Louis Skorecki é um nome que dispensa apresentações no panorama da crítica e cinéfilia internacionais. Uma vez apelidado como o “ciné-crítico mais incorrecto de França”, começou a sua carreira na revista Cahiers du cinéma nos anos 60 escrevendo sob o pseudónimo Jean-Louis Noames, tendo partido com o seu amigo de infância Serge Daney para os Estados Unidos onde realizou longas e inestimáveis entrevistas a realizadores como Leo McCarey e precisamente Raoul Walsh. Também à semelhança de Daney, nos anos 80 começa a escrever para o Libération, tendo a partir da década seguinte dado especial atenção aos filmes passados em televisão com uma crónica intitulada Le Film. Para além de uma carreira de realizador e romancista (tendo esta última gerado grande controvérsia dada a “mensagem pornográfica das suas obras”) é na crítica que o seu estilo polémico e musical tem deixado marcas. Além de uma algumas crónicas que se podem ler compiladas em Les Violons ont toujours raison : Chroniques cinématographiques, 1998-1999, é em 1978 que assina os seus artigos mais conhecidos. Nomeadamente o “panfleto” publicado nos Cahiers «Contre La Nouvelle Cinéphilie» e este «Raoul Walsh et moi» que, num olhar único, funde dramaturgia e visão crítica e apaixonada sobre o realizador norte-americano. Actualmente, Skorecki mantém o seu blog pessoal, lançou recentemente um livro sobre Bob Dylan e assina uma crónica intitulada Moullet vs Skorecki na revista So Film.
Aqui deixamos a tradução inédita (autorizada pelo autor) de «Raoul Walsh et moi» por Carlos Natálio. Um especial agradecimento a António Rodrigues pela revisão da tradução.
Raoul Walsh e eu
1
Somos muitos a pensar que Golpe de Misericórdia (Colorado Territory) é o mais belo western de Raoul Walsh, talvez mesmo o seu mais belo filme tout court. Dito isto, O Último Refúgio (High Sierra), o mais belo Bogart, e sabemos como fez grandes filmes, é também o mais belo Walsh. O Ídolo do Público (Gentleman Jim), Objectivo, Burma! (Objective, Burma!), Sangue e Prata (Silver River), os três Errol Flynn mais flamejantes, são evidentemente os mais belos Walshes. Fúria Sanguinária (White Heat), com o epilético Cagney, é insuperável. E Os Nús e os Mortos (The Naked and the Dead), o Antes do Furacão (Battle Cry)? Dois filmes de guerra próximos da perfeição. E Todos Foram Valentes (Fighter Squadron) e Discórdia (Manpower), A Fera (A Lion in the Streets) e Jornada Trágica (Desperate Journey)? Do melhor. Vidas Nocturnas (They Drive by Night), a partir de Bezzerides, e A Caminho da Forca (Along the Great Divide) com Kirk Douglas também não estão nada mal. Uma Loira com Açúcar (The Strawberry Blonde), The Man I Love, Glory Alley são verdadeiros tesouros escondidos. Quanto a A Carga da Brigada Azul (A Distant Trumpet) e a A Escrava (Band of Angels) esses sim são sem exagero os dois mais belos filmes de Walsh.
Estes fazem dezanove filmes. Entre Abril e Maio de 2001 o canal por cabo TCM programou estes dezanove Walshes como complemento da sumptuosa integral que Dominique Païni organizou como sua despedida pessoal da Cinemateca. Tentaremos explicar porque é que estes dezanove filmes são indispensáveis, porque é que Walsh é ele próprio indispensável, porque é que ele ajuda a viver – como Baal Shem Tov, Jacob Taubes, Salinger, Chaplin, Tourneur, Sinatra, Billie Holiday e alguns outros, não muitos, menos numerosos do que possamos imaginar. Das centenas de filmes assinados por Walsh, feitos à aventura, entre o início dos anos 10 e meados dos anos 60, restam-nos 85. As cópias ainda circulam. Podemos vê-los na Cinemateca, no escuro, como ladrões de Bagdad.
-Tu queres dizer O ladrão de Bagdad (The Thief of Bagdad), não é querido?
-Sim, sim. A versão de 1922, não o peplum com o Steve Reeves.
-Tu és o meu rei. Eu sou a tua bela espia, a tua Esther.
-Sim, tu és a minha Virginia Mayo, a minha filha do deserto, a minha Ofélia.
-Vem, meu Hamlet, vem meu pirata querido.
-Já vou, já vou.
2
Vinte cinco. Quando tudo isto terminar vão ser vinte cinco walshes ou quase e quase todos de enfiada. Aposta idiota, aposta pretensiosa. Como que para provar que este disparate da política de autores, que faz tantos estragos entre os jovens idiotas de hoje, tinha (ou tinha tido) algo de bom. Era a sua juventude, um pouco de indulgência não faz mal a ninguém.
-De auto-indulgência, sim. Estou farta desta auto-paródia, deste arrastar teórico, destes conceitos pouco sólidos. Para mais ele nem sequer é professor.
-Não há nem aluno nem namorada, ele passa a vida a masturbar-se com cassetes a preto e branco da Catherine Langeais – disse-lhe.
-É o síndrome Miterrand, abandonado à própria sorte. Achas que ele já tem metástases?
O cronista sonhava demasiado alto. Se não tivesse a Lo/Lolita nas suas aulas privadas, também não teria os adolescentes nervosos o suficiente para lhe escrever estes diálogos com os quais sonhava todos os dias. No fundo esta é uma situação bastante walshiana, pensou. Walsh é o cineasta do dispêndio e da falta. Num caso, não tens nada e falta-te algo. No outro, gastas tudo e ainda sentes mais essa falta.
-A Clark Gable, n’A Escrava não lhe falta nada.
-Só podes estar a brincar, falta-lhe tudo. Não é o Rhett Butler do E Tudo o Vento Levou (Gone With the Wind) (uma coisa de mulheres, aqui entre nós, devias sabê-lo), é um gentleman que goza a vida, a sua juventude, o seu passado. Eu consigo compreender isto, é uma coisa de homens.
