Ao longo das próximas linhas, proponho lançar alguma luz sobre o porquê de Walsh ter sido “levado a sério” mais pelos “fundamentalistas da mise en scène“, formados nessa escola cinéfila e teórica chamada mac-mahonismo, do que pelos seguidores da política dos autores. Numa palavra, procurarei perceber em que medida os elementos susceptíveis de tipificarem o universo de Raoul Walsh se geram a partir da mise en scène, isto é, a partir de uma maneira mais do que de uma matéria cinematográficas. A crença é, aliás, a de que a matéria essencial do cinema é a sua maneira. Como diz Andrew Sarris, no seu The American Cinema: Directors and Directions 1929-1968, a propósito de outro grande cineasta clássico, “É a maneira (manner) de Preminger, em vez do assunto (matter), que nos deve ocupar mais”. No caso de Walsh – e a tese é essa -, a matéria a apreender será (também) uma questão de maneira (a matter of manner).
Se o senso comum equipara Hollywood à grande arte de narrar uma história através das imagens em movimento, os puristas da mise en scène vão defender, não uma narrativa pelas imagens, mas uma narrativa das imagens associada aos grandes cineastas clássicos. O conceito de mise en scène vai ocupando o centro da exegese cinematográfica à medida que o cinema norte-americano caminha para o seu derradeiro processo de decadência enquanto negócio e – para a maioria – enquanto arte narrativa. Esta nova episteme, chamemos-lhe assim, ganha forma, sensivelmente, desde o texto de Jacques Rivette L’Essentiel, escrito em 1954 nos Cahiers du Cinéma dirigidos por André Bazin, e atinge a sua apoteose no manifesto de Michel Mourlet, o polémico artigo Sur un art ignoré, publicado em Agosto de 1959 nos Cahiers sob o comando editorial de Rohmer (coligido no livro, que neste artigo muito citarei, Sur un art ignoré: La mise en scène comme langage), e no “clube cinéfilo” nascido no cinema parisiense Mac-Mahon. Rivette perguntava “o que é a mise en scène?” a propósito de um filme “menor”, à partida incaracterístico, quase atópico, de Otto Preminger, chamado Angel Face (Vidas Inquietas, 1952), para chegar à conclusão de que o cinema não é mais que o “jogo do actor e da actriz, do herói e e do décor, do verbo e do rosto, da mão e do objecto”. Mourlet, cinco anos depois, no artigo supracitado, escreve: “A energia misteriosa que suporta com benevolência os redemoinhos de sombra e claridade e a espuma do ruído chama-se mise en scène. É sobre ela que repousa a nossa atenção, é ela que organiza um universo, é ela que cobre o ecrã, ela e nada mais”.
Num artigo já sob o efeito das propostas de Mourlet, Les Taches du soleil (Cahiers du cinéma, Agosto de 1960), Fereydoun Hoveyda aponta uma espécie de política da mise en scène como uma decorrência (evolutiva?) da política dos autores, afirmando: “Quando eu digo que tudo é expresso no ecrã através da mise en scène, eu não estou a contestar a existência e a importância do assunto. Eu quero simplesmente apontar que a característica definidora de um grande ‘autor’ é precisamente a sua habilidade de metamorfosear o mais estúpido dos plots através da sua técnica”. Hoveyda, que já tinha desenvolvido esta ideia na sua análise a Party Girl (A Rapariga Daquela Noite, 1958) de Nicholas Ray, refere ainda que não se trata já de uma questão de escrita, no sentido gramatical do termo, mas da maneira como se escreve. Com efeito, o mac-mahonismo centrar-se-á mais no “estilo” da escrita do que no seu conteúdo, não tanto na exactidão da gramática, mas mais na qualidade identificadora e personalizadora da caligrafia, uma escrita que se vê, não uma escrita que se lê. Da mesma forma, Mourlet sustenta a ideia segundo a qual importa menos “o que se diz” do que o “como se diz” (“só interessa o tom da voz, pois ela contém tudo”).
