O terceiro texto da cobertura do IndieLisboa no À pala de Walsh passa-se entre as obras de Peter Kubelka – cineasta da velocidade -, a reinvenção de Korine, a anedota boçal de Wheatly, a primeira obra de João Viana e a sinfonia natural de João Vladimiro. A cobertura paralela do Luís Mendonça, que com Ricardo Vieira Lisboa escreve estas linhas, no blog CINEdrio pode ser acompanhada aqui.
Programa Peter Kubelka
É surpreendente a coerência deste cineasta que trabalha até ao mais infinitesimal reduto do cinema, procurando assim uma espécie de transcendência do mínimo (deleite pela ablação do cinematógrafo) que se faz notavelmente numa anulação do cinema pelo cinema, um desaparecimento da imagem e do som a par de uma afirmação cada vez mais palpável e ruidosa do medium. Podemos separar os seus filmes em blocos – filmes metafóricos e filmes métricos, por exemplo – mas o mais notável é a continuidade, a absoluta – regresso à palavra – coerência do trabalho que Kubelka desenvolve sobre a linguagem do medium. A sua obra começa com Mosaik in vertrauen (1955), uma interessante variação do estilo Free Cinema, antecipando já alguns “truques” da Nouvelle Vague, e termina – até ver – em Antíphon (2012).
De um para outro, as mudanças são evidentes, mas quando acompanhados pela projecção do que está “entre” estes dois títulos, percebemos que não há ruptura alguma, mas sim um continuum: a posição política é a mesma, vemos sempre em Kubelka uma vontade de, pedaço a pedaço, ir salvando o cinema de si mesmo, mostrando mesmo que por muito mais que as figuras desapareçam – as de Mosaik in vertrauen, de Adebar (1957), de Dichtung und wahreit (2003) – não só estaremos sempre perante o que se pode chamar de cinema, como na realidade estaremos mais próximos de superar a nossa, tão terrivelmente cristalizada, “ideia de cinema”. Quando já não há imagens filmadas e apenas vemos o preto e o branco, apenas ouvimos som/ruído e ausência de som/ruído, estamos enfim a assistir à depuração de todo um programa estético: imagens que “atacam” o ecrã e uma projecção que se torna na verdadeira experiência, antes mesmo das imagens fixas que Kubelka dispara 24 vezes por segundo. Cinema da velocidade e não do movimento, cinema da urgência, do contacto, da matéria, da experiência, do fotograma… Portanto, cinema em vias de extinção. (LM)
Spring Breakers (2012) de Harmony Korine
Não se pode dizer que Korine se tenha reinventado com Spring Breakers (2012), até porque nele encontramos – só para citar um exemplo – um prazer que não é novo em mesclar o registo vídeo, documental, com composições estilizadas, rigorosamente encenadas (exemplo da sequência de abertura). Contudo, podemos dizer que Korine está mais sintonizado com a realidade do seu tempo neste filme e o gesto que outrora era presunçosamente arty, cheio de provocação escatológica e nihilista, ganha contornos de fábula irreverente, no limite do terrorismo audio/visual. A história de um grupo de raparigas e o seu projecto em torno de uma “spring break” que lhes fique guardada na memória para sempre vão ser o grande pretexto que Korine encontra para fazer implodir todos os clichés que minam o novo “american dream”, um sonho infernal húmido, que mistura sexo, drogas, praia, muito calor, fé, Britney Spears e cor, todas do arco-iris, mas sobretudo muito cor-de-rosa. (LM)
Les carabiniers (1963) de Jean-Luc Godard
Lançado no mesmo ano de Le petit soldat (O Soldado das Sombras, 1963) e Le mépris (O Desprezo, 1963), Les carabiniers deverá ser um dos filmes menos amados/vistos do período mais glorioso de Jean-Luc Godard. A primeira razão possível para este relativo obscurecimento será, obviamente, a sua proximidade temporal com essa explosão de cor e erotismo que é Le mépris. Outra razão pode ser o facto de Les carabiniers investir num discurso alegórico menos imediatamente “afrontador” que um Le petit soldat, não lhe valendo sequer a marca de “filme-escândalo”. Apesar de tudo isto, a sua encenação de uma guerra imaginária, numa França imaginária (não se chama Alphaville, isso é certo), parece antecipar as bases do discurso anti-bélico de um Pierrot le fou (Pedro, o Louco, 1965). Todo o filme apresenta-se contaminado, audiovisualmente, por uma atmosfera de morte e horror, não só através do entrecruzamento de “imagens filmadas” com imagens de arquivo, mas desde logo através da fetichização diabólica da carabina e daquilo que os dois protagonistas fazem com ela, sem a menor piedade. Contudo ou (hélas!) por isso mesmo, Les carabiniers é uma comédia. (LM)
Un enfant de toi (2012) de Jacques Doillon
Doillon ensaia aqui uma espécie de conjugação perfeita entre o “cinema adulto” de Rivette e Rohmer e o regresso ao microcosmo infantil do seu filme mais visto e amado, o belíssimo Ponette (1996). Quando se aproxima desses dois grandes mestres do cinema francês, torna-se verboso e afectado, quando se reencontra ao lado da criança no filme, fá-lo de modo pálido e automático, sobretudo por comparação com o que alcançara no filme citado. Ao mesmo tempo, estamos a falar de uma história sobre afectos, emoções, sexo e procriação que se prolonga por mais de duas horas repetindo ad nauseam as mesmas hesitações existenciais das suas personagens ou digerindo, com indisfarçável auto-comprazimento, os jogos psicológicos que vão ligando e desligando as personagens entre si, numa espécie de role playing constante, muito teatralizado, que mexe e remexe na dimensão privada daquelas figuras mas que não consegue, nem por um minuto, envolver-nos no seu mundo. (LM)
Un enfant de toi (Observatório) volta a ser exibido no dia 28 (domingo), às 19h00, no Cinema City Classic Alvalade.
