Uma das obras-primas do cinema soviético, Letyat zhuravli (Quando Passam as Cegonhas, 1957), de Mikhail Kalatozov, é um objecto cinematográfico belíssimo e um testemunho de humanidade onde os slogans propagandísticos ficaram à porta. Esta evocação da experiência soviética na Segunda Guerra Mundial passa na Cinemateca Portuguesa dia 1, uma boa maneira de começar Abril.
Morreram mais militares da União Soviética na Segunda Guerra Mundial do que de qualquer outro país no mundo. Um filme como Letyat zhuravli, de Mikhail Kalatozov, dá rostos individuais à experiência colectiva da URSS na guerra. Um soldado é sempre filho de alguém, tem família, amigos, uma namorada. A sua morte não é apenas um número.
Embora o soldado patriota de Letyat zhuravli, Boris (Aleksey Batalov), tenha importância no filme, este centra-se sobretudo na figura da namorada, Veronika (Tatyana Samoylova). É a turbulenta mas incessante espera pelo regresso de Boris que é representada em toda a sua humanidade: no seu sacrifício há vacilações e dúvidas, há culpa e humilhação. Mas há também algo de profundamente heróico que é representado fugindo aos clichés propagandísticos de outros filmes soviéticos.
A abertura de Letyat zhuravli, que foi premiado em Cannes em 1958, poderia ser de um filme de uma “Nova Vaga”: dois enamorados correndo por uma rua de Moscovo, jovens, livres e belos, filmados com o preto-e-branco de que são feitos sonhos cinéfilos. É daquelas imagens de perfeição só possíveis no cinema. Mas esse êxtase não dura – para as personagens do filme. A guerra vem e separa Boris e Veronika. Por entre eles abrem-se labirintos de escadas e separam-nos multidões. Há outras corridas no filme, magnificamente filmadas, mas são corridas sem destino e o único regresso a essa plenitude, de sentimento e de movimento, só ocorrerá já como miragem, no rodopio de sobreposições que antecedem o tombar de Boris. Veronika esperará, esperará sempre, qual descrente que precisa de ver para acreditar. Não se perde o amor com base em relatos incompletos dos outros: Boris pode viver ainda porque ainda há cegonhas a voar no céu como navios.
Ao colocar Veronika no centro do filme, Mikhail Kalatozov dá uma face individual e humana aos que sofreram os efeitos da Segunda Guerra e às escolhas (ou falta delas) que afectaram as suas vidas. A esperança dela na vida de Boris faz do filme um retrato de esperança na humanidade – capaz de ultrapassar a humilhação, a morte e a destruição embora nunca imune a eles. Uma parte não negligenciável do que faz o retrato de Veronika tão pungente é a interpretação de Tatyana Samoylova, cuja expressão corporal e facial imprimem vida ao filme.
Produzido já no chamado período do “Degelo”, em que vários filmes soviéticos se afastaram dos lugares-comuns da produção cinematográfica do Estalinismo, Letyat zhuravli é um filme extraordinário pela forma como humaniza a(s) experiência(s) da guerra e recoloca preocupações individuais no discurso de patriotismo colectivo. As personagens de Letyat zhuravli podem sacrificar-se pela sua pátria, mas são também filhos e pais, homens e mulheres, com sentimentos e aspirações que por vezes chocam com o dever colectivo (e com algumas deixas de humor que brincam com o propagandisticamente correcto).
Letyat zhuravli é igualmente um prodígio de virtuosismo cinematográfico, mérito de Kalatozov e do director de fotografia, Sergei Urusevsky. Sequências como a de Veronika à procura de Boris na multidão quando este parte para a guerra, a do abuso de Veronika por Mark, a da morte de Boris, ou a da fuga precipitada do hospital após o discurso do médico contra as “mulheres desprezíveis” são portentos cinematográficos dignos de antologia. Poder vê-los em cinema é, pois, uma oportunidade a não perder.
Letyat zhuravli passa na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, dia 1 de Abril, às 22h.