Os primeiros três dias do IndieLisboa trouxeram a confirmação de Ulrich Seidl, alguns filmes mornos e uma ou outra desilusão. Mas o festival promete aquecer durante a semana, quando as competições começarem em força. A cobertura paralela do Luís Mendonça, que com João Lameira escreve estas linhas, no blog CINEdrio pode ser seguida aqui (para atestar algumas diferenças de opinião entre os dois, principalmente em relação a Seidl).
Paradies: Liebe (2012) de Ulrich Seidl
Alvo de uma atenção especial nesta edição do IndieLisboa (para além da trilogia Paradies, passam mais três longas-metragens do realizador), Ulrich Seidl, na veia de outros cineastas austríacos, traça (no seu caso, a traço gordo) uma visão muito pessimista da natureza humana. No entanto, ao contrário de Michael Haneke e Markus Schleinzer [autor de Michael (2011), um dos destaques do Indie no ano passado], Seidl, pelo menos neste Paradies: Liebe (Paradise: Love, 2012), ensaia uma comédia, negríssima: Teresa, uma mulher de meia-idade, vai de férias para o dito paraíso, o Quénia, em busca de romantismo (diz ela) e dá de caras com o pós-colonialismo em que todos se tentam aproveitar de todos (na verdade, Teresa não passa de uma turista sexual, por muito que se mostre púdica ao início). Ninguém sai bem desta (bonita) fotografia (Seidl sabe enquadrar, desenhando belos quadros, como o de cima, e outros donde extrai o máximo de acidez), nem os brancos nem os pretos, ambos predadores (do sexo, do dinheiro), deixando o espectador numa posição bastante desconfortável, assistindo a humilhações, depravações e outros tipos de degradação, sem ter onde se refugiar (Seidl, com grande coragem, não permite a redenção das suas personagens). (JL)
Paradies: Liebe (Observatório) volta a ser exibido no dia 26 (sexta-feira), às 21h30, na Culturgest.
Death Row (2012) de Werner Herzog
Pena de morte. Eis um assunto que por muitas vezes que seja levantado por cineastas, políticos, filósofos ou apenas por cidadãos anónimos não perde, por um momento, a sua inquestionável pertinência e sentido de urgência. Herzog não dá tempo para o espectador se perder em especulações vãs e faz a devida declaração de princípios logo na abertura de cada um dos episódios desta mini-série intitulada Death Row: “(…) I respectfully disagree with the practice of capital punishment”. A partir daqui, entramos no “abismo”, mais concretamente, na cabeça de cinco condenados que aguardam, alguns já sem acalentar esperanças noutro desfecho, pela marcação daquele que será o seu último dia de vida na Terra. Vistos que estão estes 200 minutos de sofrimento humano – para o lado das vítimas, para o lado dos criminosos, para o lado do sistema judicial e da sociedade norte-americanas – tenho a dizer que, enquanto “objecto cinematográfico” – chegará a sê-lo? Justificará a sua projecção em sala? Só ganhará com isso? – Death Row não acrescenta nada que não esteja já expresso e bem condensado na longa-metragem Into the Abyss, filme também realizado por Werner Herzog que serve de antecâmara à série e que estreou no primeiro dia do IndieLisboa 2012. (LM)
Death Row (Observatório) volta a ser exibido no dia 21 (domingo), às 21h45, no Cinema City Classic Alvalade, nas suas Partes I e II e no dia 27 (sábado), mesma hora e mesmo local, nas suas Partes III e IV.
La Piscina (2012) de Carlos M. Quintela
Nevoeiro, nuvens escuríssimas. Logo no primeiro plano (gizado a regra e esquadro) de La Piscina (2012), uma tempestade promete abater-se sobre a piscina onde um apático instrutor “dá aulas” (o dia passa-se com tal modorra, que não se pode falar de exercício) a um grupo de adolescentes inadaptados: uma miúda sem uma perna, um rapaz com poliomielite, outro com síndrome de Down e, finalmente, um outro que se recusa a falar (o único que aparentemente não tem qualquer problema físico). A tempestade acabará por eclodir, literal e figurativamente, quando a permanente provocação da rapariga ao mudo (o ser diferente) chega a vias de facto (quase o afoga). Não se percebe muito bem se o cubano Carlos M. Quintela quis fazer um comentário político (a personagem do instrutor, “o Estado”, é tão passivo e neutral, que chega a dar essa ideia) ou apenas (mais) um comentário à natureza humana (a crueldade dos mais fortes e dos mais aptos). Não que isso fosse um problema em si, mas o filme é tão desenxabido (nem carne nem peixe) que essa incerteza (juntamente com outra, a estética: aqueles planos gerais, alguns propositadamente esquisitos, nunca jogam bem com os grandes planos dos diálogos) deixa a sensação que o realizador não sabe ainda dominar o seu cinema. (JL)
La Piscina (Cinema Emergente) volta a ser exibido no dia 24 (quarta-feira), às 23h55, no Cinema City Classic Alvalade.