Sightseers (2012) de Ben Wheatley
Sightseers é bem sucedido em duas coisas: torna claro que Ben Wheatley é um embuste; torna ainda mais evidente que a estranheza de Kill List (2011) – a única coisa que salvava este filme do embaraço cinematográfico – era afinal um “acidente de percurso” mal calculado. Uma comédia negra, estilo britcom, realizada de forma preguiçosa e sem personagens dignas desse nome, eis um filme que não sei o que faz no IndieLisboa 2013. Desde logo, claramente que o “alvo” deste cinema é o de outro festival da cidade, o MOTELx. Por outro lado, se é financeiramente independente, poderá sê-lo, mas o gesto de realização é de completa dependência com tudo aquilo que “vende” rápido e depressa, nomeadamente a anedota idiota e boçal. O prato forte é a ironia ou não seria este um filme da “pequena Grã-Bretanha” – país que encolhe muito no grande ecrã, sobretudo quando tenta emular o que faz bem no pequeno. Mas a ironia aqui auto-ilustra-se até à exaustão como se à sua frente estivesse uma plateia que ainda se espanta, hoje, com a utilização da roda. (LM)
Leones (2012) de Jazmín López
Como o formato é curto, pede-se que numa frase apenas digamos o que vimos num filme; sobre leones uma frase na bastará mas poderíamos dizer que estamos algures entre Lost e Last Days (Os Últimos Dias, 2005) ou jogando o jogo das frases de Hemingway – que os personagens jogam (construir uma frase com 6 palavras, nem mais nem menos) – ‘Os Cinco: Uma aventura na floresta’. Talvez o pior do filme seja essa necessidade de introduzir elementos misteriosos ou sobrenaturais para justificar aquilo que é o melhor do filme, a leveza da câmara que acompanha a leveza das personagens que deambulam por uma floresta. Jazmín López deve ter achado que isso seria demasiado pouco para encher um filme (e não seria, penso no encantador L’estate di Giacomo (2011) também em competição o ano passado). No entanto, esquecendo isso, o que me fica na memória é um plano de 360º lentíssimo sob as copas das árvores da floresta a velocidade acelerada em que vemos o dia a passar: a luz a mudar-se da manhã para a tarde e sem um corte as personagens a afastarem-se quando a câmara começa a rodar e regressarem quando esta volta – desconfiados de que já por ali haviam passado. Nesse plano soberbo López põe em cima da mesa aquilo que lhe interessa: uma câmara que se esqueceu do tempo. Nunca anoitece naquela selva, é uma tarde constante, uma moleza de depois do almoço que não cessa. Mais do que uma câmara que busca os personagens, aqui é ela que os prende num limbo, uma teia de tardes de verão. (RVL)
Computer Chess (2013) de Andrew Bujalski
A empresa que Bujalski quis aqui inaugurar é uma que merece todo o nosso respeito (como já em No o merecia), filmar os anos 80 com câmaras da época, impregnando a ficção com os ares de material de arquivo. No entanto o problema maior com Computer Chess (2013) vem da inconsequência do olhar. Começamos o filme com um senhor a avisar o câmara, que está naturalmente fora de campo, para não filmar o sol porque queima lente da máquina: percebemos aí que vamos entrar no campeonato de computer chess através de uma reportagem (uma espécie de found footage nerd). Mas cedo o realizador percebe as limitações do formato e a câmara começa a ganhar uma corporização exógena ao ambiente que retrata, isto é, filma as personagens como se não estivesse lá, fazendo ruir todo o trabalho que a arqueologia vídeo tinha conseguido erguer. Embora tal facto prejudique o filme, a verdade é que o importa, muito mais que esse gimmick, é o humor delicadíssimo que vem do rigor da reconstrução – tanto das personagens, como de toda a direcção de arte que tem a mão do próprio Bujalski. Por entre muita programação, algum álcool e algumas drogas e muito pouco sexo (e uma convenção religiosa alternativa que partilha o auditório com os nerds) ficamos com um filme fofinho mas tristemente esquecível. (RVL)
The Act of Killing (2012) de Joshua Oppenheimer