-Não compreendes nada, meu amor. Tu contas os pontos, só isso. S para Stevenson, K para Kafka, O para Ozu, R para David Roitman, o último grande cantor judeu dos anos 10. Queres que eu continue?
-Não estás a perceber, Claire. Não tem piada. A Escrava é o Imitação da Vida (Imitation of Life) elevado a 1000. É o primeiro filme noir a cores, é… é….é…
Ele calou-se, o sangue subiu-lhe às bochechas, sufocava. A Claire já não percebia, mesmo a Claire já não percebia. Ele balbuciou algumas palavras incompreensíveis. Ia voltar a falar d’A Escrava. Pela segunda vez, iria voltar a falar do filme. Nada estava perdido. Ela baixou os olhos. Ele adormeceu.
3
Naquela noite ele não tinha pregado olho. Os zarolhos tinham a sorte de só ter um olho, e às vezes só o utilizam pela metade. Como não se diz “dormir com meio olho”, temos de nos contentar em dizer, o que é literalmente inexacto, que Raoul Walsh só dormia com um olho. Era uma noite de Fevereiro, em 1958, para ser mais exacto, a alguns meses da estreia de Rio Bravo de Howard Hawks, que encerra, como sabemos, simbólica e materialmente a era clássica do grande cinema da decepção monocromática ou o cinema pura e simplesmente. Na manhã seguinte, era uma terça-feira, Walsh tinha de filmar uma cena difícil com Aldo Ray, que encarnava o complexo personagem do sargento Croft. Walsh ainda não sabia que Os Nus e os Mortos viria a ser o seu melhor filme de guerra. Nós, que lemos no passado, sabêmo-lo. Como fazer deste tipo sujo, deste miserável assassino racista, um herói? Anos mais tarde, Jean Curtelin escreverá na Présence du Cinéma, um jornal que não era propriamente de esquerda, sobre a solidão heroica desta bela personagem, sob um título desajeitadamente militante “Sargent Croft, petit frère”.
Aldo Ray estava só. Ainda que tivesse dois olhos não fecharia nenhum deles naquela noite. Aos 32 anos, Walsh tinha-lhe dado o seu papel mais terrível, o mais mortífero. Aldo Ray está habituado a representar personagens ambíguas mas agora tem medo. Este sargento Croft, como torná-lo humano? Como não fazer um monstro deste “soberbo e bruto guerreiro treinado para matar e para sobreviver”, como dirá mais tarde Jacques Lourcelles. Para ele, os japoneses são um povo inferior ele mata-os uma segunda vez, ele mata-os para além da morte. Walsh tinha feito 70 anos, sente-se inquieto mas sabe que Aldo Ray será perfeito. Dois anos antes ele viu-o em Nightfall. Ele viu o que a sua eloquência pouco eloquente, a sua voz velada e o seu ímpeto rouco davam a esta personagem de David Goodis e de Jacques Tourneur. Hoje, Tag Gallagher, um cretino americano, classifica sessenta Walshes nos Cahiers do Cinéma. Para Os Nus e os Mortos uma estrela. O olho de Walsh volta a fechar-se, a voz de Aldo Ray emudece. Cá está, um coelho que passa.
4
Três da manhã. Walsh levanta-se em sobressalto. Mesmo que o cinema para ele seja uma daquelas histórias para ver os músculos estremecer e os olhos brilhar, como quando montamos um cavalo selvagem, ele não consegue deixar de se perguntar o que é que aquilo vai dar, aquele confronto com a pequena Ida Lupino. O filme que eles começarão a filmar no dia seguinte é High Sierra que lançará a fabulosa carreira de Bogart. Quem o poderia prever, naquela noite sem luar? Ninguém, não há ninguém. High Sierra é uma obra-prima, um melodrama triste de um amor impossível de igualar (contudo, veremos como sete ou oito anos mais tarde, Colorado Territory ainda será mais belo), mas Walsh ainda não o sabe. Nunca o saberá, de resto, nada é mais óbvio. Em 1941, o ano desse thriller noir, nada era óbvio.
Junho de 1940. Três horas da manhã. Para Walsh são sempre três da manhã. O sol não nascerá tão cedo. Walsh tem suores frios, a rodagem de They Drive by Night (Vidas Nocturnas) não corre nada bem. Erros de casting ou mau ambiente, não sabe. Um filme com George Raft e Ann Sheridan já é um pouco antiquado, mas, num flash, Walsh dá-se conta que o que não corre bem são Bogart e Lupino. Os dois ainda não são estrelas é esse o problema. De qualquer modo quatro actores é demasiado. Um ano depois, não mais, Raft simplificar-lhe-á a vida ao recusar High Sierra. Bogart aceitará. Conhecemos o que se segue. Ainda não aconteceu. Ainda não.
“Três horas da manhã”. Estas são as primeiras palavras de The Long Hawl, o romance de Bezzerides publicado em 1938 a partir do qual Jerry Wald e Richard Macaulay escrevem o argumento de They Drive By Night. Sob contrato com a Warner, Walsh aceita o projecto. Nessa mesma noite, arrepende-se. “Se ao menos tivéssemos vindo ajudá-lo. Mas ele soube que ninguém viria a tempo. Permaneceu assim de costas, tentando respirar a fundo.” Três horas da manhã. Bezzerides tinha decidido o final. Demasiado tarde para mudar de opinião. Demasiado tarde para morrer.
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Alguns filmes merecem a sua lenda. Alguns meses após o fim da Segunda Guerra Mundial, Walsh filma Objectivo, Burma!, um dos seus filmes consagrados ao conflito que opôs os americanos aos japoneses pelo controlo da rota estratégica que conduzia à China. De um ponto de vista estritamente militar, Objectivo, Burma! é de uma tal simplicidade, de um tal didactismo documental, de uma precisão e transparência tão extremas que terá servido, ao que parece, como manual de instrução militar aos soldados israelitas. Mais do que uma historieta, é preciso ler esta lenda (sobre Walsh, há poucas lendas) como uma tradução do artesanato walshiano, uma mistura de onirismo fantástico e de hiperrealismo convulsivo, compulsivo, maníaco. Só há Mizoguchi, fantasma de algumas luas vagas num céu carregado, defunto (o céu da versão francesa dos bairros pobres, a crença no “cinema”, um conto como outro qualquer), para atingir tal transparência onírica, longe das chuvas ácidas do cinismo. No fundo, o que haverá de mais próximo da saga mizoguchiana (A Imperatriz Yang Kwei Fei, Tales of the Taira Klan) do que a eterna epopeia walshiana (A Escrava, Mulher Rebelde)?