Rocker (2013) de Marian Crisan
Rocker é um “filme de personagem”. Digo-o no singular de propósito, tal como o próprio título singulariza esta história vivida “a dois”, sobre um pai que se projecta no filho e um filho que se projecta no pai. Rockers? Não, Rocker, no singular, objecto orgulhosamente “filho do pai”. Afinal, é ele que alimenta o sonho e subsidia o estilo de vida do seu rebento, um newborn rocker feito à sua imagem, logo, também com o seu quê de old school. Como tal, a sua inspiração tem de vir do álcool, do fumo e… da heroína. Não sabemos ao certo por que este pai chegou a esta situação, na realidade, quase caímos de pára-quedas para constatar que algo aparentemente muito destrutivo junta aqueles dois na senda do mesmo sonho. Se não sabemos bem o “porquê”, a câmara de Marian Crisan dá-nos a ver o “como”: como sobrevive este pai à vida que leva? É comovente a forma como acabamos por descobrir um certo “equilíbrio” nas acções deste homem. Descobrimos, por exemplo, como a sua decisão de se tornar no principal dealer do filho é uma maneira de o proteger e, logo, uma demonstração de amor. Mesmo que esteja bem longe de ser marcante, é provável que venha a registar na memória esta história (dura) de um pai exemplarmente não exemplar. (LM)
Rocker (Cinema Emergente) volta a ser exibido no dia 21 (domingo), às 19h00, no Cinema City Classic Alvalade, e no dia 27 (sábado), às 14h30, mesmo local.
Public Hearing (2012) de James N. Kienitz Wilkins
A ideia de pegar na transcrição de uma audiência pública (ao que parece, encontrada na internet) para decidir a expansão de uma loja Walmart numa pequena cidade do Estado de Nova Iorque, pontuada por jargão legal e procedimentos processuais, e encená-la, em tempo real (aos intervalos da sessão correspondem intervalos no filme, em que o espectador fica especado a olhar a inação), com actores profissionais tinha tudo para dar um filme maçudo, com um conceito interessante e pouco mais. Talvez seja esse o grande trunfo de James N. Kienitz Wilkins. Visto que o conteúdo de Public Hearing (2012) é, por vezes, tão árido (noutros é exaltante, esclareça-se, como um bom exercício democrático pode ser), o realizador viu-se obrigado a encontrar soluções fortes. Se algumas são de gosto duvidoso (as imagens da floresta que circunda um Walmart em animação 3D; os guinchos de feedback dos microfones), a maneira como Public Hearing é filmado – tudo em grandes planos dos participantes ou planos de pormenor de pernas nervosas, laranjas descascadas, o “Walden” de Thoreau deixado numa cadeira, mãos a apalparem um cigarro American Spirit, nunca há um plano médio, quanto mais um geral – cria tensão cortante e momentos de beleza hipnótica. Bela surpresa. (JL)
Public Hearing (Pulsar do Mundo) volta ser exibido no dia 25 (quinta-feira), às 14h45, na Culturgest.
