São famosas as palavras de Orson Welles: “In my opinion, there are two things that can absolutely not be carried to the screen: the realistic presentation of the sexual act and praying to God”. Não nos temos, de maneira nenhuma, como hereges da grande religião wellesiana e talvez por isso quisemos homenageá-lo em reverso, isto é, com a (ir)reverência devida a um dos mais insurrectos génios do século XX. Abençoamo-lo nesta sopa de planos – onde “rezar a Deus” é o grande tema -, na sequência da muito picante sopa anterior – onde “o acto sexual” é apresentado de forma “realista” e explícita. Welles também se dizia cristão ao mesmo tempo que afirmava nunca rezar, pela simples razão de que não queria chatear Deus (bore God). Nós, pela nossa parte, tentamos não chatear muito Welles-Deus com este díptico potencialmente aviltante.
Para filmar o misticismo há que saber como não cair quer em lugares comuns quer em considerações moralistas. Hoje em dia Bruno Dumont é dos poucos que o faz (acompanhado talvez por Jessica Hausner) e os seus filmes retratam a religiosidade como algo entre o amor romântico e o prazer do campo. Hadewijch (2009) é um caso de suprema perfeição na arte de Dumont e por isso é natural que seja dele que escolho um plano para esta sopa mística. A menina que protagoniza o filme sofre de uma espécie de ninfomania religiosa tão aguda que a madre superior do convento onde a moça está como noviça a expulsa por achar que a sua relação com o divino é malsã. No seu fervor ela envolve-se com um grupo de radicais islâmicos por lhe parecer que a sua relação com o todo-poderoso é uma de carnalidade mais viva (mas como está enamorada por Cristo o seu envolvimento é sempre casto). Chegamos assim ao plano acima. Dumont representa aquilo cujo simbolismo é mais forte no nosso mundo radicalizado: a convivência religiosa – ainda que essa convivência culmine num atentado. Para Dumont tudo o que é religioso é uma manifestação de amor [mesmo a possessão demoníaca em Hors Satan (Fora, Satanás, 2011)] e como tal o horror do terrorismo destrói esse amor e encerra o divino no além, deixando a nossa menina com um desgosto romântico – sem que no entanto possa deixar de pensar no seu amado. A morte é a salvação, a morte ou um milagre.
Ricardo Vieira Lisboa
O único realizador da actualidade a pensar os problemas ontológicos da fé e da comunicação como partes do mesmo “programa” fez de Mary (Maria Madalena, 2005) o cume mais alto do seu edifício conceptual. Abel Ferrara, o mais buberiano dos realizadores, está aqui “posto a nu” em toda a sua fúria transcendente: Fala, Responde, Comunica! Whitaker, o “mediador” agnóstico de um programa de TV sobre as várias “narrativas” do catolicismo, não reza, antes ele interpela Deus nesta cena, filmada num desarmantemente simples campo/contra-campo entre um rosto devastado (quase dreyeriano) e o ícone do Cristo na cruz. Durante todo o filme, Ferrara filma câmaras de televisão, laptops, telefones, ecrãs de telemóveis – continua a marcar a ecúmena virtual das telecomunicações, a aterradora e catastrófica distanciação com o mundo físico da carne e dos sentimentos que desfazem o corpo por dentro e por fora. De repente, temos ali o nosso “herói” a (procurar) falar com Ele. Ferrara não se transcende e mantém-se no físico, já que a comunicação aqui é feita entre um homem, todo ele carne amassada pela dor, e um crucifixo, matéria terrena que diríamos ser “tecnologia sem fios” caso a gravidade da cena nos permitisse, o que não acontece. É um homem e um símbolo da sua impotência (Cristo na cruz), o primeiro exume do íntimo a réstia de fé que lhe possa salvar da dor suprema, o segundo mantém-se… bem, mantém-se um objecto simbólico, matéria concreta que “não responde”.
Luís Mendonça
Willie Parker, um criminoso inglês escondido na solarenga e mui flamenca (guitarra de Paco de Lucia) Espanha dos westerns spaghettis de antanho, aguarda a vingança do antigo patrão que denunciou às autoridades vai para dez anos. Preparadíssimo para morrer (não terá passado um minuto dessa década em que não antevisse a própria morte), recebe os assassinos anunciados com um sorriso nos lábios e uma paz de espírito que os enerva [refém de boa vontade como indica o título português deste The Hit (1984), uma das primeiras obras de Stephen Frears]. Aliás, Willie diverte-se a lançar a confusão entre o jovem e excitado Myron e o experiente e cansado Braddock, num delicioso jogo entre três dos melhores actores britânicos: Terence Stamp, John Hurt, Tim Roth. Tudo corre pelo melhor, tanto que Willie cochila no banco de trás enquanto o carro que o leva atravessa as poeirentas estradas espanholas, até ao momento em que Braddock, por força das circunstâncias, se vê forçado a adiantar a execução (programada para Paris). Primeiro, Willie ri-se, mas, depois, compreendendo que chegou a sua hora, implora para que Braddock não o mate. Para maior humilhação, prostra os olhos nos céus, como se vê na imagem, e suplica ao Criador que o poupe. Ao mostrar desta forma os seus medo da morte e apego à vida, Willie torna-se a mais patética das criaturas (suscitando gargalhadas de Myron), na mais angustiante das comunicações com Deus. Segundos depois deste plano, ao tentar fugir, é atingido com um tiro nas costas, como um cobarde. Haverá poucas mortes tão difíceis de assistir no cinema.
João Lameira
Basta pensar na relação com Deus (e com a transcendência) para não ser possível afastar da mente a obra central que dela se ergue (como dádiva, como milagre) nestes cento e poucos anos de cinema. Falo claro de Ordet (A Palavra, 1955) de Carl Th. Dreyer e falo limpidamente do louco-santo Johannes que enlouqueceu a ler Kierkegaard. Se é no promontório improvisado contra um céu enevoado e de plantas ao vento, em plano contrapicado, que Johannes surge de braço esticado a chamar-nos hipócritas e a questionar a nossa fé, ele é também o corpo da “espiritualidade encarnada” de Dreyer. E todo o filme nada mais é do que a procura do interior no exterior. Veja-se como os exteriores são sempre vistos de longe, como que à procura, e nos interiores, sobretudo na casa de família, símbolo da materialidade, a câmara de Dreyer insiste nas panorâmicas demoradas e fluidas, buscando o invisível, o que ainda lá não está. Mas o genial paradoxo deste obra é que a anteceder o verdadeiro milagre, a prepará-lo, está esse plano impossível e quietinho: frente ao caixão de Inger, Johannes de mão dada com a sobrinha, relógio iluminado à direita, pede a Deus, se for possível, que a deixe regressar à vida e dar-lhe a palavra. Dreyer, sempre que a incredulidade do viúvo Mikkel irrompe no plano, corta, para depois voltar ao trio fundamental: quem pede o milagre, a fonte da crença (a criança) e o tempo (o relógio). De ombros descaídos e entoação lenta e perseverante Johannes ordena: “Inger, em nome de Jesus Cristo, peço-te que te levantes”. O resto já sabemos. E mesmo que o não víssemos, o ligeiro sorriso da criança tudo já havia denunciado.
Carlos Natálio