Em Objectivo, Burma!, o seu mais belo filme, Errol Flynn passeia os seus elegantes langores, um tanto sulistas, um tanto alemães. Nem um só rasto de mulheres, evidentemente, neste poema guerreiro que passa estranhamente da calma ao nervosismo, do riso à angustia, sob uma luz idealmente translúcida de James Wong Howe. Nem Coutard nem Godard tinham ousado iluminar de uma só vez esses grupos de soldados japoneses aterrorizados no sopé de uma colina. Sob um céu birmanês, chovem milhares de pára-quedas. Imagem surrealista, de uma beleza ridícula, quase soviética, quase “donskoiana”[1]. No plateau, Raoul Walsh dá uma lição de cinema mudo. Fechou o olho e os técnicos pensavam que dormia. Ninguém, contudo, ousa elevar a voz. E se o outro olho, aquele que ele às vezes mascara com uma pala, outras com um simples pedaço de algodão os observasse?
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Um belo dia, ou talvez uma noite, ele adormeceu. A águia negra era ele. Apenas uma águia negra é temerária o suficiente para contar duas vezes a mesma história. Nesse dia, Raoul Walsh, a águia da pala negra decide refazer High Sierra, um filme inultrapassável, uma tragédia imperial que apenas os japoneses tinham apreciado (foi Walsh quem o disse em Agosto de 1963 ao futuro enviado especial do Libération), e isto porque gostavam de filmes tristes que acabassem mal. Por honra, por fazer berrar de prazer mais uma vez os belos japoneses, Walsh decide fazer o remake impossível de High Sierra, contentando-se em transformar o fundo policial num décor de western. Estamos em 1949, Joel McCrea substitui Bogart, Virginia Mayo sucede a Ida Lupino, e o filme chama-se Colorado Territory. Sete ou oito anos depois de High Sierra, um homem perseguido esconde o seu corpo ferido numa antiga vila espanhola, ocupada em tempos pelos índios, devastada por um terramoto, a cidade da lua. A sua noiva, Virginia Mayo, tenta dar-lhe uma última chance, uma chance que ele não terá, não terá nunca.
De Virginia Mayo não diremos grande coisa. Walsh filmou-a quatro vezes, Boetticher, Dwan e Hawks uma, isto deve chegar. De Joel McCrea, lembraremos que ele entra no belo filme de Sam Peckinpah Os Pistoleiros da noite (Ride The High Country). Era um dos melhores amigos de Jacques Tourneur e o seu actor favorito. Entra em Dia e Noite (Wichita) e em Stranger on Horseback mas é sobretudo graças a ele que Tourneur filma Stars in my Crown, o seu único projecto pessoal, o único ao qual foi fiel. Apenas alguns meses após O Facho e a Flecha (The Flame and the Arrow) Tourneur filma Stars in my Crown sem se dar conta de que a sua cotação como cineasta tinha baixado. “Receberás menos, Mr. Tourney”, preveniu o Estúdio. “Esse filme, faço-o de graça”, respondeu Tourneur. Nunca mais terá um orçamento e um salário como o que teve em O Facho e a Flecha. Esta humanidade poética de Jacques Tourneur, Joel McCrea transmite-a em Colorado Territory. Walsh supera-se. O que quer dizer que faz mesmo melhor do que no original.
7
Na cantina um chefe índio com nariz de courgette madura empanturra-se de beringelas ainda mais maduras e costeleta. Noutra mesa um cavalheiro californiano finge remover o pedaço de algodão que tapa desajeitadamente o seu olho morto. É um tique nervoso, apenas um tique. De tempos em tempos, Raoul Walsh, porque é dele que se trata, põe-se a esfregar freneticamente esse olho cego como se o quisesse arrancar da sua órbita invisível. Estamos a 13 de Agosto de 1963, no plateau da Warner durante a rodagem de A Distant Trumpet, esse belo western intemporal que será o melhor dos últimos filmes dos cinco zarolhos de Hollywood (dizemos isto mas às vezes é o filme de Lang ou de Ford que preferimos, outros dias pensamos que é o Tex Avery; por André de Toth ninguém mexe uma palha).
-Horatio, tens a certeza que foi 1963?
-Escuta Mamie, apesar de seres uma Stover estás a confundir 1964, o ano da estreia de A Distant Trumpet, com a data da sua rodagem, nove meses antes, em 1963.
-É verdade que ele não dirigia os seus actores, meu Hornblower querido?
-Sim e não. Ele fingia não se preocupar com nada, como se fosse apenas um realizador qualquer encarregado de vigiar a boa marcha das operações. Ele sabia o que era um western, e como nós não sabíamos, víamo-lo como um contramestre se quiseres.
-Horatio, tu exageras como sempre.
-Eu estou abaixo da verdade verdadeira queres dizer.
– E Troy Donahue? E Suzanne Pleshette? Não foi ele mesmo, se bem me lembro, que os juntou, esse casal de adolescentes que arrulhavam longe dos holofotes.
-Sobre isso também estás enganada. Ele dizia que eles eram dignos de Errol Flynn e de Virginia Mayo, ele tinha um ar sincero.
-E se isso fosse apenas para desempenhar o papel de contramestre, para ser bem-comportado com os seus patrões da Warner?
-Sobre isso, Mamie, acertaste na mouche. Mesmo aos sete anos, em 1963, eu achava suspeito esse entusiasmo que tinha pelo louro efeminado de Troy. Na verdade, ele só gostava do grande índio com o enorme nariz. Esse, não parava de o mostrar, tinha orgulho de o ter encontrado.
