Acordar a meio de um sonho terá um efeito semelhante ao de interromper um filme no qual estamos totalmente imersos: um choque que nos leva a uma indignação, algo que nos impossibilita de regressar imediatamente, e sem transição, ao mundo real, sem as suas projecções, sem as imagens que vemos à nossa frente e que personificam os nossos desejos e fantasias.
Acordar a meio de um sonho pode ser, nesse aspecto, o início de um dia perdido. Longas horas são necessárias até a visão recuperar a sua profundidade e concentração. Um peso marca as nossas pálpebras e impõe o ritmo dos nossos passos quando estes se lançam na rua ao encontro das obrigações quotidianas.
Outras vezes, mas raras, os sonhos encontram um fim – não somos interrompidos pelo nosso acordar ou por qualquer barulho exterior que quebra a sequência de imagens, mas a narrativa que nós criámos pelo nosso subconsciente encontra, de facto, um fim, e as imagens fecham-se quando ainda estamos de olhos cerrados, imersos nessa dimensão exclusiva da nossa imaginação.
Quando assim acontece, a transição para para o dia claro e verdadeiro também é longa, mas sem o peso da história que não acabou. Vimos um princípio, um meio, e um fim – não necessariamente por essa ordem, como diria Godard -, que nos mostrou (mas não explicou – pois tal como no cinema, essa também não é a natureza dos sonhos) de que eram feitas as nossas angústias, os nossos desejos, o cinema que se fecha dentro de nós e que se revela durante a noite.
Ontem mesmo, a minha estranhíssima noite colocou-me numa sala branca, como uma casa, em que várias pessoas se sentavam para ver a projecção de um filme, entre as quais Wim Wenders, o realizador alemão, que se virou para o lugar onde eu estava sentado e fez sinal de reconhecer-me. Ou reconhecer a pessoa que eu aí colocara dentro do meu próprio sonho.
A luz da sala mantém-se, mas a visão do filme ocupa a totalidade do enquadramento do sonho. Mar e mais mar, o seu som tão quente como o sol que por cima fazia brilhar as suas ondulações. E uma narração omnipresente que fala de alguém que chega a esse local – a sua casa, ouve-se -, lugar que ama tanto como a sua vida mas que não sabe fazê-lo seu, não sabe amá-lo. Alguém, talvez, que não sabe amar-se a si próprio para poder viver nesse lugar como se lhe pertencesse (e pertence-lhe).
A água do mar é substituída, de seguida, pelas lágrimas do espectador sentado nesse lugar. Os outros rodeiam-no e perguntam-lhe – o que se passa para se sentir tão comovido por um filme, por estas imagens, pela sua narração que as transporta como se fosse poesia? O espectador explica-lhes, dentro do possível, pelas palavras que o próprio filme lhe deu mas que não ouvimos no nosso sonho antes que este termine definitivamente.
Pois é no regresso à vida real que esse sonho encontra o seu fim – em que podemos acrescentar as palavras nas quais pensamos na duração do dia e que nos levam à criação do movimento e da narrativa subconsciente. Pegamos então em palavras também de Godard, retiradas a um sonho reencarnado chamado Pierrot le fou (Pedro, o Louco, 1965): “Ah, la vie est peut-être triste mais elle est toujours belle.” Assim acreditamos, regressando então às horas do dia que por agora nos esperam.