O segundo texto da cobertura do IndieLisboa no À pala de Walsh encontra as primeiras grandes obras presentes no festival lisboeta, mais alguns filmes prazerosos e outras tantas desilusões. A cobertura paralela do Luís Mendonça, que com João Lameira escreve estas linhas, no blog CINEdrio pode ser acompanhada aqui (para atestar as diferenças e confluências de opinião entre os dois).
Sinapupunan (2012) de Brillante Mendoza
Brillante Mendoza tinha feito da maternidade e das “barrigas de aluguer” a matéria para o seu melhor filme, o pouco visto – mas ainda assim dado a ver ao público português graças à Zero em Comportamento e à retrospectiva Brillante Mendoza que organizou há uns anos – Foster Child (2007). Esperava deste Sinapupunan (Thy Womb, 2012) uma variante desse filme, eventualmente pondo o acento tónico no “debate religioso e moral” e menos na questão social e económica. A relação entre estes dois títulos fica-se, contudo, no papel, porque formalmente Mendoza está aqui quase irreconhecível. O ritmo da acção é demasiado lento e mastigado, a narração emperra constantemente em situações derivativas, desliga-se demasiadas vezes das suas personagens, ao ponto de perdermos – em certos momentos – o contacto com as suas existências e o tal “debate interno” à volta da sua senda. A linearidade narrativa, que propiciava a imersão do espectador nas histórias e viagens dos seus ou que são os seus filmes, esboroa-se aqui ao ponto de a certa altura parecer que é o próprio Mendoza a perder o interesse pelo seu filme. (LM)
Sinapupunan (Observatório) volta a ser exibido no dia 28 (domingo), às 17h00, no Cinema City Classic Alvalade.
Um Fim do Mundo (2013) de Pedro Pinho
O documentário português tem-se deslocado amiúde aos bairros sociais (ou problemáticos), viagens que se podem inscrever “no turismo audiovisual ao Outro” de que falava no último texto sobre o IndieLisboa. Com perigo de estar a ser injusto para muitas dessas obras (e estarei, com certeza), parece-me que Um Fim do Mundo (2013) ganha muito em ser ficção (mesmo que interpretada pelos jovens do bairro da Bela Vista em Setúbal). Na ficção, os “objectos de estudo”, participantes do processo criativo como actores, sentem-se menos observados e dão mais de si. Quase se diria que expõem mais da sua intimidade do que fariam num documentário, em que se fechariam em anedotas e nos comportamentos “exóticos” que a montagem costuma destacar. De louvar também a maneira como Pedro Pinho realça a normalidade daquele mundo, em que há conflito, em que há violência, em que há delinquência, em que há discriminação, e em que há paixões adolescentes, idas à praia, divertimento e festas. Pinho não procura seguir sociologias de pacotilha nem o registo tablóide do Correio da Manhã, conseguindo um equilíbrio que faz justiça aos belos não-actores que encontrou. Por exemplo, na cena no hotel em Tróia, que noutro filme serviria para demonstrar a exclusão social dos miúdos (com mais ou menos dramatismo), há um sentido lúdico que corta esse dispositivo estafado. (JL)
Um Fim do Mundo (Competição Nacional) volta a ser exibido dia 25 (quinta-feira), às 17h00, na Culturgest.
Gimme the Loot (2012) de Adam Leon
É muito complicado dizer mal de Gimme the Loot (2012): é um filme muito simpático, bem escrito (talvez demasiado bem escrito, nota-se muito os dedos do argumentista-realizador Adam Leon; alguns dos diálogos que saem da boca dos miúdos vêm de alguém muito mais velho), mostra uma Nova Iorque longe dos clichés habituais (mas há tantas Nova Iorques, que isso não é assim tão difícil) e deixa o espectador reconfortado (é o chamado feel-good movie). Para mais, faz lembrar coisas muito boas – o Spike Lee menos político de She’s Gotta Have It (Os Bons Amantes, 1986), certo Woody Allen mais slapstick – mesmo que não esteja propriamente à altura destas, e tem uma banda-sonora deliciosa com clássicos soul, funk e hip-hop (dos primórdios). Só que os problemas de Gimme the Loot são exactamente as suas qualidades: é tão doce tão doce (a única personagem verdadeiramente repreensível é a menina rica) que corre o risco de se tornar enjoativo. O que não creio que aconteça, mas a verdade é que não há ponta de perigo nesta obra fofinha (o adjectivo mais apropriado para a descrever). (JL)
Gimme the Loot (Cinema Emergente) volta a ser exibido dia 26 (sexta-feira), às 23h55, no Cinema City Classic Alvalade.
