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À pala de Walsh
Dossier, Raoul Walsh, Herói Esquecido 0

Por bares, speakeasies, clip-joints e honky-tonks…

De João Palhares · Em 22 de Maio, 2013

“No, politicians aren’t New Orleans. For the real story you have to go to the real people. The people of desire, on Piety Street, the people of piety on Desire Street, and the people of good intentions on Bourbon Street. My street. My favourite street. It has more drifters, grafters, guzzlers and guts than any street in the world. Buccanneer’s Alley. Thieve’s Alley. And this stretch: the black-eyed called Glory Alley. Glory Alley! A world of square guys with round edges, where love and larceny, courage and crime, nobility and amorality come out of the same barrel. Beer barrel or whiskey barrel. Preferably bourbon. Life is fundamental to ‘mugs’, ‘pugs’ and ‘lugs’. You settle it with fists or rationalize it with dreams out of a bottle.  Yet, in the bottom of life’s gutter you can find – if you look hard enough – more beauty, dignity and sensitivity than anywhere else in the world. ‘Has-beens’, might-have-beens’, ‘never-wases’… And champions!” 

John McIntire, em Glory Alley (1952)

“Boy, there’s nothing like pure nutritious whisky!”

Edward G. Robinson, em Manpower (Discórdia, 1951)

Leaning against the ship’s railing, she looked up toward the horizon as if to penetrate what laid beyond. “I like to stand here”, she told him, “it does me good. Makes me realize I have to look ahead. Only ahead. Never back.”

Jane Russel, em The Revolt of Mamie Stover (Mulher Rebelde, 1956)

“All he ever said to any actor would be one of two things, “Roll ‘em boys and put a lotta life in it” or “Nice and easy, now”. That’s all he said. But he knew when to say each one”.

Richard Erdman, sobre Raoul Walsh

Jacques Rivette dizia que Raoul Walsh – juntando-o a Vincente Minnelli e George Cukor – só se devia levar em conta quando se interessava intensamente pela história e pelos actores. Não se tem que concordar. Ele não disse quantas vezes lhe viu esse interesse intenso, e se calhar até nem é muito importante, porque com a mais de uma centena de filmes que Walsh fez, mesmo estando metade perdida, as probabilidades estão muito a seu favor. Mas isto tudo afinal era só um trabalho, que se a coisa corresse mal podia sempre “ir para a fazenda, sentar-se no alpendre e contar o gado”, como disse uma vez aos Cahiers. É que há coisas mais importantes que o cinema. Não deixar mal os amigos. Ir a bares, ir a sítios e mais sítios, desbravar mundo e conhecer gentes. Apaixonar-se. Viver a vida tão bem e de tal maneira que até a Morte havia de tremer e vacilar em o levar, como dizia Charles Bukowski. Se algo disto passa para os seus filmes – e passa -, não estamos nada mal servidos.

Quando The Naked and the Dead (Os Nus e os Mortos, 1958) começa, estamos no Jungle Bar em Honolulu: os soldados do pelotão de Croft (Aldo Ray) estão de licença no Hawai, rodeados de fumaça e canecas de cerveja. O sargento Croft (um dos muitos heróis-colosso dos filmes de Raoul Walsh) insulta e cospe em quem se aproxima, enquanto os subordinados se divertem a beber e a engatar as mulheres do tasco. Está a tocar o Zing! Went the Strings of My Heart e a personagem de L. Q. Jones (character-actor de Peckinpah, Siegel, Fleischer, Mann, Boetticher…) elogia a namorada, a.k.a. ‘Jersey Lili’, e pede aos companheiros que guardem os aplausos para quando começar o número dela. Quando vê a polícia à porta, vai numa correria desenfreada para os bastidores daquele honky-tonk que podia muito bem ser o The Bungalow onde trabalhava Mamie Stover (Jane Russel) e em que também havia um marinheiro que corria com rolos e rolos de bilhetes na mão para ver as raparigas que lá trabalhavam. Como fazia o mesmo L. Q. Jones em Battle Cry (Antes do Furacão, 1955) – L. Q. Jones era o nome dessa personagem e é o nome artístico que Justice Ellis Mcqueen, Jr. usa desde então. Ou o Wallace Ford de O.H.M.S. (Glória que Redime, 1937), filme que aliás começa exactamente como The Naked and the Dead, nem a perna a espreitar pelas cortinas do palco escapa.

