Se Eduardo Cintra Torres, num artigo escrito em Março deste ano, atribuía o regresso do 5 Noites, 5 Filmes à pressão positiva exercida pela sociedade civil, temo agora que a mesma sociedade civil – onde a petição pelo regresso à exibição regular de cinema foi e é a sua face mais visível e audível – tenha involuntariamente contribuído para deitar (quase) tudo a perder. Como não quero esperar por uma acusação tão monstruosamente reaccionária, antecipo-me dizendo, preto no branco, que a responsabilidade é minha. Iniciei um movimento com um conjunto de amigos e bloggers cinéfilos para restaurar o cinema no segundo canal e agora, de novo, com amigos e bloggers cinéfilos exerci o direito – que, entretanto, encaro como um dever… – à crítica. O resultado destas nossas críticas, trocadas no Facebook com os responsáveis do programa, foi um recuo impensável na qualidade de programação da RTP2. Parece que não sabemos – nós não, eles, instituição ao serviço do Estado – lidar com essa coisa chamada democracia.
Mas façamos como manda o pragmatismo anglo-saxónico e “comecemos pelo princípio”. Na última semana de Abril, o 5 Noites, 5 Filmes “programou” – já explico as aspas – um ciclo de cinema subordinado ao tema “filmes com bolinha” – já estão explicadas as aspas. De facto, não estávamos no dia 1 desse mês, aquele onde a mentira se torna verdade e vice-versa, mas entre 29 de Abril e 5 de Maio. Foi nesse período que a RTP2 passou filmes tão diferentes como Piercing 1 (Piercing I, 2010) de Liu Jian, Badlands (Noivos Sangrentos, 1973) de Terrence Malick, She’s Gotta Have It (Os Bons Amantes, 1986) de Spike Lee, History of Violence (Uma História de Violência, 2005) de David Cronenberg e Body Snatchers (1993, Violadores: A Invasão Continua) de Abel Ferrara. Títulos cuja qualidade cinematográfica não está em discussão – e se estivesse diria que é óptima – mas que se juntam na antena da RTP2 por terem todos “bolinha vermelha”…
Perguntei-me a mim mesmo – e depois aos membros do movimento cívico citado atrás – se tinha sido para isto lutámos, se foi por isto que finalmente provocámos o regresso de um espaço regular de cinema à RTP2, minimamente digno da missão de serviço público que torna útil e significativa a manutenção da televisão pública. A pergunta não comporta nenhum desejo de “fazer implodir” a nossa causa e suas conquistas; pelo contrário, ela traduz a nossa missão de ir acompanhando criticamente a evolução de uma programação cinematográfica que foi praticamente inexistente ao longo de demasiado tempo. Importa perguntarmos o que diz a história da “bolinha vermelha” sobre quem programa ou sobre quem nos programa parte importante das escolhas cinéfilas nacionais. Pego, desde já, no exemplo do filme de Ferrara, para, a partir dele, tentar chegar à tão necessária crítica de que nunca abdicaremos de fazer, enquanto contribuintes e “razão de ser” da rubrica, do canal e da televisão pública.
O filme Body Snatchers de Abel Ferrara fala de corpos que substituem outros corpos ou, quiçá piorando a explicação, imagens de corpos que reproduzem “pessoas reais”. O gesto enquadra bem este filme pouco visto e apreciado de Ferrara, pois encontramos nele a milésima tentativa de recriação do romance homónimo de Jack Finney, escrito originalmente em série para a revista Colliers Magazine, no distante ano de 1954. Disse milésima e, claro, exagero. Até ao filme de Ferrara, contavam-se dois remakes bem sucedidos desta história sci-fi de medo e paranóia: o Invasion of the Body Snatchers (A Terra em Perigo, 1956) de Don Siegel e o Invasion of the Body Snatchers (A Invasão dos Violadores, 1978) de Philip Kaufman. Os dois apresentam-se fortemente embebidos pelo contexto político da guerra fria, aliás, o próprio texto original de Finney não é alheio ao clima persecutório que antecedeu a famigerada caça às bruxas do senador McCarthy. Nestes filmes – também no de Ferrara – a realidade é abalada por uma incerteza que se espalhará, sociedade fora, como um vírus: nada é o que parece. Amigos, vizinhos, antigas, novas e futuras namoradas, a mãe, o pai, a filha, o filho… tudo o que nos rodeia pode ter sido substituído, durante o sono, por outras pessoas extra-humanas, que, disfarçadas de gente, apenas não conseguirão esconder a sua inexpressividade anti-humana.
