Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel são dois investigadores do Sensory Etnography Lab da Universidade de Harvard. Também podem ser apresentados como realizadores ou, gracejou Lucien na nossa conversa, como antropólogos “em recuperação” (“recovering anthropologists”). Como dá para ver, quem são estas pessoas e o que fazem pode constituir um problema logo aqui, nas apresentações. De facto, o seu mais recente filme – na realidade, o primeiro que fazem em conjunto – também não lida bem com convenções ou etiquetagens fáceis: Leviathan (2012) é um documentário sobre pesca? É um filme experimental? É um filme de terror? Por acaso, foi parar à competição internacional do IndieLisboa 2013, mas se o tivesse apanhado no DocLisboa ou mesmo no MOTELx, teria estranhado? Eventualmente, não.
Lucien quer que o seu filme seja visto, até discutido, confessa ler algumas críticas ao seu filme – recomenda, aliás, a de Jean-Michel Frodon – mas diz que prefere sempre manter-se à distância. A procura por um certo anonimato, a sua confessa relutância em “dar a cara” pelos seus filmes e falar em nome deles foram alguns dos aspectos que mais me intrigaram antes, durante e após a passagem de Leviathan pelo IndieLisboa 2013. Avisaram-me que Lucien não gostava de dar entrevistas, pelo menos dentro do modelo habitual de pergunta-resposta. Na apresentação do filme terá sido dos poucos ou provavelmente o único realizador da competição a não subir ao palco e, após a projecção, na sessão de perguntas e respostas (Q&A), começou logo por dizer, sem pingo de arrogância, que não gostava de falar sobre os seus filmes e que não se deve entender a sua “visão do filme” como “a visão” do filme, que ele – como nós, espectadores – está susceptível à incerteza ou mesmo à dúvida.
Não minto: estou a parafrasear e, desde já, a traduzir/trair (comme il faut) o que de facto foi dito, mas pergunto-me quem é Lucien e em que medida a dificuldade que qualquer espectador enfrentará ao descrever rigorosamente o que viu e ouviu durante os cerca de 90 minutos de Leviathan não começará precisamente neste “não-lugar” ocupado pelo realizador, na relação com o seu próprio filme – será seu? De quem é, então, este filme? Mas tem de ser de alguém, para além dos seus espectadores? “Num filme como este, que invoca uma experiência do mundo, uma experiência humana mas também uma experiência ‘fora do corpo’, penso que o nosso ser está corporizado no filme, e se tentamos falar não é que mintamos per se, mas mentimos também…” Na sessão Q&A, Lucien tinha dito que o filme era tão seu quanto dos peixes, das gaivotas, dos pescadores… Ponderou não pôr o seu nome – e o de Véréna – nos créditos finais.
Nada de radicalmente novo, já que em Sweetgrass (2009), filme sobre a travessia de dois pastores e o seu “mar de ovelhas” pelas montanhas de Montana, não existe nenhuma “assinatura de realizador”, apenas uma atribuição de copyright a Lucien e a Illisa Barbash. Se formos ao site oficial de Leviathan a mesma “recusa em aparecer” está patente, com especial sentido humor, na sua ficha pessoal, onde em vez da habitual “foto de passe” do realizador está a imagem de um peixe (a que vemos acima). Ao mesmo tempo que “se exclui”, Lucien reconhece que Leviathan é um filme seu, um objecto com uma forte dimensão pessoal: “Não querer um crédito de realizador é uma escolha epistemológica. Especialmente, num filme de não-ficção, parece errado. Apesar de ser um filme impessoal e ao mesmo tempo muito pessoal, dizer ‘directed by’ deixa implícito que somos um Deus, que somos um Deus ex machina, (…) que somos uma espécie de marionetista a dizer às pessoas o que fazer. Não temos interesse em fazer esse género de filmes. Em relação às fotografias [no site], o que interessa como parecemos?”.
Parece-me interessante esta recusa em aparecer, concomitante a uma necessidade de fazer filmes muito pessoais, num filme onde nada obstrui a circulação da câmara, que, presa ao corpo dos pescadores, dos peixes ou das gaivotas, parece pertencer a todos eles e a ninguém ao mesmo tempo. Esta ubiquidade virtual suscita a questão inevitável: já vimos que Lucien não quer de modo algum ser como um Deus no seu filme, mas não desempenhará a sua câmara esse papel ao nos dar, em quase estado bruto, esta hiper-objectivada – quase abstracta – visão do mundo? Lucien contesta a ideia de uma câmara divina, quando objecta: “Nós usámos muitas câmaras, muitas foram destruídas, mas quase nunca filmámos com mais de uma câmara de cada vez. Não era como se tivéssemos cem câmaras agarradas ao barco”.
Convém contextualizar: Leviathan é uma experiência sensorial única muito graças à tecnologia utilizada, nomeadamente as microscópicas câmaras GoPro que a equipa de realização colou ao corpo dos homens, peixes, gaivotas… Segundo Lucien, estas câmaras têm um preço reduzido e, até agora, eram usadas sobretudo para a criação de vídeos caseiros por parte de, deu o exemplo, praticantes de esqui. Desde o início, Lucien e Véréna não queriam entregar as câmaras para as mãos dos pescadores, não queriam que estes começassem a pensar como realizadores: “Só queríamos obter imagens o mais próximas possíveis da sua experiência corporal da vida. (…) Qualquer coisa mais próxima da pele do mundo que fosse possível”. Apesar disso, à boa maneira flahertiana, os pescadores foram envolvidos no processo de rodagem, podendo acompanhar as rushes num quarto preparado para o efeito.