É nela, nessa escrita sobre a “pele das imagens”, que se joga o sucesso ou insucesso de uma obra cinematográfica, independentemente da qualidade literária do argumento que é adaptado ao ecrã. Aliás, “ecrã” é um termo importante no pensamento crítico mac-mahoniano, no sentido em que para críticos como Mourlet este deve servir como fim e não como meio, porquanto só se sente, originariamente, o cinema quando este nos dá a ver imediatamente, na quase (este quase é toda uma tendência…) invisibilidade, a matéria essencial do seu fabrico. Se a política dos autores busca o tal “sentido interior” (“interior meaning”) de que fala Andrew Sarris na sua “auteur theory”, logo no artigo que escreveu em 1962 para a Film Culture, Notes on the Auteur Theory, os mac-mahonianos procuram um “sentido anterior ou periférico”, fixado nessa membrana fina que separa o “palco do cinema” do “palco da vida”: o ecrã, precisamente. Em certa medida, para estes o “mais está no mínimo”, o que em certa medida vai aproximar os mac-mahonianos, por portas travessas, a André Bazin e à sua defesa, a propósito de William Wyler, de uma “mise en scène da ausência” .
O seu projecto realista não busca o sacrifício do cinema pelo real, mas a redenção do cinema pelo real ou, por outra, pelo “realismo”, desta feita (desembrulhando o conflito ontológico entre representação e real que mina parte do pensamento de Bazin) entendido como sinónimo de verosimilhança fenomenal. O realismo dos mac-mahonianos não terá nada a ver com o realismo de esquerda ou, como diz Carmelo Bene, “com bicicleta” de De Sica e Zavattini, mas com um realismo que celebra o fascínio ou a fascinação intrínseca ao cinema, a sua sedução imediata (= tendencialmente “não mediada”) e fenomenal. O ecrã de cinema não serve para, como diz Mourlet, exorcizar o mundo através da imagem (dizer “isto não é cinema, isto é a vida a acontecer 24 frames por segundo”) mas sim para nos devolver concretamente os desejos que não cabem no nosso mundo, que só cabem exactamente ali, dentro dos limites do rectângulo luminoso (“isto é cinema, celebremos o cinema!”). “O cinema é um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo de acordo com os nossos desejos” – Mourlet escreveu esta frase, erradamente atribuída a Bazin (lapso freudiano?) por Jean-Luc Godard no início do filme Le mépris (O Desprezo, 1963).
Em certos filmes de Hollywood, os arautos da mise en scène viram que o grande cineasta – o “autor” – se dá a ver nos seus gestos mínimos de “pôr em cena” uma dada situação, para ver como esta joga com o actor na pele de certa personagem. “O actor essencial”, escreve Mourlet em Sur un art ignoré, “é aquele cujo rosto, cuja voz, cujo corpo é profundamente eivado de uma capacidade passional de uma sedução”. Dito de outra maneira: não interessa a história que os actores “fazem contar” mas a maneira como dialogam com a câmara e se movimentam no espaço, o que importa, enfim, é a maneira como é dado a ver o uso do seu corpo… É esta espécie de erotismo (meta)físico que deve co-mover a câmara – há um jogo transcendental do actor com o ecrã, essa superfície erógena onde o olho encontra os corpos, mas sem que haja toque, somente puro teasing, pura fantasia… -, um erotismo intrínseco e indissociável à presença corporal do actor, tornando-se possível afirmar coisas como “Charlton Heston é um axioma” ou escrever um texto inteiro elogiando os lábios carnudos e as costas atléticas do protagonista de Ben-Hur (Ben Hur, 1959) – de novo censura-se a recusa neo-realista da beleza e da potência física a favor de um culto adónico aos corpos cinematográficos. A importância dada ao actor, ao cenário, à fotografia, aparece localizada numa dimensão pré-diegética, isto é, aquém da história (esta é apenas um trampolim, afirma Mourlet), não além – além de algo implica um exercício em profundidade, uma espécie de arqueologia de sentido, de significados, cara aos semiólogos e a alguns téoricos da política dos autores. O que se busca aqui é um sentido metafísico que reside à superfície, um desiderato que é puro cinema, não um sentido que se procura para lá do texto ou das formas. “Tudo está na mise en scène“, escreveu na pedra Michel Mourlet.
