A crítica, o anonimato, a autoria, “a pele do mundo”, a Natureza e o Homem. Estes foram alguns dos assuntos abordados na parte I da conversa com o realizador de Leviathan (2012), filme que entre estas partes acaba de ser consagrado pelo IndieLisboa com o Grande Prémio Cidade de Lisboa. O objecto era de tal modo inclassificável que as perguntas foram-se multiplicando e o entrevistado cauteloso e auto-consciente que estava a ser Lucien Castaing-Taylor acabou por ceder o lugar a outro, mais solto e bem-humorado.
Entendi Leviathan não como um documentário, mas como um “filme de terror” hardcore. Para mim, este retrato da indústria pesqueira do Atlântico Norte revela-se, de máscara tirada, um The Texas Chainsaw Massacre (Massacre no Texas, 1974/2003) do alto mar. A comparação pode parecer aberrante, mas se nos recordarmos da sanguinolenta sequência do massacre de peixes perpetrado por homens de rosto escondido, ou das redes metálicas que parecem sair de um filme “sado-maso” ou de um filme torture porn de Hollywood, ficaremos mais próximos daquilo que quero dizer e da impressão que quis transmitir a Lucien. Perguntei-lhe se analogias semelhantes (pretendidas ou não) não serviriam para trair a categoria tradicional do filme documental e se não terão sido suscitadas por essa consciência: a de estar, por assim dizer, a levar Leatherface para o fundo dos mares. “Eu penso que tentámos conscientemente trair a categoria tradicional do documentário. (…) Eu não consigo assistir a documentários, não consigo. Não serei suficientemente intelectual, não sei. Não consigo estar sentado numa sala a ser servido de informação às colheradas. Prefiro lê-la, por mim mesmo, num jornal ou num livro”. E com o terror: terá havido uma tentativa de o “documentarizar”? “Não que quiséssemos fazer um filme de terror para subverter a categoria de filme documental, nós simplesmente não investimos nada nesta categoria. Nós procurámos destruir a categoria, mas, por outro lado, qualquer filme é uma espécie de documentário, qualquer filme é uma espécie de ficção. A distinção entre filme experimental e avant-garde também não faz muito sentido, para mim”.
Face a este desconforto com tantas (ou todas as) categorias cinéfilas, fiquei curioso em saber como via Lucien o facto de ter o seu filme em competição (que acabou por vencer) num festival chamado indie, diminutivo de independent. “Não sei o que isso quer dizer… Mesmo no mundo de Hollywood, (…) estes estúdios independentes estão todos lá, em Los Angeles. E eles todos são Hollywood num dia e independentes noutro. (…) O que significa ser-se independente? Só significa que eles ‘ainda não o conseguiram'”. Numa cidade com mais um festival chamado DocLisboa, outro ainda chamado MOTELx, não caberia Leviathan – por fugir às tais categorizações típicas – em qualquer um deles? Qual seria o habitat mais justo para um filme como este? Pus Lucien na pele de programador e a resposta surpreende: “Poderia pôr no festival de Paulo Branco, o do Estoril, para a burguesia dos subúrbios assistir [risos]”. Talvez programador também não seja a pele certa para Lucien – a sua pele é, de facto, o mundo -, mas também é curioso que se assuma como um “cinephob”. “Eu nunca vi The Texas Chainsaw Massacre. Eu sou um cinéfobo, não vejo muitos filmes. Neste hotel [Hotel Florida], os quartos têm nomes de filmes e eu só devo ter visto 10%. Provavelmente isto é uma grande limitação para o que estamos a fazer”.
A questão de se (dever) ser ou não (dever) ser um realizador cinéfilo não é de hoje, mas talvez a ausência de conhecimentos sobre uma linguagem tão canonizada como a que encontramos em filmes como o “massacre original” de Tobe Hooper ou o remake produzido por Michael Bay e realizado por Marcus Nispel pode ter jogado a favor da criação desse estranho não-lugar onde navegam os barcos, os animais e as pessoas de Leviathan. A monstruosidade pode ter vindo do abismo da ignorância… uma ignorância apenas e só cinéfila, a coberto de um saber científico e uma elaboração intelectual que são mais do que visíveis nas palavras de Lucien – e que as intervenções públicas da sua companheira Véréna também evidenciam. “[Em relação ao cinema] sentimo-nos iletrados. Talvez alguém já tenha feito isto e nós não sabemos”.
A conversa em torno das categorias cinéfilas não parecia ser “a praia” de Lucien, o que me conduzia a uma interrogação minha em torno da categoria (estética) do belo. Na sessão Q&A e nalgumas críticas que li, deparei-me mais do que uma vez com a expressão “a beautiful movie”. Continuando a pôr as coisas à superfície, num campo sensorial e intuitivo, devo dizer que me causa estranheza esta formulação, mesmo quando surge como uma forma retórica – igual a tantas outras – para se elogiar o trabalho de alguém. “Eu, pessoalmente, depois de fazer um filme, não quero ter nada a ver com ele. Eu só quero ser anónimo. Preferia ser poeta, mas não sei escrever. Quando as pessoas me congratulam ou criticam, não interessa; só o facto de estarem a falar sobre o filme, me dá vontade de fugir. Adoro que as pessoas vejam o filme, mas não quero testemunhar e saber disso. Mas isto é algo patológico e nevrótico, um problema meu que tenho de resolver, mas não sei se conseguirei”.