8
Bogart esticou as suas pernas cansadas. Preparava-se para morrer. A pequena Lupino, no sopé da montanha, velava-o. Afinal de contas é incrível como as mulheres, as mães como as amantes, velam a morte dos seus filhos e dos seus amantes. Era High Sierra, claro.
– Queres dizer é o regresso do mesmo. Os diálogos até dizer chega, sim? A coberto de um folhetim Walsh, ele ainda está a fazer a sua autobiografia.
-E se ele tivesse inventado para nós, nessa altura e em directo, a pós-crítica?
-Não estás a ser clara, Clara.
-Lembra-te, de 55 a 65 os futuros cineastas dos Cahiers inventavam a política de autores, tão disseminada hoje em dia que esquecemos as querelas a que deu origem.
-E então?
-Num primeiro momento, era preciso acreditar na ideia de que o autor de um filme era o cineasta. E num segundo momento, fazer a divulgação de outra ideia – Godard reconheceu-o mais tarde – a saber que o autor, o verdadeiro, não era tanto o cineasta mas o jornalista que o tinha inventado, este disparate da política de autores.
– É freudiana essa ideia. O autor não seria Walsh, desprezado à época por toda a crítica de cinema mas um crítico mutante, Godard por exemplo, prestes a inventar Walsh aos olhos do mundo e que diz: “Sou eu, o autor, o cineasta que há-de vir, vocês vão ver o que hão-de ver”. Claire, é brilhante a tua ideia.
Fez-se um silêncio no plateau. O senhor Walsh comia o seu cachorro quente. Ele comia sempre o seu cachorro quente em silêncio. O telefone tocou, era Paris.
-És tu? Então, o teu primeiro filme, vais fazê-lo ou não?
-Raoul, não tenho tempo. Estou prestes a inventar o pós-jornalismo. Depois do maneirismo e do pós-cinema triunfarem é agora o tempo da pós-crítica. O herói do futuro, vivo ou morto, será o jornalista.
-Vens ver as rushes do High Sierra esta tarde?
-Raoul, estás a brincar, sabes com quem estás a falar?
9
Árido, Walsh, queima ao sol. A Caminho da Forca é o terceiro tomo de um trágica trilogia que lembra o que o western deve ao único cineasta mizoguchiano da América – como o deve a Dwan, a Lang, a De Mille, a Fuller, a Ulmer, a Ludwig, mosqueteiros desse género primitivo por excelência. Estes sete, como o seu nome próprio a tiracolo (Raoul, Allen, Fritz, Cecil, Samuel, Edgar, Edward) merecem a sua espada de mosqueteiros do rei hollywoodiano, D. W. Griffith.
-O western é o cinema pós burlesco por excelência, não é?
-Sim, Claire, o espanto empoeirado, as líricas libertinagens, os abraços de lábios nus.
-Tu és amoroso, destilas uma sentimentalidade pegajosa. Sente-se o esperma e a lixívia nas entrelinhas.
-Walsh é o cineasta do gasto de energia, do excesso, isso cai bem. Mas ele não gosta de menininhas, nem das marias rapaz como eu.
– A tua Lolita engataste-a nos corredores do jornal, toda a gente o sabe.
– Claire, a vantagem das estagiárias é que podemos remexer nas suas cuecas, a violação iniciática, elas sabem o que é.
-Metes-me medo, a tua vida é um deserto. Virginia Mayo, tu estás tão cego por ela que nem sequer lhe conseguirias acariciar o ombro. Kirk Douglas ao menos protege-a com os seus braços musculados.
”A covinha do Kirk Douglas, sentindo-se examinada, baixou os olhos”. Walsh também. Walsh baixa sempre os olhos. Enfim, o pobre tenta. Ele faz o que pode. Walsh faz sempre o que pode. A Caminho da Forca não é tão bom nem como o primeiro volume da sua trilogia trágica Pursued (1947), beliscão psicanalítico com Mitchum no seu mais belo papel, nem como Colorado Territory (1949), remake walshiano do inultrapassável High Sierra que ele contudo ultrapassa. Kirk Douglas conduz um velho homem à cidade onde provavelmente será enforcado. Por amor a Virginia Mayo, ele salvará este falso culpado perfeito, perfeitamente interpretado por Walter Brennan. Dez anos antes de Rio Bravo, ai está, aí está já.
– É o Stumpy, é ele.
-Velhice, sim.
10
Com um argumento perfeito e um orçamento de sonho, o último dos sete filmes de Raoul Walsh com Errol Flynn, Rio de Prata, é talvez o seu melhor filme. A dez anos de distância de Rio Bravo, o western adulto e pós-moderno de Howard Hawks, que fecha de uma vez por todas a idade de inocência hollywoodiana, uma personagem aristocrata Errol Flynn, permite-se ter a complexidade e ambiguidade dos John Wayne e Dean Martin que hão-de vir. Dizer que Walsh estava à frente é pouco. Em relação a Hawks e ao fim da grande decepção monocromática sobretudo.
-Tu vais demasiado rápido, querido, ninguém te está a seguir.
-Claire, tu percebes, não?
-Não estou segura, meu amor. Improvisas as tuas teorias tão rápido que elas esgotam-se mesmo antes de me tocarem.
– No entanto, sinto que estás excitada, meu amor.
– Estava excitada quando cheguei ao escritório, mas não foi por tua causa. É precoce, é a Primavera. Como se Ozu, o velho Ozu me lubrificasse a alma.
-O velho idiota só amava a sua mãe. Eu odeio-a, essa cadela. Ela fez-me Cagney, ela amou-me demasiado. O seu calor era branco, demasiado branco. O inferno era ela.
-E a mãe de Errol Flynn quem era?
-Quando perguntei isso a Walsh em 1963 ele empalideceu. Ele sabia que a ambição desmesurada de Errol Flynn no Rio de Prata, esse sentido do ganho e da perda que Bataille tinha adorado, ele não o tinha apenas reservado para Ann Sheridan. De resto ela já estava arrumada. A mulher alheia, a esposa de Bruce Bennett no filme, é sagrada. Não é para tocar, é como se fosse a sua mãe, essas coisas contam.
