Citando Zezé di Camargo e Luciano no hit de 91 que dá nome ao mais recente filme de João Canijo, o amor é: o que “fez pensar em você e esquecer de mim”, o que dá uma alma “transparente ao apaixonado” e o que “derruba a base forte da paixão”. O amor, do fundo do seu lugar-comum, é isto. E é isto que a actriz Anabela Moreira quando colocada (a palavra sugere isso mesmo, uma experiência) uns meses a viver nas Caxinas com as peixeiras locais, acaba por sentir. Sónia Nunes, a mestre que trata do peixe e ensina Anabela a desempenhar a “obrigação” diz-lhe a dada altura: “só tu é que achas que o amor não é lindo”. E Anabela pensa, emociona-se, coloca-se em registo diarístico ante a câmara, em pausa na pretensa fluidez documental, e dá razão a Camargo: chora pela necessidade de ser feliz, de “esquecer-se” de si (que no fundo é o seu olhar cínico-urbano, mas também a sua condição exterior da profissão de actriz) e de se unir à realidade (obter a tal “alma transparente”) sem distanciamento, para poder questionar a felicidade.
Não duvidamos da honestidade deste sentimento. Muito menos duvidamos da qualidade do trabalho de Moreira, a actriz que acompanha o cinema de Canijo há dez anos (desde Noite Escura). Mas o que nos importa pensar é como relacionar este choque de culturas, de backgrounds, premissa de que parte o filme, com o caminho do realismo documental que Canijo busca na vida das esposas dos pescadores em Caxinas.
Aparentemente, Canijo deu ouvidos às poucas (embora estridentes e, em nossa opinião, pouco justificadas) vozes críticas do lugar indecidível que Sangue o Meu Sangue ocupava para estabelecer um ponto de vista. Lembre-se que era um olhar que não prescindia de uma entrega total dos actores na busca de uma verosimilhança quase sociográfica no bairro do Padre Cruz, mas que construía uma ficção. E nesse sentido criticava-se que a ficção manipulava uma imagem social “pobrezinha”, sem sentido, um aproveitamento artístico da pobreza. Ideia errada, abusiva e, sobretudo que coloca em extremos opostos, como se nunca se pudessem tocar, a realidade social e o ponto de vista ficcional. Uma espécie de rigidez implacável perante uma pseudo-ética para com os “pobrezinhos”.
Não negamos que é mais simples gostar da trilogia incompleta da “Oresteia” de Ésquilo [do Noite Escura (2004) e do Mal Nascida (2007)] pois aí os elementos trágicos estão à tona (e as dissidências não se preocupam tanto com bordéis do interior como com bairros sociais lisboetas) e é tudo mais fácil de colocar “em grelha”. Contudo, e não nos desviando mais, diga-se que o lado ficcional ancorado no real (a dimensão visivelmente mais manipuladora) surge em É o Amor (obra que aparece como encomenda do Festival de Vila do Conde) mais mitigada. Isto porque a experiência de preparação dos actores para Sangue do Meu Sangue, mostrado no making of Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor (2011) é o que dita o seguimento lógico desta última obra de Canijo. Por um lado, a ambição natural da verosimilhança na construção de um ambiente só podia resultar, in extremis, no início de um trabalho sobre o dispositivo documental. E É o Amor é um documentário. Mas por outro lado, Canijo quer continuar a trabalhar o processo da construção de personagem, neste caso a presença de Anabela Moreira que vive todos estes meses em Caxinas para preparar-se para um filme que não existe (mas sobre isto nada nos é dito). E assim, É o Amor também tem essa dimensão ficcional.
E como comunicam? Esta é a questão central do filme. Comunicam mal. É que a introdução diarística de Anabela Moreira, “descida aos infernos”, em first person, a questionar-se, a sentir “ciúmes” da felicidade de Sónia, ajuda a canalizar o filme para um desequilíbrio da neutralidade documental em favor do endeusamento do Outro. Que esse seja um mecanismo normal no humano (o da galinha da vizinha é sempre melhor…) ainda vá, que isso esteja ao serviço de um olhar “cínico” que busca no olhar “inocente” pérolas de sabedoria popular isso já parece trair o espírito do filme e de resto, provavelmente, a própria vontade inicial do cineasta. É um pouco por isso que aqui se fala em “turismo audiovisual ao Outro” como tema na moda no registo documental.
Mas se por tudo isto Anabela acaba por ser uma espécie de “bug” no sistema, a montagem de É o Amor prolonga essa necessidade de dar a ver mais do que o trabalho na lota e o seu modus vivendi, para procurar zelosamente momentos de comunhão entre a actriz e as peixeiras. Comunhão no sentido mais antropológico do termo, na senda da dádiva de Marcel Mauss. Só que não há tempo para isso. Por isso, o clash cultural que a antropologia de Lévi-Strauss começou por procurar suavizar não pode ser suavizado no filme (Rouch), mas confunde-se com a aceleração das emoções, própria da apropriação desse choque pela exploração dos shows televisivos. Os registos diarísticos de Anabela, os momentos de “comunhão” entre Sónia e a actriz, quer se queira quer não, a falta de tempo contamina-os de leituras abusivas como as paixões aceleradas dos Big Brothers ou experiências de choque abstrusos como nesse “belo programa” que a TVI exibiu que dava pelo nome de “Perdidos na Tribo”.
No entanto, para além de dar a ver as piroseiras do casamentos, das músicas (que fazem o filme ser absorvido por elas, tornar-se, ele próprio um tanto piroso), para além da enhanced reality que Anabela crê que Sónia vive, para além das lições de felicidade no plano do carro perto do fim, não esqueçamos que É o Amor é um filme sobre o amor. Uma redundância, um circuito que ocasionalmente está nos bilhetes de amor que Sónia coloca entre as frutas para o marido mas que está sobretudo num certa despudor de Canijo em escolher os “momentos correctos”, em ir para os sítios e deixar-se perder. Essa é uma falta de discernimento que só os grandes cineastas têm quando estão apaixonados pelo seu trabalho. A isto se chama entrega. Ser o outro. E esse é o verdadeiro amor de É o Amor.