Com efeito, Leviathan é uma experiência audio/visual extrema, muitas vezes fisicamente desagradável. Que tivessem recomendado ao meu colega de site João Lameira um Vomidrine, minutos antes da sessão começar, poderá – num nível anedótico – ser o bastante para que o leitor que ainda não passou por esta experiência consiga antever o que lhe espera. O elemento do horror não vem só desse trabalho voluntário ou, pelos vistos, involuntário sobre os “lugares comuns” do cinema de terror; o elemento de horror está na própria viagem que Leviathan nos oferece. Então: “a beautiful movie”? Como assim? “Chamar “belo”… não é por chamar “belo”, é por estarem a falar de um filme que eu fiz com a Véréna. Quando dizem que é “belo”, se é algo como num filme de terror, essa aparente contradição não me chateia. [Mas] há vários momentos belos. O momento mais belo, para mim, é quase um plano fixo. Véréna filmou-o. É o da cabeça decepada do peixe. É belo como Goya, Bruegel e Bosch são belos”.
Véréna Paravel surge na conversa várias vezes e isso não é acaso nenhum: para além de co-realizar com Lucien, foi graças a ela que Leviathan passou de um projecto quasi-avant-garde, ensaio visual mudo na vertigem de um Peter B. Hutton (talvez…), a um filme audiovisualmente penetrante e espectacular, quase na acepção hollywoodesca do termo. Lucien caracteriza a relação de trabalho não como dialéctica – arrisquei eu este adjectivo – mas orgânica. “Nós divergíamos de vez em quando, mas eu não dizia uma coisa e ela dizia outra coisa e havia uma síntese. (…) Mesmo se o fizéssemos individualmente, nós teríamos discussões dessas connosco mesmos”. Palavras interessantes, porque Sweetgrass (2010), o filme anterior de Lucien, co-realizado não por Véréna mas por Ilisa Barbash, também é um trabalho a “duas mãos”, ou melhor, “a quatro olhos”. “Neste momento, trabalho com Véréna até morrermos. Ou até um de nós não querer mais fazer filmes. É pouco comum. Muitos amigos perguntam-me: como consegues? (…) Nós não temos “egos” de realizadores, a tentar reclamar a autoria do filme. Também qualquer um de nós tem muitas dúvidas”.
O leitor já percebeu que também o título do filme anterior de Lucien (e de Ilisa Barbash) não surge por acaso nesta conversa. De novo, parece-me que é o “elemento de horror” que liga Sweetgrass a Leviathan. A constante ameaça dos lobos e ursos tal como as imagens dos corpos despedaçados das ovelhas ou os impropérios que um dos pastores dirige às ovelhas e às montanhas fazem raccord com o horror vivido no alto mar, sob ameaça do tão temido Leviatã. Será que é esta a ideia-charneira no seu cinema: a da Natureza como domínio do mal, da selvajaria e, sobretudo em Leviathan, do caos e do lixo, mesmo que o mais belo dos lixos? “Talvez. Também em Foreign Parts (2010) há violência. Há muita violência nos três filmes. Em Sweetgrass, quando Pat perde as estribeiras e começa a injuriar… isso é uma violência simbólica. (…) É cómico porque ele injuria como todos nós faríamos, da maneira como nos filmes ficcionais as pessoas injuriam. Mas nos documentários, raras vezes as pessoas falam desta maneira. Os documentários argumentam estar mais próximos da verdade, mas a verdade é que as pessoas estão sempre a tentar parecer o melhor que podem, procurando fazer propaganda de si mesmas”.
Para além dessa dimensão simbólica, Lucien acrescenta: “Mas também há violência física, violência sobre o espectador, como o som das ovelhas. (…) Há uma violência acústica – próxima da que acontece no barco em Leviathan – em Sweetgrass. Não é uma [visão] pastoral, bucólica, romântica [da Natureza]. Também na cena do cisalhamento da pele das ovelhas parece que estas estão a ser abusadas ou violadas pelos homens. (…) Acho que nós fazemos parte desta Natureza, nós fazemos parte desta violência. Se calhar de modo mais violento, porque negamos a participação nessa violência. A violência está dentro de nós, não fora de nós”. Aproveitei esta “viragem para dentro” para inserir a inevitável e enjoativa questão: “e projectos para o futuro?”. Na sessão Q&A, Lucien já tinha revelado a um espectador curioso que estava a pensar fazer um filme passado inteiramente dentro do corpo humano (vivo ou morto, ainda não sabia…). Aliás, a propósito desta ideia, teceu ali um elogio rasgado àquela que viria a ser uma das curtas premiadas neste recém-terminado IndieLisboa 2013: Da Vinci (2012) de Yuri Ancarini, viagem ao interior do corpo humano. Mas adiante: voltando-nos de vez para o futuro, como será o próximo passo dado em conjunto pelo inseparável casal Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel? Mais um horror movie encapotado? “Provavelmente”, respondeu a medo.