No fim desse artigo-manifesto do mac-mahonismo, que acabou por precipitar o fim da colaboração de Mourlet nos Cahiers e o início de uma nova revista, a Présence du cinéma, que por sinal irá destacar num dos seus números o cinema de Walsh, o novo “enfant terrible” da crítica francesa vai resumir numa só penada toda a doutrina estética e política que muitos conotarão com uma ideologia de extrema-direita (o próprio assume uma certa concepção fascista de mise en scène): “Analisar a obra de um cineasta é mostrar em que medida o seu acesso aos temas fundamentais da mise en scène, ordenados à volta da presença corporal dos actores num décor, é ou não é capaz de nos fascinar. Como é que ela revela o desejo, o ódio, a violência, o medo, a ternura, como olha ela a vida, as árvores ou o mar”. Numa conversa muito interessante de Michel Mourlet com o filósofo lacaniano – e cinéfilo mac-mahoniano – Hubert Ricard, peça editada pela primeira vez em 2011 no livro L’écran éblouissant: Voyages en Cinéphilie (1958-2010), este último avança com uma reflexão lapidar sobre o “efeito do cinema mac-mahoniano”, o mesmo é dizer sobre o efeito dos princípios da escola mac-mahoniana: esse efeito, diz o filósofo, é “muito comparável ao da música. Ele induz no espectador uma corrente afectiva que não tem nada de vaga ou de imprecisa, onde se misturam pathos, beleza, ver qualquer coisa cujo sentido não será nem conceptual nem significativo – eu transponho aqui a definição kantiana de ideia estética, que dá muito que pensar sem que um conceito determinado, nenhuma explicação lhe possa servir”.
Já podemos concluir que, para os mac-mahonianos, a história é um efeito secundário dentro do filme, porque o que conta é como certo actor num espaço iluminado e filmado de certa maneira transmite certo sentido, compõe ou decompõe a sua máscara. Para esta “vaga de fundo” nascida da política dos autores, a mise en scène é uma economia frágil, muito subtil, entre três vectores: actor, realizador e décor. Nesta economia, nenhum desses três vectores se deve impor aos demais (= perder o seu equilíbrio “natural”) ou subsumir-se a um gesto da realização, à virtuosidade do argumento ou, sobretudo, à manipulação “correctora” da montagem (a desconsideração por Orson Welles ou Eisenstein ou o desprezo pela escola francesa de argumentistas, vulgo Tradição da Qualidade, será notória), implicando a tal “abolição anti-baziniana do real” – eis a estética clássica do mínimo denominador comum. A invisibilidade q.b. de processos fílmicos no ecrã significa maior aproximação à essência (regressamos ao imprescindível, e já citado acima, texto de Rivette sobre Angel Face), logo, à potência máxima do cinema.
O eclectismo, prolificidade ou não especialização quanto ao género de Walsh – curioso que a não especialização de género conduza a um cinema genérico, cuja especificidade “flui” entre as brechas da linguagem formatada e instituída de Hollywood – vão conduzir a que este entre no lote restrito de “autores” do dito “movimento”, um grupo de “quatro ases” composto ainda por Fritz Lang, Joseph Losey e (era inevitável…) Otto Preminger. A preferência de Walsh por enredos lineares (de linhas simples e nítidas), descomplicados, “ecrânicos” ou, arriscamos o adjectivo, modernos (escrevia Daney, desafiando o mestre Bazin, “sem ‘profundidade'”), mais a sua (e cito um texto de Mourlet dedicado a Walsh) “lucidez viril”, a sua lógica “A é A” (como diz Mourlet sobre Losey) ou o seu close-up que significa apenas e só “um close-up” (como avança Skorecki em Walsh et moi)… tudo isto vai promover ou adensar as leituras sofisticamente superficiais cozinhadas pela escola do mac-mahonismo.
Neste artigo, procurarei dar conta de que Walsh é/foi sinónimo de um cinema que serve, em primeiro lugar, a definição de um tipo heróico de personagem, que corporiza uma ética, que põe em movimento uma práxis – antes de uma moral ou uma normatividade “de género” – que torna coesa a parte mais substancial da carreira desse cineasta total e “absoluto” (Jean-Pierre Coursodon, in artigo citado neste texto no ponto “O ‘desvio’ feminino”) chamado Raoul Walsh. Para chegar aos topoi da arte walshiana, recolho uma amostra significativa de filmes – dificilmente representativa, no entanto, face à extensão da sua obra – que me ajudará no encalço da pretendida “essência” do seu cinema.
Vida e obra. Raoul Walsh é um cineasta único, o que não quer dizer que seja fácil de definir “a essência” do seu universo, tão vasto e ecléctico que ele é. Por isso, talvez seja apenas da ordem da intuição avançar com a ideia de que Walsh foi, antes de mais, um dos poucos cineastas enciclopédicos da história do cinema. Digo “enciclopédico”, já que a sua carreira começa no mudo, no lado de lá das câmaras, atinge o pico nos tempos áureos do classicismo de Hollywood, já só na pele de realizador, e termina com a chegada das novas vagas ou a eclosão do cinema dito moderno.