A perna em Dead é de Lili St. Cyr (stripper e dançarina cuja vida dava um filme de Walsh), a ‘Jersey Lili’, e aparece ao som dos batuques que calam tudo e fazem entrar a audiência em transe quando St. Cyr entra em palco com os seus rodopios sensuais e feitiços exóticos [dança em potência comparável às de Cyd Charisse e Debra Paget no Party Girl (A Rapariga daquela Noite, 1958) de Ray e no Das Indische Grabmal (O Túmulo Índio, 1959) de Lang]. A polícia nem espera que ela tire a roupa para fazer a rusga, porque a obscenidade já está toda praticada e cometida.

E esta primeira cena é, talvez, a melhor para entrar neste canto do mundo de Walsh, mundo que é vasto nas suas dezenas e dezenas de filmes e vai do Hawai à Russia e de barcos às grandes florestas do Oregon, mas que abre espaços nas suas narrativas secundárias para que se possam confundir personagens de uns filmes com personagens de outros da sua obra. Em choques constantes umas com as outras. Como a “proto-Mamie Stover” desesperada de Battle Cry, que tenta roubar um dos fuzileiros num bordel ou a estória da irmã de Joan Bennett em Me and My Gal (Eu e a Minha Garota, 1932), que vive num impasse amoroso entre dois homens, tal e qual a Fay (Marlene Dietriech) de Manpower (Discórdia, 1941) e, como a coisa em Walsh ultrapassa géneros, tal e qual o James Cagney com as mulheres de praticamente todos os filmes que fez com Walsh [ou todos, se lermos White Heat (Fúria Sanguinária, 1949) de outra maneira]. E, voltando a Dead, não é só a primeira cena que nos permite melhor aceder ao universo walshiano. É o próprio filme que, como é desmedido e retumbante, engloba, como as melhores obras de Walsh, todos os seus temas. É “filme-mapa”, filme da paixão pela filmagem de exteriores, e tem o herói walshiano por excelência, um sargento despedaçado e condenado a expurgar-se em cumprimento do dever, rodeado de belas paisagens, porque a guerra é só uma desculpa. Bem como a heroína walshiana que ressoa nos bastidores, através de Lily, que podia ser Mamie ou Fay ou Angela (Glory Alley) ou Jean [The Roaring Twenties (Heróis Esquecidos, 1939)], as mulheres-irmãs que povoam os palcos principais dos seus filmes. Num bar de má fama qualquer – “interior, bar, noite”, dirá o guião -, numa cidade qualquer, a encontrarem-se olhando para a frente, e sempre para a frente, nunca para trás.

As mulheres e os homens corajosos que se encontram e desencontram, se entendem e desentendem, se amam e se matam, se vendem e se compram na Ed’s Chowder House, no McComb’s, na House of Chan Lo, no 39 Club e no Nicky Tareska’s. Nigger Joe’s, Flanagan’s, no Henderson Club, depois transformado em Panama Club. O Joe’s, a Ace Brewery, o Bungalow, o Midnight Club, o Bamboo Club e o Flanagan’s… Os bares, speakeasies, clip-joints e honky-tonks de Raoul Walsh.

***

He lied and I listened,

that’s how my simple story goes.

Yeah, he lied and I listened,

and asked me was I thrilled 

way down to my toes.

Wow, whoe… how his eyes glissened

When he said ‘Angel, are you mine?’

And naturally I lied and he listened

Oh, isn’t love just too, too, divine?