Ferrara refez esta história no começo dos anos 90, sob o efeito da primeira Guerra do Golfo. Já não temos nas entrelinhas qualquer caça anti-comunista, mas o medo e a paranóia continuam a habitar o espírito desta história. Das forças militares nasce a ameaça e é dentro dela e contra ela que a guerra atingirá o seu clímax. Guerra civil, entenda-se. Falamos sempre aqui de um fratricídio desencadeado por um vírus extra-humano e extra-terrestre. Ferrara não muda as coordenadas de Siegel e de Kaufman, mas opera uma mudança cirúrgica que faz toda a diferença: a família é a célula microcósmica na qual a sua câmara se fixa. E o “medo do Outro” – apesar de tudo, nos dois outros filmes, o medo é comunal – passa a ser o medo de um “igual”, logo, uma assustadora derivação do “medo de si”. Não há grandes contemplações neste filme e percebemos isso quando a criança pequena da família, aquela que vê antes e mais longe que qualquer adulto, se revela já tomada pelo “grande esquema”, parte do grande exército em marcha que se prepara para repovoar e readministrar a Terra.
A violência deste filme tem a ver com o invisível, com aquilo que corre dentro da personagem que se aproxima, que se avizinha. O filme de Kaufman, por seu lado, explora a viscosidade quase kafkiana das metamorfoses corpóreas – e é, na realidade, suficientemente expressivo nestes instantes. Ferrara prefere explorar a violência da “religiosidade familiar”, colocando às personagens no filme – e depois ao espectador fora da sala – a questão: conhecerás bem quem te trouxe ao mundo? Esconderá o amor “em família”, o amor “do sangue”, um programa de acção (de invasão…) que, de algum modo, não te inclui? A habilidade de Ferrara não está só na forma como põe em cena e filma esta história – será, provavelmente, o Body Snatchers melhor filmado dos três – mas precisamente nesta violência que se exerce sobretudo “por dentro” – e a sua exteriorização é mais “vocal” do que corpórea, desenvolvimento brilhante para quem ainda se lembra do desenlace do filme de Siegel e, talvez mais neste caso, de Kaufman.
Acabado este longo excurso, tenho a dizer que, com este filme, estão encontradas umas tantas imagens eloquentes sobre quão equívoco pode ser programar-se cinema com base em critérios não cinematográficos. Body Snatchers passou “com bolinha”, mas a sua violência é reflexiva, não objectiva, isto é, não há “exploração” de um “horror corpóreo” que justique o cartão inicial: “o filme que se segue pode ferir a susceptibilidade dos telespectadores”. Ao pé de um Cronenberg, e do seu History of Violence, o filme de Ferrara passa por excessivamente alegórico e “inconcreto”. A “bolinha”, atribuída sabe-se lá por quem, guiada vai-se lá saber por que princípios, diz-nos, contudo, que estes filmes falarão em conjunto a qualquer espectador e que este, entregue a si mesmo, encontrará o tal “programa escondido” que os liga e torna coerentes entre si. Eu, enquanto espectador e cinéfilo, constato que o novo 5 Noites, 5 Filmes se parece cada vez mais com uma cópia “inexpressiva” ou um corpo apenas próximo na aparência (nominalmente idêntico, pelo menos) do verdadeiro 5 Noites, 5 Filmes, aquele que se organizava tematicamente, com um mínimo de exigência, conhecimento e sentido crítico, por autores, períodos históricos, novas tendências…
No Facebook, perante a indignação gerada na página do movimento/petição por uma melhor programação de cinema na RTP2, conseguimos obter uma reacção por parte do grupo oficial do 5 Noites, 5 Filmes. Esta oportunidade de entrar em diálogo com aqueles que deverão ser o(s) programador(es) da estação foi salientada por todos como um avanço significativo no que era, até há muito pouco tempo, a prática corrente da RTP2, traduzida num completo desprezo pelo seu auditório. Contudo, a substância dessa resposta (a tal substância das coisas…) mostra que, no limite, muito mudou, para ficar tudo mais ou menos na mesma. “(…) por que não ir pela bolinha vermelha? É uma expressão correntemente usada: ‘olha que o filme tem bolinha vermelha’. Nem sempre os ciclos apresentados têm de ser sobre a guerra, sobre o amor, sobre monstros ou qualquer outra designação semelhante. Muitas vezes não podemos fugir a grandes temas, mas no 5 Noites também queremos democratizar ao máximo os filmes e aproveitar para exibir películas menos conhecidas”. A democratização aqui, na resposta que transcrevo, é vista como condição sine qua non de um empobrecimento dos critérios de programação, empobrecimento esse visível na opção de seleccionar filmes de acordo com “expressões correntemente usadas”. Será que ainda vamos ter de levar com um ciclo sobre “pára lá de fazer fitas” ou “ganda cena” ou “deixa-te de filmes”?
