Os grandes católicos do cinema, como André Bazin, Henri Agel ou Amédée Ayfre, sempre gostaram de falar de moral, revelação, luz, alma, fenomenologia, ontologia, real, realismo… O grande Deus do cinema é um Deus da imanência, não o Deus “acima”, mas o Deus “em todo o lado”. O milagre no cinema é o milagre da vida impressa na película, revelada em toda a sua nudez. É o manto de Verónica ou a máscara do tempo que o cineasta rouba ao mundo para dar ao mundo, ou melhor, rouba ao mundo para dar mundos. Contudo, a “visão de Deus” eleva o filme a um plano de transcendência, dessubjectiva a perspectiva da câmara por nos pôr a ver o mundo de onde nunca o poderemos ver – a perspectiva verticaliza-se muito para além do nosso alcance… É um olhar omnisciente fixado nos céus, que O convoca para lá do milagre (baziniano) do cinema e da vida.
Sou um intenso idólatra de todo o découpage de Mystic River (2003). É um filme cheio de hesitações e fragilidades formais. Paradoxalmente ou não, a sua solidez (dir-se-ia clássica) nasce dessas hesitações. A câmara move-se pelo céu, sobre o rio “místico”, é enviada para a terra, em suaves travellings que procuram as personagens e depois, quando surge a hesitação – a dúvida -, Eastwood move subtilmente a câmara em direcção ao céu. A solidez/a certeza está nestas fugas a cada cena, como aliás é notório aqui, quando a personagem de Jimmy (Sean Penn) sabe que a sua filha, a menina dos seus olhos, desapareceu para sempre. Kevin Bacon, interpretando o detective Sean Devine, dissera segundos antes que não sabia como comunicar a perda ao seu amigo de infância: “What the fuck am I gonna tell him? Hey Jimmy… God said you owed another marker. He came to collect”. A seguir vemos Sean Penn a correr perdido em direcção ao “local do crime”, perguntando a toda a gente e a ninguém se é a sua filha que está ali. Os polícias detêm-no, ele não pode estar ali. A câmara continua ao nível das personagens, mas quando Sean troca olhares com Jimmy a dúvida dissipa-se. Os polícias deixam de deter aquele homem e passam a abraçar aquele corpo devastado pela dor, uma dor que só o olho de Deus consegue encarar. É para os céus que o seu rosto aponta e é dos céus que a câmara de Eastwood “resolve” esta cena composta dramaticamente para Deus e por Deus – um Deus cobrador e injusto, como é norma em Eastwood.
Luís Mendonça
Numa compilação dos God’s eye view shot pareceu-me boa ideia escolher um filme que fosse suficientemente herege, Slither (Slither – Os Invasores, 2006) de James Gunn é a escolha ideal. Primeiro porque é literalmente herege – Praise Jesus? That’s fucking pushing it! This shit’s about as far from God as shit can get! – e segundo porque é herege para os amantes do cinema de terror série b dos anos 70 e 80 que é aqui, um por um, louvado e gozado em igual proporção. Está cá tudo, Cronenberg, Ferrara, Craven, Carpenter, Raimi e Stuart Gordon tudo num filme, mas se se pensa que o resultado é uma amalgama de referências, desengane-se, a referência é ponto de partida para James Gunn escrever uma parábola em torno da instituição do casamento e da perversão de tal coisa. Mas é de planos que se fala neste caldo e de planos falarei. A cena a cima é simultaneamente uma referência a A Nightmare in Elm Street (Pesadelo em Elm Street, 1984) – a planificação é idêntica – e a Shivers (Os Parasitas da Morte, 1975) – onde Cronenberg matava a menina from within. Aqui, vemos toda a cena de cima – do ponto de vista do Senhor – como se a praga (vinda do espaço) fosse um joguete de deus, divertido em perceber como a sua criação reage a tão gosmentas criaturas. Testando-nos quanto à nossa capacidade de aguentar a sua instituição por excelência, no melhor e no pior, na saúde e na doença, até que uma lesma do espaço nos separe.
Ricardo Vieira Lisboa
Depois da explosão de violência contida até aí no corpo seco e nervoso de Robert De Niro, um receptáculo totalmente disponível para absorver os demónios de Paul Schrader e Martin Scorsese, depois da chacina, do sangue mortiço – Scorsese foi obrigado a desbotar o vermelho vivo para que Taxi Driver (1976) não recebesse uma classificação etária proibitiva – a jorrar pelas paredes, dos corpos decepados pelas balas, pela fúria do taxista assassino, a câmara sobrevoa a tragédia suspensa (repare-se como os corpos, dos vivos e dos mortos, se imobilizam à passagem da música de Bernard Herrmann), num travelling pelos ares que já não é o olhar de Deus, talvez de um pássaro maldito (também se costuma chamar a este tipo de planos bird’s eye view), um Diabo com asas, que assiste à sua obra, um quadro infernal na Terra. Para o mui católico Scorsese (chegou a pensar seguir a carreira eclesiástica), o terror e a culpa por pensamentos pecaminosos enquadrados no fulgor da exímia técnica cinematográfica.
João Lameira
Costuma dizer-se que Deus está em toda a parte. Curiosamente, o cinema cedo estabeleceu que o lugar Dele é lá em cima nas alturas a olhar cá para baixo, em plano picado, estático e impotente (ou vingativo na sua inacção, dirão os cultores do Antigo Testamento). No terror, ou mais genericamente no suspense, a essa dimensão adiciona-se a função de estranheza do posicionamento da câmara, como um sinal de que há algo ou alguém (Deus também como monstro) que observa, ao longe, prestes a atacar. Na obra-prima de Alfred Hitchcock, Psycho (Psico, 1960), essa ideia de estranheza não deixa de ser verdade no plano que escolhemos. O detective sobe as escadas e o god’s eye mostra-nos a “mãe” de Norman Bates a esfaqueá-lo, num plano que irrompe, brusco na découpage lenta da construção da tensão da cena. De certa forma, este momento acompanha a construção do inédito do filme (a par da morte da protagonista a meio do filme ou da construção ad infinitum do visível pelo invisível na shower scene). Mas se comungam desse sentido, há também um lado testemunhal no plano. Como se o único espaço para mostrar a violência real fosse num plano brusco (isso não é novo) mas “escrito” de cima para baixo. Só a Deus (e ao espectador Deus) é permitido vislumbrar a verdadeira violência. Como espasmo mas sobretudo como espaço teatral: é por isso que, naquele momento, Hitchcock constrói um palco teatral que mostra (nos mostra) toda a cena, não em horizontalidade, mas em verticalidade. Teatro nas alturas como momento de revelação do mal e do cinema. Nesse teatro, como no da vida, de resto, a big picture assusta e pouco permite fazer.
Carlos Natálio