Juha (1999), o filme mudo de Aki Kaurismaki, parte de um principio muito simples, e do reaccionarismo positivo que encontramos quase sempre na obra do finlandês: a pureza, a beleza e a pura e simples qualidade do cinema enquanto arte desapareceram. Na multiplicidade de referências que Kaurismaki usa encontramos não apenas uma homenagem quanto uma tentativa de recriar o paraíso perdido, de recuperar o cinema na sua beleza máxima e no seu passado glorioso – um pouco há maneira do que faz no mais recente Le Havre (2011), através do passado do cinema francês de Renoir, Carné ou Becker.
Porém, apesar de outras referências que se possam apontar (o Déjeuner sur l´herbe de Renoir, a primeira metade clara e a segunda metade escura que invertem o paradigma do On Dangerous Ground de Nicholas Ray, o carro de nome Sierck, o apelido alemão daquele que se tornaria Douglas Sirk ao chegar ao Estados Unidos), referência maior é francamente óbvia: o Aurora (1929) de Friederich Wilhelm Murnau.
Como a obra suprema do realizador germânico, também esta é a história de um membro de um casal (a genial Kati Outinen, habituée do cinema de Kaurismaki) que, insatisfeita com a vida idílica que leva, opta pelo sonho de uma vida mais excitante na cidade. Como de costume, o que Kaurismaki faz é demonstrar o lado negro do sonho, seja do socialismo nórdico ou da simples ingenuidade sentimental de uma personagem que, como os jovens de They Live by Night (Os Filhos da Noite, 1949) de Nicholas Ray, nunca foi convenientemente apresentada ao mundo em que vive. Assim, esta é uma obra que funciona numa sucessão de dicotomias, campo-cidade, claridade-escuridão e, no limite, Bem-Mal e que, por modo a fazer valer o seu ponto de vista, se apropria de uma estética primária, quase griffithiana, inclusivamente mudando um dos pressupostos do cinema de Kaurismaki: o modo como a representação dos actores, longe do naturalismo de Varjoja paratiisissa (Sombras no paraíso, 1986) ou Tulitikkutehtaan tyttö (A Rapariga da Fábrica de Fósforos, 1990), mimetiza eficazmente o over-acting de uma Lilian Gish ou de uma Gloria Swanson. E fá-lo eliminando uma sub-intriga do livro (a da sogra que infernizava a vida de Marja) reduzindo a narrativa ao triângulo amoroso mínimo para a trama se desenrolar. Afinal de contas, o cinema de Kaurismaki sempre foi uma questão de economia e não é a mudança estética que altera esse facto.
É esse, então, o golpe de asa de Kaurismaki: o de mudar toda a poética mantendo a política do seu cinema. Simultaneamente dentro e fora da sua obra, Juha é também um filme capaz de nos brindar com alguns dos momentos superlativos. Um exemplo: quando, numa cena que, ao incluir um micro-ondas, situa exemplarmente o filme na contemporaneidade, compara a comida caseira feita no período idílico com a comida congelada servida na fase de desamor. Porque para o portista Aki Kaurismaki, decerto felícissimo com a vitória do passado sábado, até a comida é uma questão de moral.
Juha passa amanhã, dia 14 de Maio (quarta-feira), às 21h00, no Campo de Santa Clara.