Alguns dados avulsos sobre Raoul Walsh: interpretou John Wilkes Booth em The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação, 1915) , do seu mentor D.W. Griffith; realizou o primeiro filme de gangsters, Regeneration (Regeneração, 1915); contribuiu decisivamente para a eternidade da super-estrela do mudo Douglas Fairbanks, em The Thief of Bagdad (O Ladrão de Bagdad, 1924); perde um olho num acidente de carro, incidente dramático que paradoxalmente o leva a desistir da carreira de actor e a dedicar-se a tempo inteiro à realização; transita para o sonoro com uma perna às costas, desde logo testando o formato pioneiro de 70mm, o “grandeur”, em The Big Trail (A Pista dos Gigantes, 1930), que também foi o primeiro filme protagonizado por um actor então desconhecido, que Walsh baptizou de John Wayne; com High Sierra (O Último Refúgio, 1941) projecta muito alto, pela primeira vez, um actor de segunda linha de Hollywood chamado Humphrey Bogart; realiza alguns dos melhores filmes de guerra e aventura em cima do acontecimento da II Guerra Mundial, sendo que, nesse empreendimento, Errol Flynn, actor limitado, lhe deve quatro oportunidades inesquecíveis e inestimáveis que aproveitou para se transcender; oferece os melhores veículos às maiores estrelas do seu tempo, como James Cagney, Clark Gable e Gary Cooper.
Nesta súmula, fica-se a perceber, desde logo, a ligação indissociável que se vai estabelecendo entra a carreira de Walsh e o mundo da interpretação, que, no começo, também era “o seu mundo” e que, mais tarde, se vai tornando num “outro mundo” dentro do qual se tipifica uma determinada identidade autoral. A etiqueta de cineasta de e para actores não deveria soar mal ao próprio Walsh, de tal forma que organizou a sua carreira e depois os filmes em torno de uma star cintilante – assim se resumem os princípios de um movimento cósmico, traduzido, em toda a sua transparência, numa mise en scène tão justa quanto eficaz. Foi por ela, como já vimos, que alguns cinéfilos parisienses se apaixonaram perdidamente nos anos 50 e 60, no cinema Mac-Mahon.
Com efeito, não se espere nada de etéreo e inefável no cinema de Walsh ou não seria este o paradigma do no-nonsense, da transparência formal e da linearidade narrativa que enformam o ADN do estilo clássico. A referida etiqueta “cineasta de e para actores” cabe-lhe tão bem quanto a pala que tem no olho e o mesmo acontece com a sua popularizada colagem aos filmes de acção e aventura. Ford gostava de dizer que se limitava a fazer westerns. Com a mesma simplicidade desarmante – que, hoje, apelidamos de magistral – Walsh pôs em cena as suas histórias sobre viagens épicas (exemplo de The Big Trail ou Desperate Journey) onde o herói, fugindo do seu passado (exemplo de Pursued ou High Sierra) ou dos tentáculos de uma autoridade que desafiou (exemplo de Silver River ou Uncertain Glory), procura inverter a lógica do seu próprio destino. A sedução, a paixão trágica walshiana, está na viagem que está no e que é o filme.
Mapa físico e emocional. Não haja dúvidas: a viagem é a grande figura fundadora do cinema de Raoul Walsh. Dave Kehr, no seu artigo «Crisis, Compulsion, and Creation: Raoul Walsh’s Cinema of the Individual», associa ao realizador o amadurecimento de um subgénero que, com felicidade, apelidou de “map movie”. As personagens de Raoul Walsh, por norma, partem de um ponto A para chegarem a um ponto B. Entre A e B, o seu cinema explana-se, horizontaliza-se… seja numa travessia por florestas densas (Objective, Burma!, Saskatchewan ou The Naked and the Dead), seja numa viagem por desertos intranquilos (The Big Trail ou Along the Great Divide) ou seja ainda num vai-e-vem pelos mares, entre portos de abrigo ou, entenda-se, “entre sonhos” nem sempre concretizáveis (The Revolt of Mamie Stover ou Battle Cry). O que faz as personagens moverem-se por terra e por mar? Por norma, uma fuga, que – de novo, cito Kehr – é desencadeada por uma acção consciente da personagem. Raras vezes, as personagens de Walsh reagem, elas agem ou tentam agir no sentido de traçar o seu próprio caminho.