Claire sabia que ele voltaria a falar do Rio de Prata dentro de dez dias. Ela estava molhada, toda molhada. Ela estava molhada da cabeça aos pés. Tudo e nada, nesse instante, pareciam o mesmo. Entropia, cara entropia. “Potlachização”[2] do mundo e todo o espalhafato. No andar debaixo, Lacan pegava no telefone. “A mulher não existe”, disse. Mas isto, Walsh sabia-o. Há já muito que o sabia.
11
Na sala de aula espalhou-se um frio à chegada do professor. Importa dizer que este professor não era um qualquer. À época, em Abril de 1957, Henri Agel reinava enquanto filósofo cristão e sobretudo enquanto único professor de cinema em todo o mundo. E sim, é assim mesmo, jovens. Os tempos mudam, vocês falam nos corredores, sonham com grandes mamas, e a lua, essa, faz o seu cinema. Ele não espera por vocês, a lua. Agel estava irritado. Ele rabiscava a giz um assunto impossível para os borbulhentos dos fifties: “A relação entre o cinema de Raoul Walsh e o sentido do sagrado, visto sob o ângulo da tragédia shakespeariana e da noção de potlatch”. O problema é que os Walshes não os tínhamos visto. Vagas recordações de Errol Flynn em Gentleman Jim, uma noite no cineclube na escola de Voltaire, e é quase só isso. Nada, não sabíamos nada.
Na aula apenas um aluno recusava ceder ao pânico. Descontração inglesa, magreza erudita, sim, sim, era Daney. Ele sim sabia tudo. Ele sabia mesmo de cor as aulas que Agel ainda não tinha dado. Gidel desenhava a um canto uma caricatura assustada (Agel com o seu crucifixo entre as pernas e uma gota de suor na testa), quanto a mim, era demasiado imbecil para perceber que em relação aos filmes, sobretudo com os grandes filmes, podemos dizer não importa o quê e o seu contrário e isso é sempre verdade. Por exemplo, Walsh é controlado, meticuloso, mas é também o seu exacto contrário, os ataques epiléticos, a desmesura, o amor destrutivo. É shakespeariano logo habitado por histórias de pilas, histórias de homens, mas é ao mesmo tempo o menos homossexual dos cinemas, um cinema de género, é isto e basta. Daney sabia isso. Ele sabia isso. Sem ter visto Jornada Trágica, ele sabia que em 1942 os americanos já faziam filmes de propaganda: neste, cinco heróis de passagem (Errol Flynn, Ronald Reagan, Arthur Kennedy, Alan Hale, Raymond Massey) conquistavam Berlin para fazer explodir uma fábrica. Na noite escura, Walsh filma o seu combate. Não há mulheres.
12
No cinema não é preciso tomar os nossos desejos por realidades. Em Raoul Walsh, ou, La saga du continente perdu, um bom livro de iconografia sumptuosa publicado por Dominique Païni e pela Cinemateca Francesa, um certo Michael Henry Wilson escreve algumas linhas a propósito de The Man I Love que não resistimos a citar integralmente: “Quando Ida Lupino contempla as mãos de Bruce Bennett a tocar piano, a intensidade do grande plano sugere que ela as imagina percorrendo o seu corpo com igual destreza”. Nunca mais nenhum outro grande plano sugerirá tal intensidade. Que os olhos dos homens imaginem no escuro de uma sala demasiado escura que o desejo de uma mulher coincida por uma vez exactamente com o seu, podemos admitir. Um grande plano é um grande plano. Já é bom que seja grande. É já bom que seja belo. Mas ele não pensa em nada, o grande plano, sobretudo a imaginar que um pianista-espectador o acaricia com as suas mãos de especialista.
Os grandes planos não pensam, Walsh sabia-o. Ele não sabia grande coisa, mas isto sabia-o. Sabia também que Ida Lupino era uma mulher sexy. Cineasta walshiana, feminista atípica, ninfomaníaca tardia também: podemos testemunhar que aos 50 anos, no plateau onde realizava um telefilme que não lhe interessava muito evitou o entrevistador insistente para fornicar com um louro de trinta anos pronto a satisfazer os seus desejos mais insignificantes. Em The Man I Love não é Ida Lupino que canta. Ela é dobrada (por Peg La Centra, uma dessas vozes anónimas e aveludadas, que dá às canções de Gershwin, Jerome Kern, ou Oscar Hammerstein aquele erotismo sorridente dos anos 40). Ela é dobrada, a Ida Lupino mas é ela que abre os lábios. Os lábios das mulheres foi algo que sempre interessou a Walsh. Os lábios de Jane Russell em The Revolt of Mamie Stover, os de Yvonne de Carlo em Sea Devils ou em A Escrava, os de Joan Collins em Ester e o Rei, os de Jayne Mansfield em O Sheriff e a Loira. Os lábios de uma mulher, Walsh não lhes resistia.
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James Cagney tinha acabado de fazer 40 anos quando filma The Roaring Twenties, a primeira vez sob a direcção de Raoul Walsh. O realizador era um pouco mais velho, 52 anos exactamente. Se a idade de Cagney e de Walsh é tão importante é porque os quatro filmes que fazem juntos, entre 1939 e 1953, formam o nó vital de um processo criativo ininterrupto, o desencadeamento de uma tempestade de cinema que tão cedo não iria parar de nos chover em cima. James Cagney, o dançarino sob o efeito de ácido, o epilético mundano, viria a encontrar-se com o cineasta do esperma, do impulso, da perda. Em 1939, Bogart também ele faz 40 anos. E ele surge, também num timing perfeito, em The Roaring Twenties. Com Walsh, Bogart vai fazer os seus melhores filmes The Roaring Twenties, High Sierra, Sem Consciência ou They Drive By Night mas aquele poderia tê-lo dispensado. (Ao contrário de Hawks, que não teria conseguido fazer triunfar À Beira do Abismo e Ter ou Não Ter sem Bogart.)
