Muita gente se queixa (e com alguma razão) que fazem falta filmes adultos (feitos de e para adultos ≠ pornográficos) no cinema actual (principalmente no americano). Este Rabbit Hole (O Outro Lado do Coração, 2010), inteligente e muitíssimo bem escrito e interpretado, tocante mas não lamechas (outra maneira de estuporar o espectador), cruel e malsão quando tem de ser, é a resposta a essa “prece”, uma das excepções que confirmam a regra.
O senão desta bela é a realização de John Cameron Mitchell, o excêntrico cineasta de (ou o cineasta dos excêntricos) Hedwig and the Angry Inch (Hedwig – A Origem do Amor, 2001) e Shortbus (2006) que se apaga num cinzentismo (muito campo/contra-campo, muita previsibilidade) que, se desobstrui o caminho para o excelente texto de David Lindsay-Abaire, não o enaltece devidamente (fica a ideia de que Rabbit Hole poderia ter sido um grande filme e é uma pena que não o seja). Poder-se-ia culpar a teatralidade, uma vez que Rabbit Hole é uma adaptação de uma peça do próprio Lindsay-Abaire (o que se nota), só que é precisamente quando tenta ser mais “cinematográfico” (os flashbacks, os grandes planos dos actores a “existir”, na escolha da música “pungente”) que Cameron Mitchell diminui o seu filme. Às vezes apostar na teatralidade do cinema é a melhor solução – pense-se no Hitchcock (que defendia a superioridade do cinema-cinema até à última) de Dial M for Murder (Chamada para a Morte, 1954) ou na carreira como cineasta de David Mamet ou, sobretudo, no melhor Neil LaBute [o da trilogia ácida de In the Company of Men (1997), Your Friends & Neighbors (Amigos e Viznhos, 1998) e The Shape of Things (A Forma das Coisas, 2003)].
Não lembro o nome de LaBute por acaso: Aaron Eckhart, um dos seus actores-fetiche, tem em Rabbit Hole novamente (finalmente) um papel à medida das suas qualidades. Assim como Nicole Kidman, que, depois do magnífico Margot at the Wedding (Margot e o Casamento, 2007), é mais uma vez soberba como “megera em negação” (embora esta versão seja mais açucarada). Como também os secundários, Dianne Wiest à cabeça, certamente felicíssimos por lhes ter chegado às mãos um texto desta qualidade.
E esse é o grande trunfo de Rabbit Hole. O argumento de David Lindsay-Abaire ataca onde dói realmente, não temendo escarafunchar a ferida aberta (da perda de um filho, ainda criança), revelando as armadilhas e recuos da recuperação psicológica dos pais, ou apresentar os pequenos e grandes pecados das suas personagens, que não julga propriamente mas que também não condescende. Vem daí, muito provavelmente, a maturidade do filme, como também da falta de necessidade (vontade?) de explicar tudo até ao mais ínfimo pormenor (um bálsamo nestes tempos). Em Rabbit Hole, investe-se na crença do não-dito, do que fica por dizer, do que se diz a mais, do intuído, de tal maneira que se faz por vezes o espectador acreditar estar noutro filme (num de ficção científica, talvez), o que demonstra uma confiança inusitada (para estes tempos) nas suas capacidades intelectuais.
Muita gente se queixa que fazem falta filmes adultos no cinema actual. Eu até gosto muito de filmes infantis e adolescentes (de adolescentes de trinta anos). Mas muita gente acha que não há público para os filmes adultos (a distribuidora, por exemplo, demorou três anos a estrear Rabbit Hole em Portugal). Talvez tenha razão, o que é triste.