Em declarações sobre o seu último filme Dupa dealuri (Para Lá das Colinas, 2012), Cristian Mungiu diz, indignado, que durante o período em que o estava a realizar abriram 300 novas igrejas na Roménia e que, ao todo, no país existem cerca de 5000, enquanto que escolas são apenas 500. Esta “numerologia” torna evidente a intenção crítica do cineasta ao adaptar o romance da escritora Tatiana Niculescu Bran sobre um caso real de exorcismo trágico numa comunidade cristã ortodoxa.
Parece claro que tudo isto carrega aqui um peso de responsabilidade de denúncia que, não só entronca genericamente na veia desconstrutiva de toda a herança comunista com que o novo cinema romeno se afirmou, como mais concretamente na própria gravitas que colou ao seu universo. Nesse sentido, o filme que lhe valeu a Palma de Ouro, 4 luni, 3 saptamâni si 2 zile (Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias, 2007) já era um filme de denúncia (no caso, o aborto), podendo o seu filme seguinte Amintiri din epoca de aur (Histórias da Idade do Ouro, 2009) ser visto como uma pseudo-excepção na sua estratégia mais cómica de ataque.
Com a chegada de Alina (Cristiana Flutur), vinda da Alemanha ao mosteiro romeno “para lá das colinas” para buscar a sua amiga, Voichita (Cosmina Stratan), Mungiu enceta uma certa ambição bressoniana que coloca em oposição o amor (expresso pelo corpo) e o sagrado (expresso pela alma). Não deixa de ser curioso que Bresson não tenha trabalhado esta dupla dimensão como conflito, antes como passagem, talvez sinal de decadentismo: da crença espiritual [Les anges du péché (Os Anjos do Pecado, 1943)], passando pela doença misteriosa da fé com expressão no corpo [Journal d’un curé de campagne (Diário dum Pároco de Aldeia, 1951)], até ao poder da mão em Pickpocket (O Carteirista, 1959); até que prescinde quase desta em detrimento do que ela faz circular: o dinheiro, era o capital (L’argent (O Dinheiro, 1983)]. Seja como for, em Dupa dealuri, essa oposição está viva e é ela que opera a resistência de Voichita a partir com a amiga, querendo manter-se na comunidade sob a protecção espiritual do padre (a quem todas tratam por pai) e, do outro lado, a prova de amor de Alina, que “quer colocar Deus à força dentro dela” para poder ficar com a amiga.
Embora tenha vencido o prémio para melhor argumento em Cannes, não deixa de ser um pouco frustrante para o espectador que a meticulosa estratégia formal de realismo descritivo do romeno – uma espécie de contratipo de Béla Tarr na visão de uma comunidade: onde este exercita o olhar, Mungiu mantém a distância, onde Tarr explora a indecisão sobre as suas personagens, Mungiu é “demasiado” claro -, mas dizíamos, não deixa de ser frustrante que essa estratégia que disfarça a evidência seja esquecida no clímax. Quase apetece dizer: se não se coloca Deus à força em ninguém, também não se o expulsa à força, isto é, dispensamos o nosso próprio exorcismo.
Seja como for, e isso já se passava também com 4 luni, lateralmente circulam muitos outros atributos dignos de nota. Desde logo, o gosto quase larsvontrieriano pela tensão e intimidade sombrias no feminino, expresso aliás na distinção do par de protagonistas no já referido festival. Depois, a distância da câmara que parece apanhar, por um lado, o sagrado pictórico de algumas composições com pouca luz, com a comida na mesa, as velas, mas por outro, contrapor o “horror” do dogma cristão com os pequenos horrores do quotidiano que tornam o “Inverno em algo que parece que nunca mais vai terminar”, como se diz no fim. É a Alemanha, simultaneamente vista como local de seitas demoníacas e oportunidades maravilhosas, são os preços dos medicamentos, as backstories sobre fotos pornográficas, abusos que ficam por contar, o paralelismo entre o hospital e o mosteiro, é a própria organização deste com os seus ovos, contas de gás, viagens à cidade, dinheiro pelo vinagre, correntes para o cão, etc. São precisamente aqui, nestes detalhes, que os cinquenta anos de comunismo ainda parecem impor a sua ideia de “sagrado” tão distintamente quanto a lista dos 464 pecados que Alina tem de verificar antes da sua confissão.
Sobre o futuro de Mungiu apenas uma interrogação para saber como será ele capaz de gerir toda esta gravidade, este peso autoral, que funde observação, activismo e horror. Tudo dependerá eventualmente da sua máquina tensional, mas aqui já notamos uma certa hesitação a esse nível.