O norte-americano Dave Kehr é um dos mais refrescantes críticos e divulgadores do cinema, especialmente de títulos mais obscuros do classicismo de Hollywood, mas também um entusiasta das cinematografias “estrangeiras”, destacando-se a sua paixão pela obra de Manoel de Oliveira. Foi autor de alguns importantes ensaios sobre filmes no Chicago Reader, entre 1974 e 1985, tendo-se depois tornado crítico regular de cinema do Chicago Tribune. Desde 1999 é autor de uma coluna no New York Times onde, todas as semanas, desenterra mais que uma raridade do mercado home cinema norte-americano. No seu site pessoal, Dave Kehr vai pondo o seu vasto e rico auditório cinéfilo a par da sua actividade crítica. No dia 15 de Abril de 2011, a University of Chicago Press lançou o livro – em papel e em versão e-book – When Movies Mattered: Reviews from a Transformative Decade, onde o crítico norte-americano colige alguns dos seus textos mais significativos escritos entre 1974 e 1986, época em que se assistia, escreve Kehr, “à emergência da chamada film generation (…) e da chamada imprensa alternativa, uma extensão dos jornais underground da era do flower power numa respeitabilidade com fins lucrativos.”
A tradução deste texto, a cargo de Luís Mendonça, foi devidamente autorizada pelo autor e seus editores. O artigo que abaixo damos a ler, pela primeira vez, aos leitores portugueses foi publicado originalmente no dia 23 de Janeiro, 1981, no Chicago Reader, sob o título «Crisis, Compulsion, and Creation: Raoul Walsh’s Cinema of the Individual».
Quando escrevia na semana passada sobre Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980) de Martin Scorsese, eu quis introduzir alguns parágrafos a propósito de Raoul Walsh, o grande realizador “de género” que é provavelmente a principal influência de Scorsese, mas por alguma razão eles não encaixavam. Walsh, que morreu algumas semanas atrás com 88 anos, merece mais que um à parte, pese embora este tenha sido o seu destino na maioria das histórias do cinema. Ele realizou bem mais que cem filmes numa carreira que começou com D.W. Griffith nos anos dez (ele interpretou John Wilkes Booth em The Birth of a Nation) – e acabou a sua carreira na Warner Bros. no princípio dos anos 60, e entre eles existem os mais enérgicos, pessoais, e tecnicamente proficientes filmes que saíram de Hollywood. Contudo, excluindo um pequeno, estranho culto que cristalizou em Paris nos anos 50, Walsh nunca foi louvado pelos críticos. O seu nome foi sempre mencionado ao lado dos de Hawks e Ford, mas por alguma razão a sua afirmação nunca foi segura: muitas vezes, o seu trabalho mereceu admiração – efusões sobre as suas claras e superficiais virtudes – sem que se tentasse encarar o que era, como funcionava, o que significava. Não me ocorre nenhum outro caso de um realizador cujo trabalho foi tão global e justamente visto como importante, mas que mereceu uma atenção tão pouco inteligente.
Porventura parte do problema com Walsh é que o seu estilo e valores estão ligados de forma tão apertada com o género – acção-aventura – no qual ele trabalhou que é difícil dizer onde a forma sai fora e o realizador começa. Falar de um filme de guerra de Walsh é, de uma certa maneira, falar de todos os filmes de guerra, falar de um western de Walsh é falar de todos os westerns – no sentido em que o principal impulso temático dos seus filmes, o poder redentor da acção, é também o impulso temático dos seus géneros nos seus estados mais puros. Mas existem importantes diferenças entre os arquétipos gerais e a sua personificação na obra de Walsh, diferenças quanto às peculiaridades de carácter, padrões de acção, e dinâmicas internas que definem um ponto de vista pessoal. Andrew Sarris, nas suas curtas notas sobre Walsh em The American Cinema, fala de uma vulnerabilidade emocional particular aos heróis de Walsh – ele cita James Cagney aconchegado no colo da mãe em White Heat (Fúria Sanguinária, 1949) – mas a capacidade para mostrar dor, dependência, e incerteza é apenas a ponta do icebergue. O herói de Walsh, muito mais que os de Ford ou Hawks, é um herói numa crise pessoal. Os heróis de Ford definem-se ao aceitarem os seus amigos e capacidades profissionais, mas o herói de Walsh não tem nada em que se agarrar. Ele é uma página em branco, sem passado ou fugindo dele. A sua tarefa – que pode tomar a forma de uma busca ou de uma missão, a ascensão num negócio ou a formação de uma reputação – é inventar-se a si mesmo. Se ele é vulnerável é porque existe algo cru, informe, impertinente nele. A sua personalidade ainda é fluída, aberta à mudança e influência.