Onde é que queremos chegar? Aqui. Walsh teve alguns “modelos” sublimes, Errol Flynn (sete filmes), Bogart (quatro filmes), George Raft (três filmes) Rock Hudson (três filmes), Aldo Ray (dois filmes), John Wayne (dois filmes) e, claro, Clark Gable (três filmes) mas nenhum destes “modelos” substituiu a função viva de James Cagney. A Fera é o filme que nos ocupa hoje. Ocupa-nos totalmente. É o último dos quatro filmes que Cagney filma com Walsh e sem dúvida o menos bom. Um Walsh “menos bom” é qualquer coisa. O Technicolor estridente de Harry Stradling, a música pesada de Franz Waxman, a sensualidade selvagem de Anne Francis. Em A Fera, Cagney força sobre a demagogia da sua personagem, o homem político largado na arena. O filme não tem nem a violência extrema de The Roaring Twenties nem a desmesura de Fúria Sanguinária, da qual voltaremos a falar adiante. É possível ver na obra o esgar walshiano, essa marca desfigurada. Apenas Gary Cooper, cúmplice num só Walsh, Distant Drums, teve a elegância de James Cagney. Isto é pouco para dizer o quanto sentimos a sua falta.
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Fúria Sanguinária. Onde reencontramos James Cagney, o mais elegante dos actores walshianos, o mais imprevisível. Sobre as aventuras do mutante eléctrico, desse calor branco de um ranger sob o efeito de ácido, lembraremos que elas terminam em horror e chamas e que isso é o happy end mais belo do mundo: “Made it Ma. Top of the World.” O homem não arde num campo – é demasiado branco para isso – mas escolhe o seu campo, aquele onde partirá em fumo no tecto do mundo. “Top of the World, bitch”. Belo título em francês L’Enfer est à Lui, pela imagem da irrisão edipiana da história e da personagem. Mise en scène altamente matemática, a única capaz de captar a histeria dos homens, o estremecimento dos corpos, a loucura. Estilo formidavelmente bastardo, entre o hiperrealismo documental e o onirismo de metralhadora, sem equivalente desde a morte de Charles Spencer Chaplin e de Samuel Fuller.
Fúria Sanguinária, para aqueles que o tinham esquecido, segue uma paixão patológica bigger than life entre um gangster meio louco, acometido de horríveis dores de cabeça para as quais não tem palavras (sim, apenas uma, ”Ma”) e a mulher da sua vida, a sua mãe. Com um tema tal como evitar o pathos? Com um argumento assinado por Ben Roberts e Ivan Goff que já tinham escrito os diálogos asperamente sentimentais de A Escrava, Walsh embarca o espectador, ou o que dele resta, numa verdadeira coreografia de afectos que se está nas tintas para o ênfase ao Actor’s Studio. Os super-heróis de Stan Lee não estão longe disto, os Monstros Digitais de Digimon também não, reenviados ao seu autismo de mutantes adolescentes, às suas tagarelices de costureirinhas warholianas neste universo de “nomadismo generalizado”, para retomar a bela expressão de Thierry Jousse nos Cahiers du cinéma. Não diremos tanto das tags de Tag Gallagher nesse mesmo número 555. Se é bom revisitar os clássicos que ideia esta de exaltar desta forma Fúria Sanguinária, para poder ver a sua quarta estrela. Quando os americanos decidem ser idiotas são-no mesmo. Sobre o autor de Fúria Sanguinária, os Cahiers também não têm a sombra de uma sombra de uma ideia. Melhor procurar o número dedicado a Walsh da Revue du Cinéma. É o número 254, um número de culto assinado pelo amigo Simsolo. Sim, Noël Simsolo. O cineasta, o argumentista, o autor de romances policiais, o homem da rádio, o crítico de cinema. Em Novembro de 1971 este conjunto de 70 páginas sobre Walsh (sim, setenta) custava quatro francos e cinquenta. Hoje em dia quem sabe quanto custaria. Seja como for, valia-os bem.
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Nunca falar de cinema. Ele disse-o. Ele escreveu-o. Mas ele estava ali, o velho idiota, prestes a explicar a um jovem idiota que há filmes que servem de lição: “The Leopard Man, dizia, não ensina nada, mas podemos pedir-lhe emprestado uma ética do cinema, o que é difícil fazer com os Straub – demasiado terroristas, demasiado dogmáticos – ou com Renoir – demasiado pessoal e demasiado manipulador para ajudar a decifrar o mundo”.
-Não sei onde queres chegar.
-Claire, é preciso amar Walsh porque ele ajuda-nos a melhor ver o mundo.
-Tu queres dizer o mundo que lhe pertence ou o mundo dos teus braços?
-O mundo dos meus braços é o mundo do cinema. É só isso que conta entre nós. Nós somos de celulóide não de mármore, lembra-te disso.
-Um filme como Gentleman Jim ajuda-nos a quê?
-Esse é ainda mais fácil de compreender e amar hoje em dia. Scorsese, estás a ver quem é?
-O baixote ítalo-americano? O drogado? O maluco por cinema?
-Sim, esse. Viste o Raging Bull?
-Aquele em que o Robert De Niro engordou 800 quilos?
-Sim, sim. A câmara com os ralentis, toda essa masturbação sentimental e maneirista que conduz directamente aos piores legoismos de Wong Kar Wai (hei-de explicar-te um dia em detalhe essa hipertrofia da textura e da superfície, esse efeito infantil, esse efeito Lego que contamina tudo o que ainda chamamos de “cinema”, do Chéreau londrino a esse filme de culto para costureirinhas apaixonadas que é Requiem for a Dream).
-E então Raging Bull?
– Raging Bull prova a cada segundo que Scorsese, que conhecia Walsh de cor, não compreendeu que Gentleman Jim, a própria existência de Gentleman Jim, tornava o seu Raging Bull impossível.
-Já não te sigo meu querido, perdi-me.
-Duas histórias de pugilistas, certo? Dois devoradores da vida, dois aristocratas plebeus incrustados numa sociedade da representação que os fascina aos dois, sim?
