Abrir este texto com um rio é elán poético mas é sobretudo a certeza de que existe uma relação vivencial fundante deste com o humano que a sétima arte nunca deixou de reconhecer. O cinema captou esse encontro como fluidez, como ciclo de vida (Renoir claro) mas também como espaço de provação (Hawks, Herzog, Coppola…) A chegada do cinema moderno permite também perceber que a forma do rio é algo em constante movimento, cuja identidade se marca precisamente nesse passar constante de uma água que nunca é mesma.
Ao ver Um Rio Chamado Ave (2012) de Luís Alves de Matos, outro projecto produzido no âmbito do Estaleiro, percebemos precisamente que quando o cinema mostra essa “forma informe” está precisamente a definir a essência ontológica do movimento no cinema, o escapar-se (o fluir) das imagens na montagem. É certo que o realizador anda à “caça” de uma qualquer essencialidade do rio com os seus travellings lentos, o esperar pelos vapores da grande massa de água, a vitalidade e força da foz na forma como distorce as folhas. Mesmo nos pescadores que vemos por breves momentos ou na indicação antropológica da canção de amor que se ouve no final… Mas esse espaço telúrico, quase místico, o cinema não o ocupa sem ganhar outras coisas. Um processo de ocupação do líquido que mostra o rio como espaço de profundidade para dentro (para baixo) mas também para cima. Um chão que dá o tecto, a superfície que dá a profundidade (de campo): lembro os planos do espelhar no céu no rio, a mesma lógica invertida nos planos. Ganhamos também a fluidez do líquido elevado ao máximo quando o rio entra (pela montagem), no verde, na relva. Ganhamos o jogo do campo/contra-campo de um mundo feito cinema: o rio “olha” a terra tanto quanto o cineasta olha o rio. Neste todo percebemos que as imagens parecem ir para onde quiserem e nesse escapar da identidade, de uma natureza que não se pode apanhar, tanta dignidade há no lixo, na velha televisão meio submergida pelo rio, como nos peixes que vêm à parte mais baixa do rio para morrer. Belo filme, um dos melhores que vimos nesta edição do Panorama.
O filme de Pedro Flores, Cinzas, Ensaio Sobre o Fogo (2012), parte de um impulso de observação semelhante. A aldeia de Cubalhão no Gerês e seus rituais rurais com particular incidência nos agregadores antropológicos ao nível do elemento. O fogo mágico e seus resíduos visuais – a cinza, o fumo – como sinais de um espaço que se constrói a partir de uma renovação pragmática (e no qual a câmara de Flores, com a ajuda da música de Tó Trips dos Dead Combo, parece procurar uma qualquer dimensão sacrificial). Mas também o leite, o pão, o vento, os moinhos, a erva. Se não existe a recriação “straubiana” do espaço como num belo filme visto o ano passado no Doclisboa [falamos de Arraianos (2012) de Eloy Enciso] há um esforço pela conversão do bucólico num olhar pictorial, de construção precisamente ensaística onde o espaço é um espaço de criação intemporal. Escuridão, lentidão, neutralidade são nós de força desse circuito que vai do elementar ao humano num mesmo gesto. Outro belo filme.
Desta sessão dia 10, sexta-feira, à 19:00 no cinema São Jorge faz ainda parte Monsantempo (2013) de Tarek Raffoul que não vimos e Terra (2013) de Pedro Lino. Este último é talvez o menos conseguido dos três e isto porque a curiosidade natural pelas Chegas de Bois na região de Trás-os-Montes (um ritual pagão onde os habitantes locais assistem numa zona árida à luta dos animais) não se consegue desprender da intenção de registo de uma tradição ameaçada pelo tempo (mais uma vez é a questão da onda que recua e que é preciso fazer arquivo) mas também esta ideia de que há algo a dizer. Dizer que as bestas estão enclausuradas [os planos muito fechados dos bois a fazer lembrar Bestiaire (2012) de Denis Côté] mas também o uso dos seus grunhidos. E “dizer” que o olhar moderno e urbano “não valoriza” convenientemente estas tradições genuínas. Quer dizer, isto não está taxativamente no filme de Pedro Lino (seria injusto dizê-lo) mas é o que dele depreendemos a partir das imagens que nos mostra. Pena é que o filme não se mantenha no registo da fruição estética da claridade, do pó, do salto muito interessante de escalas. Assim talvez o lettering vermelho nos fizesse lembrar mais Lisandro Alonso…