A acção pode consubstanciar um desafio à autoridade, às estruturas de poder, isto é, por disrupção com a sociedade ou uma retroacção, isto é, uma acção mais interior, onde o mapa é interiorizado na mente torturada do herói (como um esquema lacaniano). De um lado, posso citar filmes como Your Are in the Army Now, Klondike Annie, Desperate Journey, Silver River ou Saskatchewan (o tema da desobediência está também muito presente no díptico sobre a II Guerra Mundial, Battle Cry e The Naked and the Dead), do outro lado, posso citar filmes mais negros e psicológicos (todos eles obras-primas pronunciadamente edipianas) como Pursued, Along the Great Divide e White Heat. Do primeiro grupo para o segundo grupo de tíulos, o mapa ou o conjunto de coordenadas que guiam ou orientam a acção dos heróis perde a sua dimensão física e devém “produto da mente”.
Na sua obra-prima máxima, Pursued, a viagem é muito mais circular tanto fisica como mentalmente, porque o que governa a acção do protagonista são questões do passado que o traumatizam, logo, que reincidem na sua mente. Este centramento na acção individual das personagens, o seu embate com o mundo, em processo de “retirada” (física ou psicológica), encerra parte da “essência” da obra walshiana. Como escreve Kehr, “Para Ford, o foco último é a sociedade, para Hawks é o grupo; o foco de Walsh é, unicamente, o indivíduo – a sua experiência, o seu progresso, a sua evolução”.
O indivíduo e as suas várias peles. O indivíduo, normalmente, está só na imagem ou está só na imagem “contra” outros indivíduos mais ou menos como ele. Kehr diz que no cinema de Walsh, apesar do fino uso da profundidade de campo, quase não há “background”, o que num plano metafísico quer dizer que as personagens agem desamparadamente na imagem, são puxadas para a frente, com as suas neuras e idiossincrasias, sem garantias de que o mundo se solidariza com elas. Diz o crítico norte-americano: “As personagens de Walsh movem-se com liberdade através do mundo, mas o mundo não se rende a elas: ele permanece um desafio constante, sólido e ligeiramente à parte”. Podemos dizer que nem sempre o mundo é feito à imagem das personagens e, como corolário disso, quase sempre se produz um choque entre o indivíduo ou o individual e a paisagem ou o todo. Nada é certo no seu cinema e as personagens sabem-no, logo, tentam lutar com esse nada ditatorial, no sentido de definirem e afirmarem o seu “self”. Esse “self” – que, entenda-se, pertence a Raoul Walsh por inteiro – é imprevisível, instável, por vezes insurrecto e, mais vezes do que tenho visto reconhecido, mutável ou camaleónico.
A mutabilidade tem a ver com o “jogo de papéis” do trágico shakespereano e com a questão classicista, mais política, do drama walshiano. O jogo de papéis começa, por exemplo, onde o próprio decide terminar a sua autobiografia, que tem título roubado de Shakespeare (Each Man in His Time): “Each man in his time plays many parts…”. Se nos lembrarmos ainda de “I am not what I am” de Othello, então torna-se imediatamente compreensível, por exemplo, a certeza de Jacques Lourcelles (o mais brilhante exegeta walshiano) quando escreve, na sua crítica a Uncertain Glory (Três Dias de Vida, 1944), “Está-se sempre em Shakespeare”. Também aqui começa a ganhar sentido a proposta de trabalho que Henri Agel colocou aos seus alunos, entre os quais Skorecki e Daney: explicar “A relação do cinema de Walsh com o sentido de sagrado, visto sob o ângulo da tragédia shakespereana e a noção de potlatch”. Este encadeado de relações converge, por fim, no tema da “troca de peles”, presente de um ponto de vista quase lúdico em You Are in the Army Now e Klondike Annie (duas histórias “de equívocos” sobre personagens a ocuparem o lugar de outras personagens) e de um ponto de vista mais político em dois filmes protagonizados por Errol Flynn, Uncertain Glory (sobre um criminoso francês que aceita “ocupar o lugar” de um heróico resistente anti-nazi) e também Desperate Journey (quando os soldados ingleses se fazem passar por alemães, envergando fardas de militares nazis que eles atacaram, calcula-se, mortalmente).