– Mas Raging Bull é um dos melhores Scorsese, um dos menos adulterados, um dos mais frontais, dos mais clássicos.
-Faz-se tarde Claire, tu cansas-me com os teus disparates. Falamos de novo na quinta-feira?
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Ele tinha-se aproximado de Claire e passou a mão sob a sua t-shirt. Ela sobressaltou-se. Bem feito para ele, ela tinha vindo ouvir falar sobre cinema, e não para ser apalpada nos seios. Ele pôs-se a falar-lhe docemente destacando cada palavra como se a desfolhasse.
-Nada está mais afastado do egoísmo que o cinema de Walsh. Ele pode ser pretensioso, rabugento, mas jamais egoísta. Olha para Gentleman Jim por exemplo, a celebérrima história de boxeur Jim Corbett. Este tipo dá e leva (leva cada uma na tromba…) o egoísmo não o conhece. Errol Flynn dá-lhe uma elegância ora carnal, ora espiritual, sensual e abstracta, uma elegância onde a pele, a textura da pele é tão importante como o corte das roupas, das pregas.
-Ao ouvir-te é de crer que ele filma o Errol Flynn como uma rapariga?
-Isso aborrecer-te-ia, Claire. Encaixas mal que um sedutor como Errol Flynn, um macho, um caçador possa ser dragqueenizado pela transparência sonhadora da fotografia de Sid Hickcox. Os homens, os verdadeiros, têm o direito de se perfumar, não? Tu pões o quê, como perfume? Um Guerlain, estou certo.
-Tu tinhas-me prometido explicar a diferença entre o Raging Bull e o Gentleman Jim e não soprar-me no pescoço como um jumento com o cio.
– No Gentleman Jim nós não procuramos a verdade. Giramos à volta do mito, os planos são como um jogo de pernas ligeiro, aéreo. Jim sonha interpretar Shakespeare, Jake em voltar a ser fino. Por um lado, tens um cinema magro, ainda chorão que procura uma forma de vida sobre o declínio, herdeira do século XIX. Por outro lado, é um cinema obeso, de som artificial, que se contenta com efeitos e socos (e o talento de Robbie Robbertson para a música não muda nada). Minimalismo walshiano, virtuosidade “scorsesiana”. Cinema instintivo, carnal, contra um cinema de escola, de um jesuíta do Bronx.
-Enervas-me. Estás de pau feito ou quê?
-O anti-egoísmo de Walsh contra o legoismo de Scorsese, começas a perceber?
-Pára com isso, estás a fazer-me cócegas.
-Falo-te amanhã do legoismo, prometo.
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Como explicar a um rapaz ou a uma rapariga que um Walsh não se pode legendar? Silver River, por exemplo, pertence a um tempo em que o espectador, o sujeito, o proletário, via e ouvia o filme em directo. Deveríamos chamar a isto a idade da inocência. Ou melhor, da crença.
-Já não consigo acompanhar, meu querido.
– Se tivesses dito em 1957 a um jovem de 15 anos, do secundário, que o Errol Flynn ou o John Wayne era dobrado em francês ele ter-te-ia dado um murro na boca. E ele teria tido razão. Ele ia pensar que estavas a gozar com ele. Para este rapaz, (eu sei que é impensável para ti, tu és uma menina de anos extasiados e não podes compreender), o Errol Flynn falava para ele, só para ele. E em francês. O nível de identificação, o nível de crença , se preferires, era intenso. O tipo batia-te se o fizesses duvidar disto nem por um só segundo que fosse.
-Se eu tivesse quinze anos em 57 jamais te teria esbofeteado meu amor. De resto mesmo quando metes as mãos nas minhas cuecas, e sabes como eu não gosto disso, tu podias ser meu pai, eu não digo nada.
-Eu estava a falar de um rapaz, Claire. As raparigas não existiam em 57. Ou pelo menos não iam ao cinema. Ou então baixavam os olhos. Ou então calavam o bico.
-Já não estamos na época da crença, estamos na época da cultura, é isso? Isso é para os ricos, é isso? Então já não há nada a fazer.
-O “cinema”, sim, acabou. Olha para Silver River, por exemplo, ele nem sequer é a cores como as peças da Lego. E contudo o efeito lego está lá.
– Saturas-me com a tua “legoização”, meu amor. E Walsh? Tinhas prometido explicar-me.
Falar-lhe de jovens proletários, de rapazes jovens, a ela, à rapariga, isso tinha-a excitado. Ela viu as suas pálpebras crescerem. Ela não gostava disso, aliás mesmo nada. Ela já não precisava de fazer perguntas, de qualquer forma já tinha compreendido tudo. Não era nada parva a pequena. O legoismo ela percebia. Ela tinha crescido com os Lego, agora… O legoismo é como ver a gélida fotografia que Sid Hickox fez para Errol Flynn em Silver River, uma fotografia menos sonhadora que a de Gentleman Jim, mas vê-la com o declive colorido e o brilho das melhores peças da Lego. O cinema hoje é suporte/superfície e toda essa confusão. Para o sonho, tenta mais tarde.
-Não tinhas nada que acreditar, meu velho, diz a Claire.
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A playlist cinéfila não nos cansa. Tag Gallagher continua (Cahiers du Cinéma, nº 555, página 71) com as suas tags que mancham de asneiras americanas a filmografia walshiana. Se ele só deu uma estrela, a estrela do desprezo, a Os Nus e os Mortos, já com Battle Cry, a saga guerreira que o precede três anos como uma irmã deficiente e prematura, acertou na mouche.
-Nós gostamos sempre desses um pouco mais. Tu não és suficiente louco para mim.
-Sou demasiado queres tu dizer.
Ele estava pronto a morrer pela sua mãe. Ela tinha a pele tão macia. “Top of the World, Ma”, pensou. Ele guardou isto para si e baixou a cabeça. Falar desta forma de Battle Cry era bastante. Os filmes de guerra são duros como tudo. Ele estava completamente fraco a um canto. Deslizou pela noite para melhor pensar o que iria dizer à neta, à sua neta, sobre Battle Cry.
