O último texto da cobertura do IndieLisboa no À pala de Walsh passa pelo mais bonito filme da competição (segundo melhor), alguns filmes medianos da mesma, um clássico, e algumas das melhoras obras das secções não competitivas. A cobertura paralela do Luís Mendonça, que com João Lameira escreve estas linhas, no blog CINEdrio pode ser acompanhada aqui (para atestar as diferenças e confluências de opinião entre os dois).
Orléans (2012) de Virgil Vernier
Virgil Vernier inicia o seu filme com várias imagens de Orléans, a localidade onde a lenda de Joana d’Arc começou a ganhar corpo (a donzela que previu e encetou a reconquista da cidade, virando a Guerra dos Cem Anos a favor da França). Os primeiros dez minutos de Orléans (2012), que tem uma hora, mais parecem de documentário, em que se filmam ruas, os edifícios e locais mais importantes da cidade, as pessoas. Até que o espectador, quase sem dar por isso, dá de caras com uma conversa casual entre “mulheres da vida”, strippers numa casa de alterne, e com o princípio da ficção. Duas delas, uma veterana e uma novata, tornam-se amigas, partilham experiências, dicas, dúvidas e um passeio por Orléans em dia de festejos da santa virgem, encontram até, no meio da floresta, como uma aparição, a rapariga que a vai “interpretar” nos ditos. Depois, no último terço, a ficção volta a subalternizar-se face ao documentário das festas da cidade, de que uma das strippers é testemunha. Não se passa nada de especial em Orléans, a vida corre, o tempo escorre; a facilidade com que Vernier troca a ficção pelo documentário acentua a singeleza de tudo aquilo. No entanto, no fim, também por culpa da duração (e da “história” cortada a meio), sabe a pouco, a filme simpático tão-só. (JL)
Ma Belle Gosse (2011) de Shalimar Preuss
Na apresentação da sessão, Shalimar Preuss agradeceu aos miúdos que participam em Ma Belle Gosse (2011), que, ao que disse, quis incluir em todas as etapas da produção (pelo menos como observadores). Uma merecida homenagem aos extraordinários jovens actores do filme, óptimos nos seus respectivos papéis (desde o mais novo, de oito anos, que quer escrever para jornal a reclamar da falta de previsões meteorológicas para a zona onde estão até à macambúzia adolescente de dezassete anos que se corresponde com um presidiário, passando pelo rapaz que lhe serve de conselheiro e pelas gémeas sabichonas) e óptimos enquanto conjunto, o que era vital para o sucesso de Ma Belle Gosse, que, mais do que um filme de Verão (muito bom, na veia dos de Rohmer: Maden, a protagonista, poderia chamar-se Pauline), é um filme sobre a família. No caso, uma família na preguiça de umas férias de Verão (filmada com uma justíssima câmara à mão, que passa de rosto em rosto mas nunca se perde, nunca fica à deriva), entre a praia e o campo, o sol e o mar, brincadeiras infantis e jogos mais sérios. Se os graus de parentesco entre os seus membros são difíceis de descortinar, tal deve-se à recusa de Preuss em explicar as relações, deixando no ar abandonos passados, pequenas traições, irritações actuais: o espectador conhece a família como se a encontrasse numa esplanada a comer uns gelados e ouvisse pedaços das conversas (a subtileza é uma das grandes qualidades desta primeira obra). O belíssimo Ma Belle Gosse não será o melhor do filme deste IndieLisboa (nem o melhor da competição), mas é o de que gosto mais. (JL)
Youth (2013) de Tom Shoval
O filme mais fraco da competição, Youth (2013) até nem começa muito mal: para ajudar a família, em dificuldades financeiras, dois irmãos decidem raptar uma menina rica com vista a obterem um resgate chorudo. Depois de uns primeiros quinze minutos bastante tensos (em que não se sabe muito bem o que se está a passar), Tom Shoval poderia ter seguido o registo de humor negro de Fargo (1996) dos irmãos Coen ou manter, pelo menos, a promessa de violência. Prefere a lassidão da sentimentalidade, que afecta o argumento, a realização (anódina), as interpretações e desbarata todas as boas ideias que, mesmo não sendo particularmente originais, poderiam ser a base de um thriller psicológico interessante. (JL)
The Unknown (1927) de Tod Browning
Filme mudo de Tod Browning protagonizado por Lon Chaney, na pele de Alonzo, o “homem sem braços”, e com uma ainda muito jovem Joan Crawford, dando corpo (corpo completo) a Nanon, a sua assistente no espectáculo de circo. Filme sobre impotência e castração masculinas que usa uma linguagem “de mãos” para simbolizar a incapacidade do “freak maneta” de conquistar o coração dessa jovem deslumbrante. Esta queixa-se da forma como os homens lhe “põem as mãos em cima”, exaspera com os assédios impertinentes de Malabar, o homem de braços indestrutíveis, capaz de dobrar ferro com uma “perna às costas”. Bem, chega de insistir nos segundos sentidos: The Unknown é uma brutal fábula sobre a relação do corpo com a comunicação, ou melhor, sobre a relação do corpo com o amor. (LM)
Eles Voltam (2012) de Marcelo Lordello
