Tendo visto recentemente Captive (Cativos, 2012) de Brillante Mendoza, também com Isabelle Huppert, e Copie conforme (Cópia Certificada, 2010) de Abbas Kiarostami, desta feita com Juliette Binoche, dava vontade de traçar um padrão. Este passa pela “deslocalização” (não necessariamente geográfica) do universo, ou dos afectos, dos cineastas em causa em prol de uma relação de fascínio pelo “outro” ocidental cinematográfico. Relação essa que se corporiza em torno desse íman atractivo que é o corpo, o rosto, desse ícones do romantismo que ainda restam (sabe-se lá por quanto tempo mais) de uma certa aura cinematográfica francófona. Huppert, Binoche, em pose, em grande plano, de perfil, mas também nunca simplesmente tratadas com a coragem de apenas mais um “objecto” no plano. Desta feita, o que explica o fracasso de ambos os filmes prende-se sobretudo com o abandono da verdadeira noção de encontro entre diferentes, de uma relação que tentasse ofuscar a hierarquia e as reverências e tomasse uma abordagem mais rizomática.
Não é pois de estranhar que quando Isabelle Huppert visitou a Coreia do Sul e “ordenou” numa conferência de imprensa que gostaria de trabalhar com alguns realizadores do país, entre estes Hong Sang-soo, ficássemos na expectativa de se ver cumprir esse padrão ou perceber para que lado pendia este verdadeiro jogo de forças. Desde os primeiros momentos de superior laconismo visual de Da-reun na-ra-e-suh (Noutro País, 2012) – com a frontalidade da placa do West Blue Hotel, a conversa inicial entre mãe e filha sobre o cerco que as dívidas do tio lhes impõem e o plano da jovem de perfil na mesa (“vou escrever um argumento para acalmar os nervos”) – percebemos que é Isabelle que virá visitar o coreano neste seu “país-cinema” e não o contrário.
Não será pois coincidência que a vinda de uma actriz-corpo-estranho ao cinema de Sang-soo seja acomodado sem problema pelo seu tema central: a viagem, a fuga, como movimento de cicatrização/recomposição emocional. Desta forma, Noutro País é uma variação agridoce [até pela sua estrutura tripartida em episódios no qual uma turista francesa (sempre Huppert) vem sucessivamente à mesma cidade costeira visitar um cineasta, encontrar-se com um amante ou recuperar do abandono e divórcio do marido] desse crescimento interior a partir de outro espaço de renovação. Isso já estava em Bam gua nat (Noite e Dia, 2008) mas já vinha desde as suas primeiras obras: lembre-se, por exemplo, a importância da chegada, o comboio e as montanhas em Kangwon-do ui him (The Power of Kangwon Province, 1998).
A uma primeira e descuidada visão, este dispositivo em episódios com semelhanças que se tocam (o farol, o salva-vidas, os planos do cruzamento em que Anne ora vira à direita, ora à esquerda) parece oferecer-se a um tom de exercício narrativo, retirando-lhe uma certa dose ambição. Contudo, é precisamente a utilização do mesmo espaço, acompanhado do superior sentido de “neutralidade imponente” da mise en scène do coreano, que permite depurar essa viagem existencial, que é feita sobretudo por dentro. Viajar para ficar no mesmo sítio, uma boucle emocional que exorta a beleza do trajecto, do caminhar. Também não por coincidência, aqui, como em To the Lighthouse (1927) de Virginia Woolf, o farol é esse espaço quase idílico que motiva conversas (canções, numa bela cena no interior de uma tenda a construir o off como espaço para o desejo) anseios, planos de viagem. No final, em Sang-soo (já em Woolf era assim) permanece a importância de execução de uma visão mais do que um trajecto.
Nessa visão, a câmara limita-se a registar as incongruências, os choques do espaço novo, das pessoas novas, numa versão luminosa ou invertida de Lost in Translation (O Amor é um Lugar Estranho, 2003). A julgar pelas deliciosas cenas entre Huppert e o belo salva-vidas, esse lost é em Sang-soo um ganho in translation. E ainda o encontro com os novos corpos, pois Noutro País é também a crónica de um desejo sempre em andamento, tanto ou mais do que os movimentos do coração.
Num período de verdadeiro espectáculo como catástrofe técnica do cinema, é possível que os zooms inadvertidos do coreano, os seus tableaux, sejam vistos como sinal de um certo “amadorismo” ou inépcia cinematográfica ou pior, como nostalgia de um passado. Certo é que Noutro País (realmente como se o cinema já se fizesse noutro país, distante, caricato por vezes) é um dos mais prazerosos filmes estreados entre nós este ano. De uma simplicidade e economia desarmantes (Kaurismäki anda por aqui no seu sentido de irrisão), é preciso dar o devido destaque a esta invulgar capacidade de gerir a gradação do sorriso à gargalhada, de mostrar a joie de vivre, o radioso, num filme sem um único plano de sol.