmos tudo e todos, no cinema vive-se a situação inversa, o que vem de fora é que merece as maiores atenções do executivo.
Comecemos então pela parte positiva. Hoje em dia é comum que os estados e administrações locais apoiem produções artísticas (e nomeadamente o cinema) pois percebem que o resultado de tais investimentos (de dinheiros públicos entenda-se) é por norma positivo para as actividades nacionais e locais, respectivamente. A esse respeito temos o caso de Espanha em que a estreia de Zindagi Na Milegi Dobara (Só se vive uma vez, 2011) [produção indiana em terras espanholas] terá aumentado em mais de 30% o número dos turistas indianos em Espanha, ou o caso de em Inglaterra se estimar que existam cerca de 2.4 mil milhões de euros em receitas turísticas motivadas pelo desejo de visitar os locais de rodagem de filmes famosos. Mas mais notório é o caso australiano: no novo capítulo da saga de Wolverine o governo australiano pagou mais de 10 milhões de euros para que a rodagem do filme decorresse no país, segundo a informação do governo, tal investimento consubstanciou-se na criação de 1750 empregos, contractos para 1027 empresas australianas, gerando cerca de 65 milhões de euros em investimentos. Com a estreia do filme anunciou-se uma nova parceria, desta feita para o novo filme de David Fincher, o remake das Vinte Mil Léguas Submarinas, terá também rodagem no país. Nas palavras da primeira ministra australiana: “Garantir que este filme é rodado na Austrália é uma excelente estratégia para a indústria cinematográfica nacional, e para as cerca de mil empresas que irão lucrar com a produção“.
Posto isto (‘conhecida esta narrativa’) embarcaríamos numa fúria por investimento estrangeiro e esqueceríamos por completo o que se faz por cá. Claro que nos esquecemos de algo fundamental, um investidor só fará um filme em Portugal por dois motivos, eles são: ou se está adaptando um romance cuja história decorra no nosso país [que é o caso do Night Train to Lisbon e de Indomitable Will] ou então, porque é mais barato filmar cá. Ou seja, em ambos os casos não temos o desenvolvimento de um industria. Muito pelo contrário, trata-se de investimento vaporoso, que depois de feito não tem onde assentar; não deixa depósito. A este respeito relembro a resposta de Joaquim Leitão quanto a esta situação: “Há muito tempo que isso é assim. Durante anos e anos esse sector floresceu e havia imensas pessoas a trabalhar, faziam-se muitas produções francesas por cá. Porquê? Porque era mais barato e porque havia técnicos bastantes bons. Mas isso levou a um aumento de preço(…), a produção foi-se mudando para os países de leste“. Apesar de estes erros já terem sido feitos no passado insiste-se nas mesmas soluções para a ‘sustentabilidade’ do cinema português.
Dada a situação dual do investimento estrangeiro talvez faça sentido considerar o recente texto de Helena Garrido para o Jornal de Negócios com base num colóquio para o festival Temps d’images do ano passado. Depois de analisados vários dados a jornalista conclui que qualquer investidor, público ou privado, terá que ter em conta três factores antes de financiar a produção ou distribuição de qualquer obra: “os valores da sociedade expostos pelas preferências reveladas pelo consumo de bens culturais que pode e deve ser desenvolvida pela educação; as externalidades positivas: gera a actividade efeitos externos positivos que justifiquem a presença do Estado como produtor e/ou financiador; a característica do bem – é ou não um bem público e, sendo um bem público, é possível, através da regulamentação, corrigir essa sua característica (assim aconteceu com as estradas)”. A análise é correctíssima e o último ponto em particular parece-me de extrema importância e raramente posto em cima da mesa quando se discutem as questões do apoio da produção de cinema. No entanto parece-me que se esquece facilmente aquilo que é verdadeiramente importante quando se apoia a produção de qualquer obra: o acrescento artístico.
A financeirização da política está alastrando a tudo e o cinema não é excepção. Pouco falta para que o orçamento dos filmes seja mais importante que o seu argumento ou o seu realizador e equipa. Vários são os que criticam o sistema de júris do ICA por apoiar invariavelmente filmes dos já conceituados e por o fazer sem grande sistematização, no entanto certamente que ninguém poderá achar que isso é justificativo suficiente para que se inverta o sistema. Embora as coisas ainda não corram nesse sentido o certo é que – como a imagem que encabeça este texto revela – os filmes que cá se vêm fazer são pouco mais que postais ilustrados (algo que se tem dito dos últimos filmes de Allen). No caso de Indomitable Will (com investimento superior a 15 milhões) a página do concelho avisa “O filme será, assim, um verdadeiro postal ilustrado do concelho” justificando assim o apoio camarário. No mesmo sentido o SEC afirmou “Qualquer apoio a existir por parte do Turismo de Portugal, terá de ser dirigido a um filme com manifesto potencial de captação de turistas e que projecte realmente o destino”, confirmando que a qualidade do projecto é de todas as características a menos importante. Mais triste ainda é a resposta do próprio Woody Allen sobre o convite: “Teriam que me dizer que avançariam com o dinheiro. E depois teria de dizer: um momento, para ver se eu tenho alguma ideia que seja boa para Lisboa“.
O cinema é visto então como um veículo de publicidade tanto pelos legisladores como por alguns dos seus criadores. Aproveito as deliciosas palavras de Ricardo Miranda, especialista em marcas: “Num mundo onde os media se encontram atomizados em milhares de plataformas diferentes, o cinema ainda é nobreza. Um touch point privilegiado. São cerca de 90 minutos a envolver os consumidores (praticamente) sem interferências“. O cinema português é pois o último local que se tem mantido (mais ou menos) incólume aos efeitos perversos da publicidade e do product placement, mas isso é para mudar, tudo a bem do cinema, ou como diz o nosso amigo David Lynch: Bullshit, pure fucking bullshit!