Museum Hours (2012) de Jem Cohen
Falar de um vigilante no Museu de História de Arte em Viena é falar de alguém que “vê à distância” tanto quanto “fiscaliza distâncias”. Estar num museu é, enfim, uma oportunidade para criarmos distâncias – as mais justas possíveis – com aquilo que queremos admirar. Podemos ver, mas não podemos tocar. Johann garante que a visão se torne táctil antes que as mãos cheguem ao quadro, à máscara ou à estatueta. O filme responde com a mesma delicadeza e sensibilidade à sua visão e às suas palavras sempre ponderadas e in-formadas, isto é, que “abundam em formas”. Trata-se de uma obra feita na medida justa da sua personagem, isto é – de novo, a problemática de museu – que nos confere a distância certa para podermos contemplar a sua existência. Muitas linhas mais poderia escrever sobre este filme fascinante e tocante, resta-me dizer ao leitor que foi o melhor filme que vi até agora no IndieLisboa 2013. (LM)
Museum Hours (Observatório) volta a ser exibido no dia 24 (quarta-feira), às 17h00, e no dia 27 (sábado), às 19h15, em ambos os casos no Cinema City Classic Alvalade.
Äta sova dö (2012) de Gabriela Pichler
O que escrever sobre a enésima versão de “realismo social” filmado de câmara à mão? Embora tenha a crueza da sua estética, potenciada pela interpretação de Nermina Lukac (uma presença agreste, feroz, mas capaz de doçura), Äta sova dö (Eat Sleep Die, 2012) não traz nada de novo (nem é particularmente interessante), apenas as agruras de um grupo de trabalhadores de uma empresa de uma pequena localidade, na maioria imigrantes de Leste num dos países mais civilizados da Europa, a asséptica e eficiente Suécia, que perdem o emprego; sem qualificações (o grande drama da protagonista é não ter carta de condução), vêem-se gregos (figura de expressão) para arranjarem trabalho. Esta situação será um problema social relevante, mas daí não costuma vir grande cinema. (JL)
Äta sova dö (Competição Internacional) volta a ser exibido dia 24 (quarta-feira), às 21h45, no Cinema City Alvalade.
Simon Killer (2012) de Antonio Campos
Já era assim em Afterschool (Depois das Aulas, 2008), sua primeira longa-metragem (sobre a adolescência), e continua agora com a segunda (sobre o início da idade adulta), Simon Killer (2012): Antonio Campos usa o cinema para exorcizar os fantasmas pessoais, as fantasias mais negras, o piores sentimentos. Consciente de que qualquer humano está a um passo da violência física (consciente de que ele próprio o está), de que esta é banal, uma necessidade talvez, Campos prefere a violência psicológica da câmara de filmar (ela própria consciente, com vontade própria). Com as devidas distâncias, Simon Killer lembra Taxi Driver (1976), em que o também nova-iorquino Martin Scorsese e Paul Schrader imprimiram em película o que de mais repugnante lhes (se) passava nas suas cabeças. A personagem de Simon, um vampiro urbano que suga a vida a quem lhe dá a mão (ao som de electro pop sensual e malsão), mais do que a entrega do actor Brady Corbet (aquém do que se lhe pedia), revela a extraordinária entrega de um realizador. Haja alguém com coragem para dar uma imagem doentia de si mesmo. É que o espectador, por vezes, também precisa de catarse. E de sofrer este tipo de violência. Simon Killer não é tão rigoroso quanto Afterschool e falta-lhe um actor como Ezra Miller, no entanto provoca dor (no fundo, no fundo, a relação entre Campos e o espectador é sado-masoquista). (JL)
Simon Killer (Competição Internacional) não terá nova exibição.
