Raridade de semi-propaganda, China Sky (Sob o Celeste Império, 1945) de Ray Enright funciona como um curioso documento histórico de uma Segunda Guerra Mundial (ou, mais correctamente neste caso, de uma Segunda Guerra Sino-Japonesa) à beira do fim. A Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema exibe-o pela segunda vez na segunda-feira.
A Segunda Guerra Mundial inspirou um número considerável de filmes nos vários países que nela participaram, mas talvez nenhum país se tenha dedicado tanto a representar os “outros” como os Estados Unidos. A guerra na China, que começara anos antes de a Europa entrar em conflito, foi tema de várias produções americanas, tanto documentários (por exemplo, The Battle of China, um dos episódios de Why We Fight de Frank Capra) como de ficção (caso de Blood on the Sun de Frank Lloyd, só para citar um título), onde as intenções propagandísticas eram pouco ou nada disfarçadas. China Sky, produzido no último ano da guerra, é um dos exemplos na área da ficção e apresenta traços similares a outros filmes da altura.
Como outros, é um filme que congrega drama de guerra e romance, que versa sobre a união de chineses e americanos no combate ao inimigo comum da época (o Japão), onde uma criança protagoniza momentos-chave (centrado em crianças e partilhando um mesmo actor foi outro filme do mesmo ano, China’s Little Devils de Monta Bell, que a Cinemateca exibiu há uns anos), e onde se descortina um certo paternalismo americano, que por vezes chega mesmo ao racismo, desconfortável para qualquer espectador de hoje.
A China de China Sky, como de outros filmes análogos, é uma China vaga e pitoresca, quase saída de um livro para crianças (sem desrespeito para Pearl S. Buck, em cujo livro de 1941 o filme se baseia). Ainda assim, vários destes filmes ficaram caídos no esquecimento e China Sky será dos menos vistos. Parte disto estará relacionado com as conturbadas relações entre os EUA e a China pós-1949 e, eventualmente, mesmo pós-1979 (quando os Estados Unidos estabeleceram relações diplomáticas com a República Popular da China) quando demasiadas referências à outrora aliada República da China deixaram de ser politicamente desejáveis. No entanto, China Sky é um curioso objecto histórico. A República da China é amplamente referida pelo nome mas uma das personagens mais importantes do filme é um “guerrilheiro” que protege a aldeia do filme, e que não é difícil ver como uma referência velada aos guerrilheiros chineses comunistas para com que os Estados Unidos não nutriam ainda a inimizade que marcaria as décadas seguintes.
Ambientado numa aldeia numa zona montanhosa chinesa, o filme gira em torno de um hospital gerido por missionários americanos. As peripécias pessoais dos americanos e dos seus auxiliares (um médico coreano e uma enfermeira chinesa) desenrolam-se num contexto de ataque constante por forças japonesas e de resistência por um grupo de guerrilheiros locais.
China Sky é, como referimos, um documento histórico do seu tempo, impresso com os seus objectivos mobilizadores e moralizadores, mas também com os seus preconceitos, o que numa luta contra um país que alegava querer a união dos povos asiático não deixa de parecer irónico. Por exemplo, em China Sky um dos traidores é um médico coreano que cobiça o lugar de chefia do médico americano “branco”, relações amorosas entre americanos e chineses são inconcebíveis, os chineses auxiliam enquanto os americanos chefiam e, num caso que, infelizmente, estava longe de ser raro, quase todas as personagens chinesas principais foram interpretadas por actores “brancos” caracterizados para parecerem chineses (Anthony Quinn como o guerrilheiro Chen-Ta, Carol Thurston como a enfermeira Siu-Mei).
Filmicamente, China Sky também está longe de impressionante. Talvez tenha proporcionado matinés empolgantes em tempo de guerra (se bem que em Portugal só tenha estreado em 1946) mas hoje em dia não causará grande furor. No entanto, constitui um objecto digno de atenção para quem se interesse pelo período em causa e, talvez mais particularmente, merece ser visto como caso paradigmático do seu contexto num conjunto mais vasto de visões cinematográficas americanas da China, que mudaram muito ao longo do tempo.
China Sky passa na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema dia 13 (segunda-feira), às 22h.