Esta permanente “troca de peles” está também presente – e se calhar é aí que atingimos a literalidade desta ideia – em filmes como The Big Trail, Saskatchewan (A Grande Ofensiva, 1954) e Band of Angels (A Escrava, 1957). Nos dois primeiros títulos, temos um yankie (interpretado, respectivamente, por John Wayne e Alan Ladd) cuja cumplicidade com o povo índio lhe parece estar presa à pele e inscrita no coração, na realidade, no segundo caso, a mistura de sangues é declarada, logo, particularmente contestada entre os brancos no filme. No caso de Band of Angels, quase não precisamos de sair do oximórico título francês para percebermos o alcance desta ideia: “Escrava Livre”. Repegando na passagem de Othello, apetece escrever que a personagem feminina interpretada por Yvonne De Carlo (e como há poucas com esta dimensão dramática no cinema de Walsh!) “é aquilo que não é”: uma mulher com a educação de uma rapariga branca, administrada por um fazendeiro muito rico, mas com “sangue negro” a correr-lhe nas veias, que fará dela uma “escrava livre” nas mãos de outro homem (Gable), a segunda figura paterna, desta feita, um homem que lhe conquistará o coração, depois de arrebatar, num leilão, o seu corpo-mercadoria. Dinheiro, corpo, sangue, pele. Tudo se troca, se converte em valor (financeiro ou moral), em função da economia dramática walshiana ou, pegando agora em Agel, de acordo com este tipo de potlatch (= sistema primitivo de troca de dádivas, segundo Marcel Mauss).
Dinheiro e mobilidade social. O dinheiro, como bem salienta o mac-mahoniano Dominique Rabourdin (num extra de um pack editado em França), representa “o mundo” para os protagonistas de vários filmes de Walsh, como Silver River, The Revolt of Mamie Stover, The King and Four Queens e, claro, Gentleman Jim (O Ídolo Público, 1942). Proponho centrar-me neste último. Nele, encontramos Jim (o “papel da vida” de Errol Flynn?), homem que “renega sem renegar” as suas origens sociais; que pertence, e não tem vergonha disso, a um meio pobre – o pai é cocheiro – mas que gosta de ostentar, na pose como no discurso, “modos” de gente rica. Uma espécie de dandy pobretanas, amante de Shakespeare, que só na aparência renega as suas raízes, já que acalenta no coração – a cada batida – o amor ao seu pai, à sua mãe e aos dois irmãos – ambos brutos, selvagens, sem ponta de finesse! Por outro lado, Jim torna-se também naquilo que um “gentleman” nunca poderia ser, se não hoje, muito menos no século XIX: pugilista.
Estamos em 1887 e aquilo que é hoje um bailado do corpo e da mente – atlético e estratégico como poucas modalidades desportivas – era então o mero pretexto para pôr numa arena, “jogando a dinheiro”, dois trogloditas de luvas calçadas prontos a amassar vigorosamente os rostos um do outro. Jim corporiza a mudança que, nesta altura, vai converter, mediante a aplicação de todas as regras que conhecemos hoje, o pugilismo em desporto. Também aqui, ou em primeiro lugar aqui, o nosso protagonista é o que não é: um pobretanas disfarçado de gentleman da alta-sociedade (“I am not what I am”), mas também um boxeur moderno a impor, no ringue, toda uma nova “maneira” de se estar no e à volta daquele jogo (“I am not what I am”). Esta mudança ou este desenraizamento também é operado para lá do ringue, com a súbita ascensão social da família, que lentamente se vai equivalendo – pelo menos na aparência – ao orgulhosamente imutável Jim. No entanto, como percebemos pela sua conclusão irónica, tudo se joga na aparência, pois, no fundo, Jim, os pais e os irmãos continuam exactamente na mesma – as mesmas confusões, as mesmas paixões, as mesmas brigas infantis.
Gentleman Jim é um verdadeiro compêndio do cinema de Raoul Walsh, mimetizando na sua própria dinâmica formal/narrativa os passos rápidos do protagonista no ringue e fazendo deste último o palco “trágico” onde, elegante e soberbo, Jim acumula o papel (algo reaccionário, diria) de gentleman plebeu com o papel (quase revolucionário, contra-diria) de boxeur bailarino. Retroactivamente, Gentleman Jim surge-nos como um Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980) ou um Somebody Up There Likes Me (Marcado pelo Ódio, 1956) virado do avesso, atirado ao chão com estrondo e panache, logo no primeiro round, nas suas aspirações político-sociais.
O “desvio” feminino. Para Andrew Sarris, o herói walshiano é um homem tendencialmente feminino. Só partilho esta opinião, se tivermos “feminino” como sinónimo de impotência, fragilidade ou megalomania. Jean-Pierre Coursodon escreveu um ensaio («Escravas e Livres – Notas Sobre as Mulheres em Alguns Filmes de Walsh», in catálogo da Cinemateca Portuguesa dedicado a Raoul Walsh) salientando a independência da mulher walshiana, a sua acção determinada, algo que ganha valor por contraste com a acção frustrada ou frustrante do homem. Mas ele também é independente, ele também age mais do que reage. Apesar disso, ele não consegue compreender a acção da mulher – e daí o choque sexual, tantas vezes insanável, que se reproduz filme após filme. Esse choque parte muitas vezes de um “erro” inserido no sistema moral do cinema de Walsh. Em filmes como Manpower, Pursued, They Drive By Night, High Sierra, Colorado Territory, Saskatchewan, The Tall Men, Esther and the King e… Gentleman Jim a mulher, com a sua agenda própria – imperscrutável, quase irracional, por vezes, aos olhos masculinos – retira o tapete por baixo dos pés do homem.