Shirley – Visions of Reality (2012) de Gustav Deutsch
Um arqueólogo das imagens em movimento, especialista em dar “nova vida” a imagens de filmes antigos, Gustav Deutsch inverte a fórmula aqui: cria ficção a partir de 13 quadros de Edward Hopper. Não se limita a “animar” esses quadros, porquanto encontra na personagem feminina, a actriz de teatro Shirley, um elo comum a essas imagens do famoso pintor norte-americano, datadas dos anos 30 aos anos 60. As figuras mexem-se, contam o que lhes vai no espírito (por vezes em reflexões interiores, marcadas pelo tempo, que ouvimos em over) e, num momento significativo, lêem para si e para nós. É neste momento que surge a explicação para o subtítulo deste filme: Shirley lê a Alegoria da Caverna, “pondo em xeque” essa categoria frágil que é o real e acentuando o poder da representação (as sombras que se projectam nas paredes da caverna platónica). No geral, o exercício é bem sucedido, mas pergunto-me como seria um filme desta natureza que apenas se limitasse a reproduzir os quadros, sem se preocupar tanto em quebrar com a sua natural imobilidade. (LM)
Shirley – Visions of Reality (Observatório) volta a ser exibido no dia 28 (domingo), às 21h30, no Cinema City Classic Alvalade.
Leviathan (2012) de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel
Antes da sessão, alguém me pergunta se tomei um Vomidrine (basta o nome para perceber para que maleita este medicamento serve). Às primeiras imagens, percebo porquê: a câmara, colocada na cabeça de um dos pescadores da embarcação de alto mar onde Leviathan (2012) é filmado, sofre não só da ondulação como dos movimentos bruscos do marinheiro que recolhe as redes cheias de peixe, cega a qualquer ideia de enquadramento, a qualquer noção de como se deve filmar (como acontecerá em/na boa parte do filme). Essa “aleatoriedade” da imagem (a câmara nunca é empunhada por alguém, geralmente está agarrada a objectos) é o primeiro prazer que Leviathan provoca: só na presença dela, o espectador se dá conta de quantos filmes reproduzem planos estafados, cansados de si mesmos (e o filme perde-se um pouco quando permite que os humanos tomem conta dele). Depois, Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel amanham muito bem as imagens recolhidas numa montagem que realça os momentos de puro terror – serial killers de capuz a esventrar as suas vítimas com ominosas gaivotas a sobrevoar; o exacto momento em que a vida abandona o corpo num último estertor – e se diverte a fazer raccords absurdos (como o do homem que sai do chuveiro para o meio do oceano). Para o fim, o melhor, a música, trabalhada a partir dos sons reais do barco, da pesca, do bater das asas das gaivotas, dos diálogos dos pescadores (sem legendagem, já que são apenas ruído), do mar, dos peixes a morrer; uma música desagradável e assustadora (soa a Oneohtrix Point Never) que, em combinação com as imagens, hipnotiza definitivamente o espectador. A expectativa que se gerou em torno de Leviathan é plenamente justificada, é um belo filme que, coisa absolutamente raríssima, garante que ainda é possível fazer algo novo no cinema. (JL)
Leviathan (Competição Internacional) volta a ser exibido dia 26 (sexta-feira), às 21h45, no Cinema City Classic Alvalade.
Bobô (2013) de Inês Oliveira
Fica a sensação de que Bobô (2013) é uma obra inacabada, que fica algo por contar, que o final é apressado, depois de uma introdução que se arrasta um pouco. Nada disso é necessariamente mau e, de algum modo, dá alguma graça ao filme (que funciona como um esboço). De resto, tem uma fotografia interessante (e que procura uma Lisboa diferente), se bem que demasiado “esteticamente correcta” (muito composta, muito bem iluminada, com planos bem enquadrados e quase sempre fixos, mas sem ânimo, letárgica). O pior é o já citado “turismo audiovisual ao Outro” (um tema deste IndieLisboa? Uma moda destes tempos?), desta vez em formato ficção. Há qualquer coisa de folclórico, no pior sentido do termo, quando a protagonista “viaja” para o universo africano, principalmente nas cenas da festa do casamento. No fim, Bobô deixa poucas marcas, iminentemente esquecível. (JL)
Bobô (Competição Nacional) volta ser exibido dia 26 (sexta-feira), às 19h00, no Cinema City Classic Alvalade.