Walsh ficou famoso pela sua velocidade: o início da montagem de White Heat, que comprime a carreira de James Cagney como um gangster psicótico em apenas um arrasadoramente violento assalto a um comboio, é porventura a mais rápida, esmagadora abertura na história do cinema, e muitos dos filmes de Walsh começam in media res, a exposição cai habilmente na agitação da acção. O mesmo demónio da velocidade é partilhado por vários heróis de Walsh, que muitas vezes parecem comandados por forças desconhecidas e profanas – algumas para lá da sanidade, como Cody Jarrett em White Heat; outras, como James J. Corbett em Gentleman Jim (O Ídolo do Público, 1942), no sucesso pessoal e prestígio. James Cagney tem uma das suas melhores interpretações em filmes de Walsh – The Roaring Twenties, Strawberry Blonde, White Heat, A Lion Is in the Streets – onde a sua fisicalidade ferida e antiquada encontrou a melhor apresentação visual e o seu uso mais expressivo. Errol Flynn foi outro habitué de Walsh (They Died with Their Boots On, Desperate Journey, Gentleman Jim, Northern Pursuit, Uncertain Glory, Objective Burma, Silver River); apesar da sua personalidade ser muito menos complexa que a de Cagney (na mão de outros realizadores, ele foi indesculpavelmente negligente), Flynn ainda assim encontrou presença no trabalho de Walsh, onde a sua petulância inata, o seu narcisismo, podia tornar-se parte da sua personagem. O seu impulso era diferente do de Cagney: onde Cagney, o miúdo duro do bairro pobre, lutava pelo sucesso material, o mais suave, sedoso Flynn tinha metas mais abstractas em mente: posição social (Gentleman Jim), glória militar (They Died with Their Boots On), sucesso político (Silver River). Flynn era o trepador social, Cagney era o desordenador social – mas ambos agiram a partir da mesma compulsão interior, uma compulsão para criarem-se a si mesmos através das suas acções, para arrancar uma identidade do mundo. Em Walsh, os mitos americanos do sucesso e da mobilidade encontram uma ressonância profundamente psicológica e talvez existencial: ao produzirem-na, o herói de Walsh está a fazer-se a si mesmo.
Se os filmes de Walsh tomam o seu tempo do dinamismo, dos impulsos interiores das suas personagens centrais, eles também permitem ao herói ditar a sua forma e estrutura. Em geral, Walsh é atraído por dois tipos de organização: o plot biográfico de “ascensão e queda de…” (como em The Roaring Twenties, They Died with Their Boots On, Gentleman Jim, A Lion Is in the Streets), e mesmo uma estrutura narrativa mais solta que pode ser chamada de “map movie” – o tipo de filme que começa com um grande X num mapa e segue a personagem na sua progressão do ponto A para o ponto B através de uma crescente linha pontilhada. Os “map movies” de Walsh – os melhores são Objective Burma, Along the Great Divide, Distant Drums, e Saskatchewan – não são contos picarescos de aventura ou busca heróica: amiúde, como em Burma e na parte final de Distant Drums (As Aventuras do Capitão Wyatt, 1951), as personages estão em retirada, fugindo de um inimigo através de uma paisagem hostil e primitiva. Eles encontram, na Natureza, o mesmo tipo de desafios que os heróis dos filmes biográficos confrontam em termos sociais: é sempre uma questão de uma vontade imposta ao mundo, de um ambiente – urbano ou selvagem – conquistado. Os heróis dos filmes biográficos movem-se no tempo, ao passo que os dos “map movies” movem-se no espaço, mas ambos enfrentam o mesmo tipo de desafio – não um de punição ou purgação, mas de aprendizagem e provação. As personagens retiram algo dos seus confrontos: elas crescem em força e identidade.