É o Amor (2013) de João Canijo
O maior problema de É o Amor (2013), encomenda do Festival de Vila do Conde a João Canijo, parece advir da premissa de que as personagens das Caxinas, a carismática Sónia Nunes (patroa dura e autoritária, amiga doce ) à cabeça, são mais interessantes do que nós, citadinos de classe média. É tal o tempo de antena de Sónia (cujo aumento deverá ser proporcional ao acrescento na duração do filme desde o passado Verão que o torna demasiado longo), que, às tantas, a sua “sabedoria” (sobre a vida, sobre o amor, sobre a pesca, sobre os homens, sobre Anabela Moreira, sobre tudo) começa a afigurar-se como uma torrente de lugares comuns, de que É o Amor se escapa traindo-a a ela e às outras peixeiras e, principalmente, a Anabela Moreira, que durante as filmagens trabalhou na lota, partilhou experiências e sentimentos, viveu com elas, tornando-se sua amiga. Trai as peixeiras, porque se compraz em mostrar o piroso, o mau gosto (os vídeos, as canções de Zezé di Camargo, o casamento) para citadino se rir. Trai Anabela Moreira (ou ela trai-se a si mesmo, já que é co-autora do argumento), porque a obriga a uma auto-análise de câmara à mão particularmente penosa (pois, para além de não dizer nada que não se veja no resto do filme, soa bastante a falso). É triste que Canijo (e a própria) não perceba que a câmara e o espectador preferem sempre Anabela Moreira, apesar do “exótico” das outras personagens. Ninguém desvia o olhar de uma actriz daquelas. Só quando esta pega na pequena câmara digital. (JL)
Francine (2012) de Brian M. Cassidy e Melanie Shatzky
Francine é um pequeno filme de pequenos momentos, pequenos silêncios, pequenas situações, que não se quer agigantar, nunca se agiganta, de tal modo que se arrisca a cair num vazio. Parece que nos passa ao lado e nem uma corrente de ar chega a provocar, mas não devo ser tão duro com um filme que não quer ir mais além do rosto e corpo da sua actriz, a fabulosa Melissa Leo. São 74 minutos de uma ficção anódina, mas também são 74 minutos que documentam a acção quase muda de uma grande actriz, aqui na pele de uma mulher que saiu da cadeia e tenta ajustar-se ao mundo “lá fora”. Encontros e desencontros amorosos, sucessão de empregos e uma paixão alienante por animais, Francine-personagem ou Francine-filme só seria isto e pouco mais se não fosse Leo. (LM)
Francine (Competição Internacional) volta a ser exibido no dia 21 (domingo), às 19h15, na Culturgest.
Paradies: Glaube (2012) de Ulrich Seidl
A sensação que tinha ficado de Paradies: Liebe confirma-se: nesta trilogia, Ulrich Seidl anda a fazer comédias negras sobre a natureza humana (dos austríacos e não só), conseguindo através do humor que do seu pessimismo não saia uma pregação vã e entendiante, como as de Anna Maria, a beata de meia-idade (irmã de Teresa do primeiro capítulo de Paradies) que protagoniza Paradies: Glaube (Paradise: Faith, 2012) e vive uma relação pouco saudável com Jesus Cristo (a sua imagem, romantizada, erotizada) que envolve auto-flagelação e outro tipo de “sacrifícios”. Durante umas férias do seu trabalho como radiologista (e é engraçado que cada Paradies apanhe as suas protagonistas em férias), aproveita o tempo livre para evangelizar almas perdidas – um casal que vive em pecado (em união de facto), uma imigrante de Leste alcoólatra (os imigrantes, desenraizados, são as vítimas preferidas de Anna), um homem em cuecas. Tudo “está bem”, apesar do pouco sucesso da evangelização, até que aparece o marido paraplégico, um muçulmano a que não agradam tantos crucifixos espalhados pela casa nem o voto de castidade da mulher. Inicia-se, então, uma estranhíssima versão da guerra religiosa Islão vs. Catolicismo, um jogo de massacre entre marido e mulher, quase um The War of the Roses (A Guerra das Rosas, 1989) religioso, muito iconoclasta (é impressionante o número de imagens partidas) e deliciosamente surrealista (Buñuel haveria de ficar orgulhoso com a flagelação do crucifixo). Pode considerar-se que a religião é o alvo ideal para uma caricatura como esta, mas a mestria de Seidl (tem controlo absoluto sobre o que faz) resgata o filme dessa facilidade. (JL)
Paradies: Glaube (Observatório) volta a ser exibido dia 26 (sexta-feira), às 21h30, na Culturgest.
Doméstica (2012) de Gabriel Mascaro
Doméstica (2012) é um bom exemplo de como o conceito pode ser muito melhor do que a execução. Gabriel Mascaro entregou câmaras a vários adolescentes para que pudessem filmar as suas empregadas domésticas e obviamente os resultados são desiguais, já que nem todos sabem o que fazer e porque nem todas as visadas (deveria escrever visados, visto que há um empregado doméstico) são interessantes (e este “género” cai no erro de pensar que todas as pessoas merecem a atenção de uma câmara). Se nalguns “episódios”, se revela uma estranha relação entre patrões e empregados (os sentimentos de culpa ou a frieza dos primeiros), na maior das vezes Doméstica só é bem sucedido no seu programa quando faz rir o público com as personagens extravagantes, numa espécie de turismo audiovisual ao Outro, que se está a tornar moda nalguns documentários (em que se pode também inserir É o Amor de João Canijo). (JL)
Doméstica (Pulsar do Mundo) volta a ser exibido no dia 22 (segunda-feira), às 21h30, no Cinema City Classic Alvaldade.