Marlene Dietrich, em Manpower

Alguns filmes de Walsh constroem-se por canções. Por razões diferentes. Às vezes são trabalhadas pelas próprias personagens, como em Strawberry Blonde (Uma Loira com Açúcar, 1941), quando Biff pede ao cantor da banda para mudar o primeiro verso de The Band played on para “Biff Grimes would waltz with a strawberry blonde” e conseguir impressionar Virginia, a loira morango; ou como em The Tall Men (Duelo de Ambições, 1955), onde Jane Russell vai cantando versos diferentes, que ilustram a hesitação dela entre o homem que “dreams too small” e o que tem tudo mas não tem nada, até chegar a uma decisão.

É normal que em Manpower a coisa seja ligeiramente diferente. Fay, por aquele ser um mundo de homens e por não acreditar no amor, trabalha num clip-joint, o Midnight Club, e torna-se cínica. Não tem orgulho no que faz, mas não se recusa a tomar parte e lucrar das armadilhas que estes pousos constroem para os clientes. Usa a beleza como arma, faz com que os homens paguem muito não lhes dando nada em troca e masca uma chiclete insolentemente encostada ao balcão enquanto canta “oh, isn’t love just too, too, divine?”. A letra quase nem se ouve com o basqueiro dos idiotas que pensam que vão foder nessa e noutras noites. É a vingança secreta dela. Abater o homem que procura estes sítios, mantendo um ciclo que é alimentado por mentiras. E se a canção é de uma ironia enorme, que dizer do título do filme? Certo é que nesse mundo de homens a força invisível e insolente de Fay/Dietriech também se bate com o poderio físico dos amigos tornados inimigos que trepam postes de electricidade para ganhar o pão de cada dia e para se baterem por amor. Certo é também que as directivas walshianas “Roll ‘em, boys, and put a lot of life in it” e “Nice and easy, now” produzem muito mais combinações do que à primeira vista possamos calcular. Se não o prova Manpower, prova-o Strawberry Blonde, que complica a dualidade puta/santa, dizendo-nos que há quem não pareça puta e o seja (Virginia/Rita Hayworth) e quem o pareça mas não o seja (Amy/Olivia de Havilland). A descoberta é um jogo que se faz desconstruindo as aparências.

Quando Jim Blair encontra Mamie Stover a bordo do barco para lhe pedir desculpa outra vez pela “gutter talk” da noite passada com o capitão, ela, depois de lhe dizer para “go on living” (“sempre para a frente, nunca para trás”), tenta-lhe vender a história da sua vida. Ele diz-lhe que a estória dela já foi escrita. Jim sabe isto, mas Walsh também o sabe, porque já filmou essa estória várias vezes. Com Gloria Swanson em Sadie Thompson (A Sedução do Pecado, 1938), com Janet Gaynor em The Man Who Came Back (Do Inferno ao Céu, 1931), com Mae West em Klondike Annie (1936), com Ida Lupino em The Man I Love (1947), com Leslie Caron em Glory Alley. Enfim, a lista continua…

E não há diferença em relação à provação por que o homem tem que passar nos filmes de Walsh. Os palcos é que podem mudar. As batalhas e viagens de auto-descoberta das mulheres de Walsh podem também fazer-se (e fazem-se, muitas vezes) a cantar e a dançar em clubes nocturnos e bares do degredo. São os seus campos de batalha. As canções e as danças levam as mulheres e os homens às muitas mutações e transformações de carácter. É normal para eles e para elas acabarem por perceber tudo no momento em que um acorde ou uma letra os acorda para a vida. Veja-se como acaba Glory Alley, em que Louis Armstrong reabilita toda aquela gente com música, veja-se o lamento (só no olhar!) de James Cagney quando vê Priscilla Lane cantar It had to be you, lançando olhinhos ao outro homem – o amigo de Cagney, Jeffrey Lynn. Ou a epifania do mesmo Cagney ao som hipnótico e constante de The Band Played On, a música que vai acompanhando gradualmente as suas descobertas e resoluções. Veja-se Ida Lupino a cantar (dobrada por Peg La Centra) Why was I born e a dizer, no fim desse filme, o que pode ser um ditado comum a toda esta gente: “All of us are standing in the mud, but some of us are looking at the stars”. Esses “some” são a matéria-viva dos filmes do realizador. Retenha-se, ainda, o final de Mamie Stover: Jim vai ter com Mamie e uma das funcionárias do Bungalow põe o novo jingle a promover a imagem da ‘Flaming Mamie’. Ele ouve os primeiros versos e desliga o gira-discos. Ela aparece e recebe-o como se fosse um cliente até perceber quem é. Têm a última conversa e, quando ele se vai embora, Mamie volta a pôr a canção. Se, quando ouvimos a canção com Jim, conseguimos perceber que cada nota o fere como adagas, com Mamie o golpe é tão profundo que acaba por a fazer olhar tão para trás quanto lhe é possível. Através dos horizontes em azul de San Francisco e até Leesburg, Mississippi. Para regressar finalmente a casa.