Para Ford, o foco último é a sociedade, para Hawks é o grupo; o foco de Walsh é, unicamente, o indivíduo – a sua experiência, o seu progresso, a sua evolução. [O pronome masculino não se aplica sempre: um dos protagonista mais admiráveis de Walsh, Jane Russell em The Revolt of Mamie Stover (Mulher Rebelde, 1956), é inequivocamente uma mulher.] Os plots casuais e discursivos de Walsh criam um sentido de liberdade em torno do herói, como se as suas acções sozinhas determinassem a direcção do filme. Sugestivamente, os filmes mais fracos de Walsh, como a adaptação de 1943 de Eric Ambler, Background to Danger (O Expresso de Bagdad-Istambul, 1943), são geralmente aqueles com plots rígidos, bem definidos; ele não parece ser hábil a lidar com elaboradas maquinações narrativas e com as limitações dos heróis que estas insinuam, a sensação que o destino da personagem não está sempre nas suas próprias mãos. Walsh é exactamente o oposto filosófico de Fritz Lang, um “pagão contente”, como um crítico francês lhe chamou, para o catolicismo taciturno de Lang, inocente de qualquer sentido de condenação ou predestinação, de qualquer poder para lá do Homem. Alguns dos filmes mais divertidos de Walsh (embora estejam longe do seu melhor) pertencem à séries de rápidos musicais que realizou para a Paramount nos anos 30 – Going Hollywood, Every Night at Eight, Artists and Models, College Swing, St. Louis Blues. Muitos deles são concebidos como simples exibições para entertainers populares ou estrelas da rádio; se eles têm um plot, ele existe apenas para ser ignorado, e eles resultam refrescantemente livres e ligeiros alinhamentos de músicas, sketches musicais, e reviravoltas dramáticas, unificados unicamente por uma agradável e generosa sensação de que vale tudo. Só um realizador como Walsh, serenamente sintonizado com os ritmos da personalidade e espírito desse plot e estrutura, podia ser bem sucedido com tanta integridade: eles são livres sem serem desleixados, abertos sem serem desajeitados.
Mas a celebração da liberdade em Walsh só vai até aí: existe um lado negro também, um sentido de anarquia, e muitos dos seus melhores filmes têm a ver com a procura por uma linha – o ponto a partir do qual a liberdade vira caos, quando o impulso interior do herói se torna destrutivo, demencial. Muitas vezes, Walsh dá aos seus heróis um duplo, uma figura oposta possuída pelo mesmo impulso maníaco mas elevado ao excesso. Nos duelos entre James Cagney e Humphrey Bogart em The Roaring Twenties (Heróis Esquecidos, 1939), John Wayne e Walter Pidgeon em Dark Command, e Robert Mitchum e Dean Jagger em Pursued (Núpcias Trágicas, 1947), a única diferença entre herói e vilão é uma de restrição relativa, o grau para o qual a personagem está disposta a superar a sua energia interior. [Martin Scorsese apropriou-se desta estrutura, com algumas sugestivas variantes, para Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973).] O mais notável neste grupo é They Drive by Night (Vidas Nocturnas, 1940), um filme que começa como um drama social adulto sobre a ascensão de um camionista independente (George Raft) a director da empresa, mas quebra nitidamente no meio para se tornar num courtroom melodrama sobre uma mulher (Ida Lupino) que matou o seu marido por forma a desimpedir o caminho que a leve ao seu amor. A transferência – entre energia pessoal usada para fins positivos e energia sexual usada para fins destrutivos – não emerge com suficiente clareza para convencer o público (como convence, por exemplo, a mesma artimanha em Psycho), mas permanece como um dos momentos mais audaciosos de Walsh.