Passo de seguida a dar alguns exemplos: Pursued (Núpcias Trágicas, 1947), Gentleman Jim, They Drive By Night (Vidas Nocturnas, 1940) e, como casos à parte, High Sierra. Thor, interpretada por Teresa Wright (Pursued), investia num casamento fictício para “encurralar” o amor da sua vida, “até que a morte os separasse”, ao passo que a personagem de Alexis Smith (Gentleman Jim) financia o grande sonho “do momento” de Jim para poder assistir, de poltrona, à sua ingloriosa queda (= ao colapso do seu “man power”). As duas acabarão por ceder à sedução e ao sucesso, mas pouca ou nenhuma culpa é assumida em todo o percurso – o lado diabólico, imprevisível, imoral, da acção feminina não é sanado com o beijo final, nisso Walsh é, em certa medida, implacável. Em They Drive By Night, Ida Lupino lembra os “anjos fatais” de Otto Preminger (nomeadamente, a Jean Simmons de Otto Preminger, no já citado Angel Face) quando maquiavelicamente engendra um plano para afastar tudo e todos (e todas…) do homem que ama. A loucura histérica espelhada no seu rosto, na vibrante cena do tribunal, mostra o lado demencial, por vezes incompreensível, da mulher walshiana.
Em High Sierra, Bogart procura “arranjar” (fix) o pé defeituoso de uma rapariga com a qual se enamora. E, de facto, avança com o dinheiro para uma operação que acaba por ser bem sucedida. Bogart, que no filme anterior ficava sem braço, dá um pé à mulher que ama. É um gesto altruísta, talvez demasiado “caridoso” para um infame e cruel ladrão de bancos recentemente indultado de uma pena de prisão para a vida… À partida, não é um gesto muito walshiano, também porque significa uma acção, uma boa acção cristã, de ajuda a certo pobre casal de agricultores incapaz de pagar uma simples operação que restitua em pleno a feminilidade da sua filha. Bem, será, mas só aparentemente, porque, como se perceberá – mas nunca é assumido o “cinismo” dele, por inteiro – , Bogart procura uma recompensa: dá um pé e, em troca, almeja “a mão” da rapariga. Acaba por ser muito walshiana a forma como esta ingénua e doce menina dá a volta ao texto e anuncia que não ama Bogart, até porque o seu coração pertence há muito a outro homem. Dá vontade de dizer que a doce e inocente menina “dá-lhe com os pés”. Face a isto, apetece parafrasear a personagem, outrossim “perturbadora”, de Shelley Winters em Saskatchewan e dizer que, em Walsh, “men are saints, women are sinners”.
O corpo. O corpo não, os pés. Luc Moullet, no artigo Sam Fuller – sur les brisées de Marlowe, publicado em Março de 1959 nos Cahiers, falava da obsessão que o realizador de The Big Red One (O Sargento da Força Um, 1980) tinha por pés: “os melhores homens são aqueles com os pés mais fortes, os pés sangrentos, os pés cansados, os pés altamente eficientes, os pés ligeiros, os pés em botas (…)”. O mesmo podia ser dito a propósito do universo Walsh. Podia? Já foi dito! À volta de Objective, Burma! (Objectivo, Burma!, 1945), num texto contagiante de Jorge Silva Melo, «O Caminho de Vida Nunca Certo» (in catálogo Raoul Walsh editado pela Cinemateca Portuguesa): “O seu filme é sobre os que não compreendem, aqueles para quem os dias não têm fim e os pés têm bolhas”.