Sem os vinte minutos finais, Eles Voltam (2012) seria um interessante road movie (a pé) pelas estradas poeirentas de Pernambuco, com a secura dos westerns, uma viagem pelo que fica de fora dos condomínios fechados (verdadeiras fortalezas, impenetráveis) do Recife [as personagens parecem saídas de O Som ao Redor (2011) de Kleber Mendonça Filho], um bildungsroman em que, na sua odisseia para chegar a casa, aos pais que a largaram na estrada como castigo, uma menina rica aprende que a vida não é como na televisão, que o Outro não é um monstro (se bem que o realizador Marcelo Lordello não incorra na facilidade de retratar as personagens que Cris encontra com bondade exagerada, ao invés, explora a sua complexidade), em que acaba a inocência da infância (vem-lhe o período). Nos vinte minutos finais, Eles Voltam força a mensagem (que já era suficientemente óbvia), enfraquecendo (traindo) a simplicidade e honestidade de uma prometedora primeira obra (ou traindo a juventude de Lordello). É pena. (JL)
Campo de Flamingos sem Flamingos (2013) de André Príncipe
Em Traces of a Diary (2010), que realizou com Marco Martins no Japão (e onde foi buscar o director de fotografia Takashi Fujimoto), André Príncipe já havia deixado a impressão que era um mero coleccionador de “imagens bonitas”. Não se estranha, uma vez que é fotógrafo, no entanto, faltam ideias de cinema ou mesmo qualquer coisa que eleve Campo de Flamingos sem Flamingos (2013) para lá do slide show. E não será, com certeza, a fazer pouco de uma pessoa, como é o caso do entomologista, vítima de um dos planos mais abjectos deste IndieLisboa (isto já nem é “turismo audiovisual ao Outro” mas algo mais rasteiro), que tal será alcançado. Um só plano desses chega para destruir todas as ideias interessantes de montagem (entre os carros telecomandados e os carros de corrida por exemplo), que, de qualquer forma, não são muitas. Jogando no mesmo território (o campo) de Lacrau (2012) de João Vladimiro, Campo de Flamingos leva uma goleada das antigas. (JL)
Before Midnight (2013) de Richard Linklater
O reencontro com Jesse e Celine passados (quase) dez anos é um reencontro connosco quando tínhamos menos dez anos. Na realidade, podemos recuar mais um pouco e sermos levados aqui a uma viagem agridoce, com o seu quê de nostálgica, até aos anos da adolescência durante os quais se poderá ter, acidentalmente, cruzado com esta história de amor. Comigo foi assim e, como acredito que há filmes que fazem mais sentido quando são “achados” – o termo é esse – em determinados momentos da nossa vida, devo dizer que preservo carinhosamente a memória desse encontro: o deles e o meu com eles. Não regressei a Before Sunrise (Antes do Amanhecer, 1995), também não regressei à noite em que vi pela primeira e última vez Before Sunset (Antes do Anoitecer, 2004), precisamente em dia de abertura de um festival de cinema chamado IndieLisboa. Lembram-se? Não? Não estavam lá? Mas estiveram lá agora? Se sim, se não, a mensagem de Before Midnight (Antes da Meia-Noite, 2013) ultrapassa barreiras cinéfilas e entra no domínio do absoluto ou do absolutamente nada que é a vida – mas que maravilhoso “absolutamente nada”! (LM)
Paradies: Hoffnung (2013) de Ulrich Seidl
Ao terceiro capítulo da sua trilogia do Paraíso, Ulrich Seidl adoça-se. Não conhecendo toda a obra do austríaco, presume-se que isto seja o mais doce que consegue ser, o que ainda assim é muito ácido. No entanto, em Paradies: Hoffnung (Paradise: Hope, 2013) há espaço para olhar a protagonista, uma adolescente num campo de férias para gordos, com uma ternura a que a mãe [em Paradies: Liebe (Paradise Love, 2012)] e a tia [em Paradies: Glaube (Paradise Faith, 2012)] não tiveram direito. É uma figura mais humana, menos caricatural. Aliás, todo o filme é menos caricatural (e talvez seja melhor por isso), embora não recuse o traço grosso no retrato da instituição (com os seus pequenos ditadores, com os cânticos risíveis) ou deixe de enfrentar o tema tabu – no primeiro filme era a escravidão sexual (ou o pós-colonialismo), no segundo o fanatismo religioso, neste a pedofilia – sem meias medidas, sem paninhos quentes, sem medos. Seidl sujas as mãos, filma a sexualidade de um quase caso de pedofilia, em que a vítima deseja tanto o predador como o contrário (embora, na rapariga, haja uma confusão entre desejo sexual e desejo de uma figura paternal), demonstrando que os adolescentes não são seres assexuados [como acontecia no asséptico Michael (2012) de Markus Schleinzer]. Ulirch Seidl é um cineasta do choque (gosta de provocar o espectador), mas tem a coragem, o humor, a inteligência suficientes para se superiorizar facilmente aos seus pares. E, neste festival, não houve realizador ou obra ao nível dele e da sua trilogia. (JL)
Frances Ha (2013)
Aqui está um gesto livre de cinema. Livre de quê? De tudo aquilo que, por norma, nos afasta das personagens e do seu mundo ou que, por sistema, procura afirmar uma marca autoral, de realizador, em detrimento da procura de uma justa medida, que é, como é sabido, a medida de todas as coisas, a medida, enfim, da nossa vida. Frances Ha (2013) é um trabalho de uma simplicidade desarmante, nesse aspecto: uma actriz, a belíssima Greta Gerwig, e o seu alter ego, a doce, desajeitada, clownesca Frances. A Nova Iorque a preto-e-branco de Baumbach, próxima de um Woody Allen, dá a atmosfera certa a este pedaço de slapstick contemporâneo, com todos os moods terrenos que nos temperam a vida. O mais belo no filme é a sua fluência e essa tal aragem de liberdade que encontramos no melhor cinema indie norte-americano. O exemplo mais sublime de como Baumbach nos sabe oferecer, com a colaboração de uma actriz irresistível, esta visita deliciosa a uma vida aparentemente “sem história” é a sequência musical ao som de Bowie, onde vemos a bailarina Frances a correr dançando e a dançar correndo pelas ruas de Nova Iorque. Tão irresistível e leve quanto todo o filme. (LM)