Isto se calhar é já muito sabido e discutido, mas Howard Hawks explicou – quando entrevistado por Joseph McBride no livro Hawks on Hawks – que a concepção de His Girl Friday (O Grande Escândalo, 1940) estava assente em duas coisas: repensar a velocidade de The Front Page (Primeira Página, 1931) de Lewis Milestone dobrando ou triplicando o ritmo dos diálogos e transformar a personagem de Hildy Johnson numa mulher, complicando assim a relação das duas personagens principais do filme.
Eu vou aqui tentar ocupar-me principalmente da primeira coisa e portanto deixo só umas palavras sobre a segunda: acho agora impossível, graças à brilhante ideia de Hawks de trocar o sexo de Hildy Johnson (que lhe veio depois de uma leitura da peça em que o próprio Hawks leu os diálogos de Walter Burns e uma rapariga bem bonita leu o de Hildy), ver Johnson como outra coisa que não mulher e entre as quatro adaptações da famosa peça de Ben Hecht e Charles MacArthur fico com este filme e com Switching Channels (Linhas Trocadas, 1988) de Ted Kotcheff.
Refaçam-se filmes, repensem-se narrativas e transformem-se personagens. A “maldição” dos remakes, que é muito apregoada por aí com o remate final de que “Hollywood está sem ideias” é um falso problema. Hollywood sempre foi assim, o “original” não é forçosamente um emblema que se deva seguir às cegas e encarar como a última palavra sobre um enredo ou um grupo de personagens ou um assunto. Ainda bem que se refez The Front Page, Red Dust (Terra Abrasadora, 1937), The Thing from Another World (A Ameaça, 1951), The Desperate Hours (Horas de Desespero, 1955) e Village of the Damned (A Aldeia dos Malditos, 1960), para citar só alguns. E ainda bem que se andam a subsidiar as cervejas e os video-jogos de John Carpenter, que o F.E.A.R. e o Silent Hill não se jogam sozinhos.
Se calhar, Howard Hawks fez remakes a vida inteira. De filmes dele ou de filmes doutros por razões estéticas e políticas [o Front Page que dá no His Girl Friday e o High Noon (O Comboio Apitou Três Vezes, 1952) que dá no Rio Bravo (Rio Bravo, 1959) são os casos e as lutas mais conhecidas]. Se calhar a batalha de um realizador é a de fazer o remake supremo. Se esta não é a lição de todo o grande cineasta, é pelo menos a de Hawks e a do discípulo Carpenter, que sabem que é sempre possível desbravar por território conhecido (e que nunca é tão conhecido assim) nem tanto para atar pontas soltas mas para fazer duma obra um todo e passar tempo muito preciso a olhar para uma só coisa até o olhar se tornar cristalino. Lá para o fim de His Girl Friday percebe-se muito bem que o comboio de Hildy é a carruagem de Feathers no Rio Bravo e é o barco de Bonnie no Only Angels Have Wings (Paraíso Infernal, 1939) e de ‘Slim’ no To Have and Have Not (Ter ou Não Ter, 1944). A questão está em descobrir o processo do que atrasa e adia essas viagens.
No caso de Friday, essa questão leva-nos se calhar ao saber se o final é tão feliz assim. Mas que mal tem uma vida calma em Albany, Nova Iorque? Porque é que leva um redondo “não”? O Bruce Baldwin que parece Ralph Bellamy está sempre a ser atirado borda fora e é feito gato-sapato pelos tubarões que não separam o trabalho da vida nem a vida do trabalho.
Para Hildy Johnson, pode-se perceber perfeitamente o que significa este mundo, no momento em que ouve um som que não pode ser o toque de intervalo de uma escola porque “there’s no school this time of day” e lhe dá tusa de jornalista porque pode ser um “good fire”, uma boa história. E nas cenas finais (na imagem acima) lá está ela a martelar na máquina de escrever ao mesmo ritmo ou mais rápido do que os diálogos do filme. É a forma concretizada no conteúdo e a realização de que havia mais nestes redobrares de velocidade do que refazer só o Page de Milestone. Era uma questão orgânica, também. É tudo tão rápido neste filme. Fala tudo por cima de toda a gente. E é capaz de ser difícil dizer que não quando o mundo nos arrasta assim de forma tão insistente, teimosa e sedutora para ele. Hildy vê nesses sons e nessa engrenagem um portal não para documentar mas para fazer e controlar os acontecimentos. Ameaçar governadores, presidentes e chefes de polícia com um regalo enorme nos olhos. O fazer-se o bem é uma coisa secundária, aqui. E como já alguém disse, Hawks não nos ilude e faz esquecer que há um condenado à morte preso e dependente de todos aqueles jogos de poder. Nunca.
Lembro-me agora doutra cena que ganha outros contornos por causa das velocidades redobradas. Depois de durante minutos a fio se terem martelado palavras e palavras por “dá-cá-aquela-palha”, Mollie Malloy sai da sala-de-imprensa a insultar os jornalistas por a terem usado para ganharem uns trocos. E há um silêncio. Mas um silêncio de morte. A máquina não pode parar, porque se pára começa a ver as coisas doutra maneira. E cai o alçapão. Estão a ver se funciona… Pá, se calhar o melhor era irmos todos passar uma temporada valente a Albany.
His Girl Friday passa no próximo dia 9 de Abril, terça-feira, às 15h30 na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.