Goketsu Jiraiya (Jiraiya, o Herói, 1921) é um dos poucos filmes mudos japoneses que sobreviveram ao Grande Sismo de Kantō. Na verdade, o cataclismo natural que destruiu a cidade de Tóquio em 1923 foi o responsável pela perda de milhares de obras cinematográficas, queimadas nos incêndios provocados pelo terramoto. Se o filme não é o representante perfeito de todo o cinema japonês desaparecido, sê-lo-á certamente dos primeiros vinte anos de jidaigeki, o género que, trinta anos mais tarde, Kurosawa, Kinugasa e Mizoguchi apresentariam ao mundo ocidental através dos festivais europeus.
O filme é uma das mais de duzentas e trinta obras realizadas por Shôzô Makino até à sua morte em 1929. O cineasta, considerado por muitos historiadores como o pai do cinema nipónico, além de ter contribuído significativamente para a cristalização das normas do jidaigeki no período mudo e de ter constituído a primeira figura multifacetada do cinema japonês, tendo desempenhado simultaneamente as funções de realizador e produtor, descobriu, observando-a numa performance de teatro kabuki, aquela que viria a ser a maior estrela masculina de cinema da época, Matsunosuke Onoe. Com ele, realizou a um ritmo de sessenta filmes por ano, levando-o a uma precoce morte espectacular, no sentido literal da palavra. “He was required to make nine or more features a month, which meant that he was working on three separate features at any one time. Sometimes, he said, he was so exhausted that he would mix up his parts. And, indeed, overworked, he died on the set.”, conta-nos Donald Richie no seu A Hundred Years of Japanese Cinema.
Das produções Makino-Onoe, Goketsu Jiraiya, não tendo sido o maior sucesso, é um seu exemplo paradigmático: é uma imponente produção, repleta de estrelas e com uma influência directa do teatro kabuki. Esta filiação, característica dos jidageki (e que se opunha ao domínio exercido pelo teatro shimpa sobre os gendaigeki), concretizava-se numa inspiração em histórias populares japonesas, já profundamente enraizadas no imaginário colectivo e, portanto, imediatamente reconhecíveis. Esta característica dispensava a existência de um argumento, que era metodologicamente desnecessário e que seria embaraçante para a agilidade necessária à realização de tantos filmes em tão pouco tempo. Makino dava então as instruções a Onoe e aos seus actores à medida que filmava. No entanto, o peso do kabuki extravasa a esfera narrativa e faz-se sentir, desde logo, na mise en scène, quer do ponto de vista ontológico, quer num sentido eminentemente logístico. Assim, a tela e, a montante, o enquadramento, são vistos como o palco do teatro. Neste sentido, os planos dos filmes de Makino são sempre fixos e a entrada em cena e movimentação dos actores dão-se de acordo com os espaços e vectores da linguagem dramatúrgica. Era inclusivamente comum, nas primeiras produções, haver uma cortina que corria, na sala de cinema, entre cada “acto” do filme.
De Goketsu Jiraiya, produzido pela Nikkatsu-Mukôjima, só existem alguns fragmentos, totalizando a duração de vinte e um minutos, o que reforça a ambiguidade da já elíptica transposição da peça de kabuki. No entanto, o jogo entre as personagens é explícito. O herói do filme (naturalmente interpretado pelo herói Onoe), é um samurai com poderes especiais que, sozinho, derrota facilmente os seus inimgos utilizando estratégias evasivas: desaparece quando quer e reaparece, noutro local, em posições ofensivas. Estes malabarismos são retratados por Makino através de velhos truques de ilusão cinemática à la Méliès, que, apesar de na Europa já estarem em declínio dez anos depois da invenção do Cinematógrafo dos irmãos Lumière, ainda fascinavam o público japonês em 1921. Assim, Makino parava a câmara num determinado momento da acção e retomava as filmagens após uma alteração da disposição dos actores. A facécia bélica mais excêntrica, e mais cómica para um espectador de hoje, é a transformação de Jiraiya em rã, sobretudo quando entra em confronto directo com um seu inimigo que assume a forma de um dragão. As disputas físicas são também pretextos para a consolidação de elegantes e oníricas coreografias marciais, que viriam a constituir as marcas mais distintivas dos jidageki, de Sugata Sanshirô (Judo Saga, 1943) de Kurosawa a Jûsan-nin no Shikaku (13 Assassins, 2010) de Takashi Miike.
Para um ocidental, contudo, uma questão se coloca ao ver Goketsu Jiraiya: a que se deve, já no início dos anos 20, este apego japonês à fórmula de inspiração meliesiana “kabuki + magia” e esta relutância em abarcar o realismo cinemático? Donald Richie aponta, como resposta, para a necessidade de perceber que, para um japonês do início do século XX, o real é ainda aquilo que está completamente integrado e comentado pela cultura tradicional nipónica: “Indeed, Japan has no tradition of the common style known as realism, the style that Susan Sontag has defined as “that reductive approach to reality which is considered realistic.” Though Hokusai’s sparrows are thought realistic in Japan, this kind of realism is seen as partial when contrasted with the claims of “cinematic realism” in the West. Thus, what passes for realistic in Japan, elsewhere is thought highly stylised. These inherent differences may also explain why the Japanese were puzzled over what Degas and Monet could have found so special in ordinary Japanese prints.” O mítico Jiraiya, apesar de fantástico, seria, então, uma personagem familiar e, portanto, soberanamente real para um espectador de cinema nipónico nos anos 20, pelo que o aparato estilístico que envolvia a narração de Makino não apareceria como minimamente anacrónico ou estranho. Pelo contrário, estaria ao serviço do propósito de retratar os poderes de uma conhecida figura sobrehumana.
A morte de Matsunosuke Onoe em 1926 marcou, simbolicamente, o fim de uma era no cinema nipónico. A importação crescente de filmes ocidentais, nomeadamente americanos, deu origem uma sede de novidade, famosamente expressa pelo escritor Junichirô Tanizaki. Cansados da repetição constante das velhas histórias e dos recursos formalistas do cinema de prestidigitação, surgiu a vontade de ver a representação do real. Como resposta, ganharam força os gendaigeki, mais longos e com elaboradíssimos argumentos sobre a sociedade contemporânea, que predominariam no cinema japonês até ao aparecimento do sonoro e que permitiram o arranque das carreiras de cineastas como Hiroshi Shimizu e Yasujirô Ozu.
David Pinho Barros irá leccionar um curso de História do Cinema Japonês na Escola de Verão da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde Goketsu Jiraiya e outros marcos do cinema nipónico serão aprofundadamente estudados. As inscrições estarão abertas a partir de 1 de Maio através do site verao.fcsh.unl.pt, onde já se encontra o programa completo da formação.