There are no stars in the sky 

For the stars are all in

Mamie’s eyes

***

A noite vai alta e o pessoal junta-se para ver pernas aos saltos e beber até não poder mais. Canta-se muito, bebe-se e ri-se muito. Quem faz dinheiro com isto não tem ouvido para a música, bebe leite e quase nunca se ri. Podem ser uns sacanas boçais ou não. Podem perder-se de amores pela dançarina ou cantora preferida que os enriquece a rodo, ou não. Podem ter salvação, ou não. Walsh, como não podia deixar de ser, não se limita a um lado da história. Quer compreender todo o processo. Assim, documenta as ascensões de Errol Flynn e James Cagney, em Silver River (Rio da Prata, 1948) e The Roaring Twenties. Que podem ser os patrões sem escrúpulos de Petey Brown/Ida Lupino (e Mamie e Fay e Rose…) vistos noutra luz ou outras pessoas por completo. Depois da Guerra Civil e do Volstead Act, Mike Mccomb e Eddie Bartlett enriquecem sem regra nem lei e fazem a desgraça de muitos. Tomam-se por deuses e enganam os clientes e amigos para ganho próprio. Bartlett abastece as speakeasies da cidade, nos anos 20, com água misturada, como o champanhe do Bungalow de Mamie Stover, como de certeza também as bebidas do Midnight Club de Manpower. McComb abre um saloon no Nevada, chama-lhe McComb’s, e controla o destino dos subordinados até ao último golpe, de que só se arrepende por ser chamado à razão pelo advogado alcoólico de Silver City (Thomas Mitchell!) que, citando a bíblia, o compara ao Rei David.

As coisas não correm bem a nenhum dos dois, mas o pior destino está reservado ao Bartlett de Cagney, destino que o eleva ao panteão dos grandes heróis de Walsh, junto ao sargento Croft de Aldo Ray, à Mamie Stover de Jane Russell e a mais uns quantos, de certeza. (E à Fay de Marlene Dietrich se ela tivesse apanhado aquele autocarro… ah, se ela tivesse apanhado aquele autocarro…) O bailado pelas ruas até aos degraus daquela igreja, para cima e para baixo, é qualquer coisa de extraordinário. “As mortes não se podem filmar assim”. Tanto não podem como já não se filmam. Mas a uma personagem destas não chega morrer, a luta e a negação vão até ao limite absoluto, diz-se que não e grita-se até depois da morte. A própria Morte treme e tem medo de homens destes. Esqueça-se o ser realista ou não filmar uma morte assim, às tantas o problema é já não haver muitas personagens que mereçam uma morte encenada desta maneira.

Se calhar, Bartlett já sabia de tudo o que lhe ia acontecer quando viu Jean cantar e olhar para Lloyd. “She lied and he listened”. Ou então foi quando trocou o leite pela bebida e se juntou por uma vez à doce Panama, que sempre gostou dele. Se sabia, o bailado final foi o último “não” a Panama Smith e a última prova de amor a Jean Sherman. Mas quem é que consegue responder a isto com certezas?