O melhor e o pior de The Act of Killing (2012) é simultaneamente o seu dispositivo: convidar antigos assassinos (do holocausto indonésio e que mataram mais de 2.3 milhões de alegados comunistas, na maioria dos casos emigrantes chineses a viver no país) e dar-lhes total liberdade para retratarem em filme os eventos em que estiveram envolvidos. É o melhor no sentido em que contando o que se passou, representando os acontecimentos, filmando-os e vendo-os no fim, permite ao realizador Joshua Oppenheimer oferecer um ponto de vista exterior dos acontecimentos àqueles que estiveram envolvidos até ao tutano na matança. Dessa forma o cinema torna-se ele mesmo ferramenta de memória tanto para nós que não conhecíamos o caso como para os envolvidos. É o pior porque através desta liberdade que se oferece aos assassinos garante duas coisas: uma, uma névoa de olhares em que a mão de Oppenheimer é dificilmente distinguível, isto é, onde começa o olhar de um e onde acaba o olhar do outro – tudo isso é misterioso; dois, ao dar liberdade aos assassinos o projecto funciona como denúncia (ainda que de forma excessiva e demasiado ridícula – há um gosto pelo escatológico que não acrescenta nada a não ser nojo), mas, ao tratá-los com distanciamento documental, o realizador desculpabiliza os seus actos, aliás, ao conseguir o arrependimento em frente às câmaras (com o choro e os vómitos) garante que também o espectador empatize com um assassino confesso, o que não é aceitável. (RVL)
A Batalha de Tabatô (2012) de João Viana
Começam a torna-se cada vez mais frequentes estes casos: filmes portugueses que passando por festivais estrangeiros de renome conseguem capitalizar tais feitos de modo a que só esse percurso justifique a sua qualidade. A Batalha de Tabatô (2012) é o mais recente caso. Vindo de Berlim com uma menção honrosa para primeira obra as expectativas eram altas, mas a verdade é que o filme de João Viana é inegavelmente uma primeira obra sofrendo de todos os males que se costumam associar a tais primeiras vezes: inconsequente na forma, cheio de ideias desaproveitadas e uma execução que por norma deixa muito a desejar. Consubstanciemos, ao utilizar actores não profissionais Viana lança-se num formato muito próximo de alguns Oliveiras e Straubs, onde as palavras pesam e a teatralização dos gestos é notória, mas por outro lado quer também tocar num certo misticismos dos espíritos e dos irãs africanos – realismo mágico portanto. Dessa mistura resulta pois um objecto muito desequilibrado que oscila entre muito grandes planos a jogar com a profundidade de campo e planos muito abertos da selva africana; filma cenas longuíssimas em plano fixo afastado para depois entrar em câmara agitada na cena do acidente; cria uma série de símbolos – a mala de viagem, o casaco militar, os brinquedos – para que depois nenhum deles tenha consequência; tenta agitar os demónios do passado colonialista mas em vez disso oferece-nos um batido de amadorismo e boa vontade. (RVL)
Lacrau (2013) de João Vladimiro
Lacrau (2013) não é, definitivamente, um filme fácil. João Vladimiro está mais próximo de Albert Serra do que qualquer outro realizador português e como tal é natural que as reacções ao seu filme não sejam as melhores por parte do público (durante o decorrer da sessão houve várias pessoas que saíram antes do final, vários murmurares de desagrado e vários comentários depreciativos já no final do filme). Feita a introdução tenho para mim que Lacrau foi o melhor filme que vi no IndieLisboa este ano (note-se que vi apenas aqueles sobre os quais aqui escrevo). Escrevi várias vezes nestas cápsulas que faltava rigor no olhar de alguns realizadores, João Vladimiro tem o olhar apuradíssimo e não filma um segundo que seja que possa desequilibrar o conjunto. Lacrau pauta-se por uma série de dizeres que intercalam as imagens, um deles é: ‘Se o Lacrau visse e a víbora ouvisse não havia quem escapulisse’ e é aqui que se encontra todo o motor do filme. Vladimiro parece estar mais interessado nas pedras e nas plantas e nos animais do que nas gentes, mas também as filma (às gentes) como se elas fossem também pedras ou plantas ou animais. Há um desejo de conferir vida ao inanimado e de simplificar o complicado – o humano; ou seja, de conferir características aos animais e retirá-las aos humanos. Daí que se filme através de folhas ou galhos de árvores como que em busca de um filtro natural para as construções humanas ou por outro lado, as pedras são filmadas como se fossem gente – com covas como olhos e cabelo de musgo. Vladimiro está vidrado nos elementos, vemos a morte de um porco só acompanhado pelo som do crepitar de uma fogueira ou conhecemos as ruas de pedra ao som dos cair das gotas. Lacrau é portanto uma sinfonia natural sobre o que ainda resta de natureza no nosso mundo – porque os abutres já estão à espera. (RVL)