A minha resposta é: não, não vamos ter mais ciclos destes. Por que os programadores acataram as nossas críticas e resolveram refinar os seus critérios ou, simplesmente, guiar-se definitivamente por uma missão pedagógica de “formação do olhar” e transmissão de conhecimento através das obras mostradas? Não, não se repetirão coisas como estas, porque o mesmo grupo, na sequência da referida troca de mensagens entre nós, público, e eles, programadores, decidiu pura e simplesmente abdicar de programar. Caíram as aspas na palavra “programar” para passar a haver o nada. Ora leia-se na íntegra o comunicado do 5 Noites, 5 Filmes, publicado dia 7 de Maio na sua página do Facebook: “Como devem ter reparado, esta semana o 5 Noites não apresenta um tema específico. Chegámos à conclusão de que nem sempre temos de ter um fio condutor numa semana de cinema. É claro que ter um ciclo identificado é sempre mais chamativo, mas nada na génese do 5 Noite, 5 Filmes nos coloca estas barreiras que, em alguns casos, podem ser bastante limitativas./Na semana passada recebemos algumas críticas por termos dado o tema ‘Filmes com bolinha vermelha’ às nossas sessões de cinema. Como dissemos na altura, registámos as vossas ideias e o assunto foi discutido internamente./No fundo, nem sempre vamos poder agradar a todos os fãs de cinema da RTP2, pelo que em alguns casos voltaremos a fazer um 5 Noites com filmes sem que haja um tema subjacente aos mesmos. É também uma liberdade que temos e que nos permite atingir vários públicos numa mesma semana, democratizando ao máximo a passagem de bom cinema na RTP2.”
A maldita democracia – que, bem saudámos, se pôs a funcionar! – deu nisto: face à crítica, o programador resolve não corrigir ou aprimorar o seu trabalho, mas simplesmente desistir dele. Justifica-se de novo esta opção a favor de “mais democracia” e, fica claro, mais facilitismo. Como é “limitativo” programar (com critérios), então deixa-se de programar (com critérios). Sendo assim, privilegia-se uma exibição aleatória de cinema, isto é, confundindo de novo caos com pluralidade, democratiza-se enfim a programação de cinema do canal. A construção deste raciocínio é, obviamente, preocupante e não pode passar em claro a qualquer contribuinte do Estado e/ou espectador da televisão pública.
Tão má quanto a construção deste raciocínio – de uma pobreza e facciosismo alarmantes – é a sensibilidade revelada no trato com os seus espectadoes, quando estes são apelidados de “fãs do cinema”, como se estivéssemos a falar da organização de um concerto do Justin Bieber, ou de um serviço de reposição de produtos num supermercado… Como se estivéssemos a falar de consumidores e não de cidadãos, de tudo menos do projecto de um cineclube teledifundido, que esteja disponível para suprir a nossa, cada vez mais acentuada, necessidade de ver e aprender a ver cinema. Nestes tempos de destruição da rede comercial de salas de cinema em todo o país e face às dificuldades por que a Cinemateca Portuguesa atravessa – nela, por sinal, a aleatoriedade programática é assumida, neste momento, como uma forma de protesto ou como o indício mais visível da sua degenerescência interna… – esta deveria ser uma missão a ser levada ainda mais a peito pelos programadores de cinema do segundo canal, não fossem estes “os violadores” que Ferrara ainda não teve ocasião de filmar.