“It had to be you… it had to be you…

I wandered around and finally found… the somebody who…

could make me be true, could make me be blue…

and even be glad just to be sad thinking of you…”

Priscilla Lane, em The Roaring Twenties

Com menos presença que estes dois soberanos, controlando as mesas, balcões e destinos doutros sítios e doutras vidas, temos o Nicky Toresca de The Man I Love, o Smiley Quinn de Manpower, o Chan Lo de Klondike Annie e talvez o Chuck Connors e o Steve Brodie de The Bowery (O Terror dos Cabarets, 1933). E, claro, a Kate de The Sheriff of Fractured Jaw (O Sheriff e a Loira, 1958), a Panama Smith de The Roaring Twenties e a Bertha Parchman de Mamie Stover.

Estas duas últimas personagens funcionam quase como um modelo para o que Jean e Mamie se podem tornar. Bertha passou pelo que Mamie está a passar durante o filme e é este trauma em comum que faz Mamie aceitar voltar para o Bungalow no último terço do filme. É também a figura materna da personagem de Russell mas tem já as rugas que materializam a decadência do que é ficar tempo demais num sítio destes. Não faz bem, deixa-se de acreditar em tudo. Pense-se na Fay de Dietrich com anos a mais nestas andanças e tem-se o retrato perfeito de Bertha Parchman.

Panama Smith não fez mal a ninguém. Como Bartlett, se calhar, estava só no sítio errado e na altura errada. No novo modelo social, já nos anos 30, deixa de haver lugar para eles. Sobra o Flanagan’s, onde se canta In a Shanty in Old Shanty Town sem que ninguém queira ouvir.

***

Well, I’m talking about all of you, barflies, that revel and wallow in sin. My message comes to you, straight from my heart and not from whisky or gin. The mothers that moulded your futures wouldn’t be proud of their sons if they saw you as others can see you! Just a barfly and a bum. You’re one of life’s many problems. You’re travelling the road to ruin. You’re bound to lose your battle with fools, so stop and see what you’re doing. Your philosophy comes out of bottles. Rum has made you its slave. They’ll soon kick you out in the gutter, right into a barfly’s grave”

Mae West, em Klondike Annie

Não há cantoras, patrões e patroas sem clientes, que são quem alimenta este esquema todo. Nas docas de Me and My Gal, o pescador de Will Stanton está sempre bêbado mas ninguém sabe como é que ele arranja as bebidas. Ou talvez se saiba, que não serão poucas as vezes em que ele decide pedir o troco ao Ed Riley da Ed’s Chowder House para comer o pequeno-almoço. O troco do dinheiro que não lhe deu. E quem diz pequeno-almoço pode dizer outras coisas. Ele faz parte dos “some” da frase de Ida Lupino e das “real people” da narração do princípio de Glory Alley. E bebe bagaço. Só pode. “Yeah? What you gonna do about it?” E aquele outro bêbado que quando ouve isto lhe cospe para a cara? É um esboço do Sargento Croft, 26 anos antes?

Danny Dolan (Spencer Tracy) só bebe café na Ed’s Chowder House. É lá que conhece a filha de Ed Riley, Helen. E entre passeios, pensamentos, wise-cracks e beijos, o que fica é a Helen de Joan Bennett a piscar-lhe (e a nós também) o olho. E não será verdade que não há mulheres dos filmes a piscar o dito como o fazem aqui a Joan Bennett e, em Strawberry Blonde, a Olivia de Havilland? Ou quando a Joan Bennett liga o gira-discos e se começa a abanar ao som da música. Meu Deus, é de nos apaixonarmos no sítio e no momento. Não haverá incentivo maior para visitar estes bares e esta gente. “Jake” e “”Xactly”, a nossa resposta a Ed Riley quando nos pergunta se queremos tomar uma bebida.

Pode ser que avistemos algumas destas personagens, porque elas não vivem só num país ou só num continente e andam mesmo por aí. Sem nome, sem importância, correm derrubando mesas para ir ter com as namoradas, tentam cravar uma bebida a desconhecidos, piscam-nos o olho e dançam e cantam o Ta-ra-ra Boom-de-ay aos saltos para nos lembrar desta bela cadeia de amores, descobertas, alegrias e tristezas que é a vida.

“Roll ‘em, boys, and put a lot of life in it!”

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João Palhares

"You are truly a pile of dog shit, Cardinal."

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