Como terá sido a reacção do capitão do navio à sua própria imagem a adormecer, enquanto assiste a um episódio da série televisiva The Deadliest Catch? Afinal, não foi o cinema ou a fotografia o primeiro dispositivo reprodutor do real a devolver-nos essa imagem, outrora escondida da nossa percepção, que nos faz ver nós mesmos de olhos fechados? Falo de um plano fixo que, apesar de inicialmente ter uma duração de cerca de 20 minutos, continua a ser hoje, na versão final, um dos planos mais compridos – senão o plano mais comprido – de todo o filme. Registei duas coisas deste instante que não queria deixar de fora da nossa conversa.
Primeiro, a mise en abîme desencadeada pela aparição (in)voluntariamente irónica do dito programa de televisão. Não vemos a televisão, apenas ouvimos em off a narração melodramática, que acentua a “exaustão” e o sacrifício daqueles aventureiros no alto mar. Com efeito, só vemos o capitão do nosso barco a assistir a este pedaço de trash TV, mas Lucien e Véréna terão querido ir mais longe e, apesar de não os terem usado na montagem final, filmaram alguns planos frontais do televisor para “pôr em abismo” o barco real ou realizado de Leviathan no barco tele-visionado ou tele-realizado de The Deadliest Catch. Era inevitável comparar o tratamento televisivo dado a este assunto à experiência complexa que é Leviathan. Na série televisiva, o objectivo é mostrar quão perigosa é a actividade dos pescadores, ao passo que em Leviathan o trabalho destes é mecânico, repetitivo e monótono, sendo que o foco parece estar nos horrores perpetrados sobre os peixes. Lucien confessa só ter descoberto a série enquanto estava a bordo, em processo de rodagem: “[Não me preocupei] com as semelhanças e diferenças. Achei que eram interessantes, mas pensámos que talvez [The Deadliest Catch] fosse demasiado superficial, talvez Leviathan fosse mais cósmico (…) e intemporal”.
A segunda coisa que anotei, após uma das intervenções na sessão Q&A, prendeu-se com a aparente divisória provocada por esse plano do capitão a adormecer. Até aí, os humanos eram filmados tão de perto que se tornavam quase irreconhecíveis ou, no limite, desumanizados, quase se confundindo com as (outras) formas animais, como os olhos esgazeados e a pele escamada de peixes moribundos. “Nós percebemos que esse plano era importante. Depois desse plano, voltamos a submergir, ouvimos ruídos horrendos, quase apocalípticos, como se fosse o fim do mundo. Mas depois desse plano, deixamos de ver peixes e seres humanos. Mas não creio que desumanizemos os humanos. Apenas não desenvolvemos personagens, nos moldes do teatro, romances, filmes. Nós estamos muito próximos deles, mas também dos peixes. (…) Apesar de estarmos próximos, isso desfamiliariza, em certo sentido. (…) Não é desunamizar, porque nós somos animais. (…) Nós dizemos “o reino animal” como se não fizéssemos parte dele (…) mas nós somos animais. Para mim, o grande artista é aquele que (…) nos lembra que não somos uma parte da Natureza mas parte da Natureza. (…) Para nós, isto não é desunamizar mas re-humanizar, mas não numa perspectiva tipicamente humanista e antropocêntrica”.
As imagens de Leviathan não são mais poderosas que a sua trilha sonora. Lucien conta que no começo propôs a Véréna que Leviathan não tivesse som, mas acabou por perder essa discussão e daí resultou, na minha opinião – mas não só -, uma sinfonia extraordinária. Apesar disso, Lucien não esconde o efeito esmagador que, mesmo sem som, as primeiras imagens que captou no barco exerceram sobre si: “Inicialmente, quando vi as imagens filmadas de noite pelos pescadores… Não devia estar a dizer isto, mas honestamente foram as imagens mais poderosas que vi em toda a história do cinema. Nunca tinha visto nada assim, porque era uma combinação totalmente idiossincrática entre objectividade e subjectividade, nunca se sente a subjectividade do realizador, logo, é objectividade cinematográfica, logo, sente-se totalmente esta violenta, compassiva, perigosa, bela, agonística subjectividade do pescador”.
Na cabeça do realizador, Leviathan chegou a ser como o primeiro plano que vemos hoje na versão final, mas silencioso. Era para ser assim? Não, acabou por o ser, pelo menos no que diz respeito à ausência de som: He Maketh a Path to Shine After Him; One Would Think the Deep to Be Hoary (2013) (tal como o texto de abertura de Leviathan, esta é uma citação do Livro de Job), filme com cinco horas e meia, em slow motion, mostrado este ano na Berlinale. “Todo ele é filmado debaixo de água, ou no interstício entre o que está debaixo e o que está acima do nível do mar. A imagem é atrasada em 1/50 do seu tempo original. (…) Neste filme, temos um frame por cada dois segundos. (…) É como um still, mas em cada dois segundos ele mexe-se. (…) Não é para toda a gente”.
Leia a parte II desta conversa aqui.