A maioria dos primeiros filmes de Walsh estão perdidos ou indisponíveis; os poucos dos anos 20 que podem ser vistos – The Thief of Bagdad, The Lucky Lady, What Price Glory – estão largamente dentro do estilo standard do período, dependentes no corte e movimentos gerais dentro do frame para o seu sentido de ritmo. No início dos anos 30, Walsh pode ser visto a experimentar com a profundidade de campo e os planos panorâmicos (The Bowery, Me and My Gal), pese embora não seja até 1939, com o começo do seu mandato na Warner Bros., que o seu estilo visual atinge a sua máxima maturidade, com composições alargadas em profundidade e uma completa simpatia entre o movimento da câmara e o movimento dos actores. Walsh teria dado um caso muito melhor para a ligação teórica de André Bazin entre profundidade de campo e realismo que os seus próprios exemplos, William Wyler e Orson Welles. Onde a profundidade de campo de Wyler tende a vazios designs pictoriais (uma extensão de linhas e ângulos), e a de Welles se prende com a recriação do espaço teatral, a profundidade de campo de Walsh visa a localização das personagens num mundo físico definido. A profundidade de campo sugere a extensão do mundo para lá do alcance da câmara, e até atrás dele: o espaço é capturado como um todo, não seccionado por planos de foco ou restrições de composição. Raramente existe um sentido de “background” num plano de Walsh: as linhas de perspectiva são quase sempre levadas a estender, explicita ou implicitamente, à linha do horizonte. O espaço é contínuo, sólido: nunca é o fino, transcendente espaço de um Borzage ou o espaço alucinatório e circinal de um Sirk. Mas ainda assim, tal como em Sirk e Borzage, existe uma sugestão de tensão entre a personagem e o mundo que ela habita. O plano favorito de Walsh é o plano americano, com os seus actores cortados entre a cintura e os joelhos. Através da composição os actores são tornados parte do espaço contínuo, a sua própria fixidez nele parece ténue. Eles raras vezes se plantam firmes, completamente nele; ao invés, eles habitam um primeiro plano indefinido, desconfortavelmente suspendido, instável, ante o mundo atrás deles. Quando Walsh faz uma panorâmica, ele está a indicar a existência de um mundo que vai para lá da linha do frame – fora dos limites de uma única, simples composição – mas ele está também a estender a tensão entre actor e set em termos dinâmicos. Ele faz a panorâmica acompanhando o movimento do herói, dando ao actor o poder aparente para determinar a composição e o ponto de vista – de novo, o sentido de liberdade – mas fazer a panorâmica ao invés de um travelling, ele mantém o set imóvel, estático, separado do actor. Num travelling, o décor “move-se” com o actor; o espaço é fluído, mudando em resposta aos movimentos do actor. Numa panorâmica, o espaço retém a sua integridade: a nossa perspectiva sobre ele permanece constante num eixo fixo. As personagens de Walsh movem-se com liberdade através do mundo, mas o mundo não se rende a elas: ele permanece um desafio constante, sólido e ligeiramente à parte.
Com efeito, os heróis de Walsh batalham com o mundo, definindo-se através da luta. No clímax dos seus filmes, no auge da batalha, Walsh normalmente muda literalmente para um plano mais alto: o tiroteio no apartamento entre Cagney e Bogart em The Roaring Twenties [Scorsese duplica o plano espacial no clímax de Taxi Driver (1976)], a última batalha de Bogart com a justiça em (e na) High Sierra (O Último Refúgio, 1940), e, mais famosa, a epifania louca de Cagney no topo do tanque de gás flamejante que está à beira de explodir e destrui-lo, ressoa através da obra de Walsh. “Top of the world, ma! Top of the world!” grita ele, colocado numa efémera posição de dominância simbólica – o herói de Walsh no seu momento último de desafio e de perigo.
Há uns anos, o Museum of Modern Art organizou uma retrospectiva extensiva da obra de Walsh; nunca houve antes, pelo que sei, uma programação extensiva de Walsh em Chicago. Mesmo os filmes individuais raramente passavam nos cine-clubes locais. Provavelmente, a maldição de Walsh é a prolificidade: à excepção de uma mão cheia de títulos famosos, muitos dos quais sofrem o desprezo da familiaridade, o que escolher entre as dezenas e dezenas de filmes que ele fez? Como qualquer artista, Walsh era irregular, mas ainda estou para ver um filme de Walsh, não interessa quão obscuro, que não tenha algum do seu faro, algum do seu espírito contagiante. A cinemateca de Walsh é, enfim, a programação nocturna da televisão. Raramente passa uma semana sem um dos seus filmes; às vezes passam dois ou três. A sua obra vale a pena ser vista e vale a pena ser trabalhada.