Na minha casa, como em todas as casas, contam-se histórias aos mais pequenos (e aos mais crescidos também, que as gostam de ouvir) e entre essas histórias temos as morais – “não fales com estranhos” – as divertidas e ainda outras que de alguma forma funcionam como desafio à autoridade ou ao poder instalado.
A história que agora passo aqui a escrito era uma que vinha desde o tempo da ditadura e do prazer de provocar tenuemente o regime com anedotas inocentes. Contou-me a minha mãe que certo dia o Presidente da República de então, Américo Thomaz – também conhecido lá em casa como o cabeça de abóbora -, foi a uma inauguração, ou algum evento de estado, com a sua esposa, Gertrudes Ribeiro da Costa. As origens da senhora eram modestas (e talvez daí viesse algum carisma próprio do Estado Novo) e quando de um alto, juntamente com outros dignitários, observava a paisagem exclamou para os que junto dela estavam que se tratava de uma belíssima vista. Prontamente o abóbora repreendeu a senhora e sussurrou-lhe que não era de bem dizer-se “vista”, deveria dizer-se “panorama”. Como boa aprendiz a primeira-dama acatou a correcção e garantiu para consigo que o erro não se repetiria. Ainda lá no alto (porque estas cerimónias sempre demoram mais que o desejável) a senhora tem o infortúnio de lhe entrar uma poeira nos olhos. Arreliada com a situação comentou para com o marido: “Ai filho, entrou-me um cisco no panorama”.
Porque conto tal episódio da minha meninice a propósito da antevisão do Panorama 2013 – Mostra do Documentário Português é-me misterioso. Talvez seja só a coincidência das palavras que acho irresistível, mas pouco importa. Creio, no entanto, que não é completamente desadequado começar por aqui,uma vez que a secção Percursos no Documentário Português este ano é dedicada ao Documentário no Cinema Novo e os filmes de então vivam também entre a autorização oficial e a provocação velada. Cada um à sua maneira desafiava o regime, um pouquinho só, ou abertamente – será exibido Catembe (1965) de Faria de Almeida que contou com o recorde do filme mais cortado pela censura (passou de 87 a 45 minutos) tendo sido a sua exibição proibida poucos dias depois da sua estreia. Nesta secção vamos ter para além de filmes de Faria de Almeida, Fernando Lopes [do qual serão exibidas algumas curtas publicitárias e Belarmino (1964) – filme de abertura – cuja sessão será seguida de uma actuação do Trio Hot Clube de Portugal que originalmente musicou o filme, faz este ano 40 anos], Manoel de Oliveira [com o seu O Acto da Primavera (1963), que marcou o regresso do realizador às longas metragens vinte depois de Aniki Bóbó (1962)], António de Macedo, Paulo Rocha, José Fonseca e Costa, Alberto Seixas Santos, Manuel Costa e Silva, Fernando Matos Silva e Alfredo Tropa. A sessão de encerramento do festival fará também parte desta secção e contará com três curtas documentais de três cineastas do cinema novo – João César Monteiro, António Pedro Vasconcelos e o já referido António de Macedo – dedicadas aos artistas: Sophia de Melo Breyner, Fernando Lopes Graça e Almada Negreiros (respectivamente). [Com excepção das sessões de abertura e de encerramento, que decorrerão no Cinema São Jorge, as outras sessões da secção Percursos terão lugar na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema entre dia 6 e dia 8]
Embora não haja uma secção competitiva (daí ser uma mostra e não um festival), o Panorama 2013 apresenta em resumo o grosso da produção documental feita em portugal no ano de 2012 naquilo que são as Sessões Contemporâneas as quais estão divididas em três áreas principais: Guimarães/Vila do Conde dedicada às produções da Capital Europeia da Cultura e o projecto Estaleiro (que serviu para comemorar os 20 anos do festival vilacondense), onde se encontram os novos filmes de Graça Castanheira e Thom Anderson (por Vila do Conde) e Rui Simões, Margarida Gil e Regina Guimarães (por Guimarães); Panorama DocLisboa onde se apresentam alguns dos filmes que passaram pela última edição do referido festival e por fim as sessões do panorama documental do ano anterior.
Podemos daqui destacar alguns títulos. Anquanto La Lhéngua Fur Cantada (2012) é o último título da trilogia que João Botelho dedicou a Trás-os-Montes [que segue Para que este mundo não acabe! (2009) e A Terra antes do Céu (2007)] e que se apresenta aqui na sua estreia em sala; O Fantasma de Novais (2012) é o filme de Margarida Gil sobre o jornalista e crítico de cinema Novais Teixeira que entre ficção e o documentários tenta revelar este nome agora esquecido – por isso fantasmagórico – viajando entre Portugal, Espanha, França e Brasil onde o crítico trabalhou; Reconversão (2012) de Thom Anderosn [professor e realizador de Los Angels Plays Itself (2003)] que veio a Portugal conhecer a obra de Souto Moura e visitando uma a uma aproveita para descobrir uma região e o nosso país; Quero-vos, Respeito-vos, Preciso de Vocês – 15 M de Dentro (2012) o documentário do realizador espanhol Alex Campos García sobre o movimento 15M que ocupou durante semanas a praça Puerta del Sol em Madrid [que vem acompanhado da curta Manifestação (2012) de Carlos Godinho] ou ainda Aqui Tem Gente (2013) de Leonor Areal (realizadora do premiado Fora da Lei) sobre o processo de desalojamento num bairro nos arredores de Lisboa – filme em estreia.
Por fim convém não perder as duas sessões dedicadas à cidade de Lisboa – Sessão Lisboa –, com uma selecção de curtas metragem (modernas e nem tanto) e cuja segunda sessão inclui a longa-metragem Domingo à Tarde (2012) de Cristina Ferreira Gomes sobre a vida de um grupo de imigrantes paquistaneses em Lisboa, nem tão pouco a Sessão Televisão: Experimentar ou Normalizar que inclui três curtas que oscilam entre o formato mais experimental e outras no formato de reportagem televisiva, todas à volta do fecho de fábricas – esta sessão será seguida de debate.