Quando os pés entram em cena, fazem-no para convocar os efeitos da caminhada, a fricção com o chão infinito que eles (os pés, sim, não há metonímia aqui…), de facto, não compreendem (no sentido inglês: to comprehend). Falamos de pés masculinos nos filmes de guerra, como Objective, Burma! e, de forma obsessiva (e gráfica!), em Battle Cry (Antes do Furacão, 1955), mas também falamos em pés femininos – já com uma dimensão sexual, porque Walsh é, citando de novo Mourlet, um “lúcido viril” – em filmes como o já citado High Sierra e, notavelmente, em The Tall Men (Duelo de Ambições, 1955). Neste último, a frase “these feet are killing me”, saída da boca de Jane Russell, é o grande leitmotif que une a sua personagem à personagem interpretada por Clark Gable, desde a massagem aos pés do início até às inúmeras insinuações podólatras que se seguem. Nada de singular, se conhecermos o universo de Lang [Scarlet Street (Almas Perversas, 1945)], Preminger [Fallen Angel (Anjo ou Demónio, 1945)], Losey [The Servant (O Criado, 1963)] e de Cecil B. DeMille, o mais famoso podólatra da história do cinema – excluindo, naturalmente, Quentin Tarantino.
Mas aqui temos a imagem da dor, uma dor que significa tortura, uma tortura que significa um princípio de morte ou um princípio de sexo. Estamos, enfim, no campo do erotismo e da violência, que faz chorar de felicidade Mourlet. Mas ainda não se esgotou o assunto do corpo – não passámos ainda dos membros que estão mais longe do céu, mais pertos da terra. E os braços? E as pernas? Pelo menos em dois filmes Walsh mostra-nos corpos amputados num dos braços, problematizando “a falta” de um ponto de vista dramático (They Drive By Night e Pursued). Por outro lado, à deformação do pé da rapariga de High Sierra juntam-se os minutos finais de Battle Cry, que reúnem no mesmo plano, entre abraços e beijos, um homem perneta regressado da guerra, qual The Big Parade (A Grande Parada, 1925), e a mulher que esperava e desesperava pelo seu regresso a casa – antes, no hospital, ele sentia-se half a man, um soldado destituído da sua masculinidade. A mutilação ou deformação ou castração física ou moral do corpo (provocada pela guerra ou pelo tal “desvio” feminino) acompanha o pensamento posto em marcha pelo découpage walshiano. Não sou eu que o digo, mas (de novo) Dave Kehr: “O plano favorito de Walsh é o plano americano, com os seus actores cortados entre a cintura e os joelhos”.
À guisa de uma conclusão: o remake ou por que The Naked and the Dead é um filme falhado. Já vimos como as personagens trocam de pele ou como Walsh nos mostra o percurso da sua ascensão na sociedade ou como lutam com ou se sacrificam por um passado que as persegue, na mente e no espaço… Numa palavra, vimos como estas agem assim, analogamente. Já vimos também como estas ideias se repetem enquadradas por diferentes géneros fílmicos ou até atravessadas por fórmulas narrativas pouco estáveis. A constância em Walsh está na forma pragmática (uma mise en scène mínima, no-nonsense) como revela indivíduos diferentes a interpretarem eticamente da mesma maneira situações sociais, políticas, históricas, dramáticas contrastantes.
Mas atenção: isto não quer dizer que a partir da dinâmica enunciada, Walsh não acabe por dar de caras com moldes narrativos ou esquemas conceptuais já presentes em outras obras suas… O problema de um filme como The Naked and the Dead (Os Nus e os Mortos, 1958) passa por se sentir em demasia que o ponto de partida foi invertido: primeiro, mesmo que buscando “de fora”, concretamente à prosa de Norman Mailer, Walsh duplica a base narrativa e a própria paisagem de Objective, Burma! para depois procurar estabelecer essa dinâmica formal ou conceptual (actor-câmara-décor) que, lamentavelmente, nunca se vislumbrará em pleno. Para Walsh, a mise en scène é a base da pizza, não os seus ingredientes – aliás, aventuro-me a dizer o contrário de um Hawks ou de um Ford onde, em regra, a repetição é mais substancial que formal ou, no limite, tão substancial quanto formal.
Por outro lado, como aponta muito bem Dave Kehr, ao contrário de um Ford ou Hawks, o cinema de Walsh nasce do – e morre no, acrescento agora eu – individual, não de uma – ou numa – consciência do todo. Constata-se facilmente isso pela relativa repetição de “paisagens” em Ford e Hawks e a permanente rotatividade, ou indecidibilidade, destas nos filmes de Walsh – acontecerá isto porque tudo depende da forma como a acção das personagens vai mexer com o destino que lhes estava social, política, histórica e dramaticamente traçado. Walsh, cineasta do impulso e das personagens, muito mais horizontal do que qualquer outro cineasta clássico, não convive bem com o “eterno retorno” às mesmas paisagens ou às mesmas situações. Nele, o remake está nos modos de agir, não nos modos da acção.