-Aldo Ray, fala de Aldo Ray.
Era Claire. Tinha voltado. Ele tinha conhecido outras Claires antes dela. A beleza seca, fordiana, de Claire Trevor (Stagecoach), Claire Bloom que dançava para Chaplin (Limelight), a tez ruiva faulkneriana de Claire Simon, a sua inteligência ácida. Talvez fosse ela, no fundo, que mais se parecesse a Claire, à sua Claire. Os dezassete anos daquela a quem contava os seus sonhos cinematográficos, era na sua cabeça que ela os tinha.
-Adoro quando falas de cinema, meu amor. Mais uma vez.
Outra vez, ela dizia sempre outra vez. Ela talvez fosse uma mulher afinal de contas. Não esquecer de lhe falar de Marines, Let’s go, o penúltimo Walsh, terceiro tomo desse tríptico guerreiro. Tom Tryon aí está genial.
Contar sobretudo essa história que se passou há vinte e quatro anos num local mal frequentado da baixa Hollywood, uma cena lasciva que veio a lume nesse folhetim Walsh apresentado como pura hipótese, num dia mais sexual do que era hábito. A cena passa-se numas termas hollywoodianas, numa festa organizada por Douglas Fairbanks em 1922. Não era uma orgia, apenas uma festa louca. Buster Keaton rejeitou-a, Griffith também. Lubitsch aceita, evidentemente. Chaplin insiste em vir com os seus quatro assistentes. As pessoas esperam Raoul Walsh que tinha acabado de realizar uma cena de acção uns metros mais longe. Ele chega enfim e o fato de banho cai-lhe ante o espanto dos convidados. Chaplin para Walsh: “Raoul, há aqui lugar para ti, mas não para o teu melhor amigo.” Jean de Limur, um dos quatros assistentes de Chaplin contou esta historieta a Pierre Rissient, que a contou a toda a gente imediatamente.
A pequena impacientava-se. É quem, Rissient?
-Um amigo de infância.
-E então, Battle Cry? Tinhas prometido.
-Argumento de Leon Uris, a partir do seu próprio romance.
-O Uris de Exodus?
-Sim, sim. Warnercolour e Scope de Sid Hickox. Van Heflin e Aldo Ray. De que é que queres falar?
-Dos teus lábios, meu amor, dos teus lábios.
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Ela amava o seu pai. Amava-o demasiado. Ele fazia-a saltar sobre os seus joelhos, dizia-lhe palavras doces, palavras ternurentas. Ela pensava que isso era fixe. No Sul, no grande Sul, pensamos sempre que tudo é fixe. O seu nome de actriz, quando for grande, será Yvonne de Carlo. Mas ela tinha 9 anos, não mais. O tempo não a pressionava, não tinha pressa de se transformar numa trémula sedutora, em Yvonne de Carlo. As suas nádegas redondas, os seus lábios carnudos, os seus ombros firmes, seios opulentes, ele tinha tempo de os ver crescer. De qualquer forma, o seu futuro charme tinha-a perturbado, ela tinha-se sentido pouco à vontade nos joelhos do seu pai. O seu peito tinha estremecido quando ele lhe deu palmadinhas das bochechas. Era demasiado cedo, definitivamente demasiado cedo.
-Tu estás a descrever o início d’A Escrava, é isso. É a abertura, não?
-Claire, tu lês-me como um livro. Mas isso significa que ainda não viste o filme.
-Tu sonhas durante a noite, meu amor, e falas em voz alta. É estranho o que tu dizes à noite. A Escrava conhecia-a melhor se a tivesse visto. Tenho apenas inveja, como uma necessidade premente, uma vontade de fazer xixi, uma vontade de miúda de ver o Clark Gable quando ele a aperta nos braços no fim. Deve ser de morrer, não?
-É isso, é exactamente isso. Ele morre para a poder ter. Ela morre para ser dele. Mas não morrem de morte real, isto não é o High Sierra, aqui falta um verdadeiro happy end. A morte simbólica ainda é mais bela. O mínimo que podes fazer antes esta dupla prova de amor, do mais elevado amor, é morrer também um pouco.
-Morrer em frente a um filme, isso é mesmo teu. Tu não tens a mão no bolso quando as calças de Clark Gable se incham de desejo por Yvonne, disso estou certa.
Claire fazia-o derreter-se, tinha de tomar atenção. Um tipo não precisa de borrar-se todo assim que uma miúda lhe diz uma coisa inteligente. Daqui a dois ou três dias, ele vai contar-lhe a história da rapariga branca que se torna uma negra. E como Clark Gable a resgata, a ela, à escrava, para a poder libertar. Quinta-Feira. Vou dizer-lhe na quinta.
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É a história de um homem e de uma mulher que se resgatam um ao outro. Ela era uma jovem do Sul aristocrata. Ela torna-se negra, é vendida. Ele era rico e aceita perder tudo para conquistar o seu amor, o amor dessa negra branca que resgatou talvez para a salvar. Ela é Yvonne de Carlo. Ele é Clark Gable. Os homens e as mulheres excitados com estes dois, não podem não o fazer.
-Isso é por me veres ou tens um revolver no bolso?
-Clara, pára com as tuas citações da Mae West. Basta-me pensar neste filme para ficar excitado.
-A mim não. Para mim esta é a história de uma menina e do seu pai. Ele ama-a, abraça-a, fá-la saltitar no seu colo. “Papá, as palavras de amor que me dizes são o quê? Como é que tu me chamas?”. “Sugar and Spice”, responde o pai. “And all things nice”, completa a criança. Essa cantilena, essas palavras de amor, fazem-me molhar a cuequinha.
-Revê Peau D’âne. Nunca se deve casar com o próprio pai.
-Ah sim?
-Falemos da A Criada se quiseres. Quando eu falo de um filme, tenho a impressão que me levas mais a sério. Se parasses de reescrever tudo à tua maneira só para satisfazer os teus desejos íntimos sobre a trama de relações sentimentais entre a criança e o seu pai, recordar-te-ias desta cena, ao início, onde ela lhe suplica para que ele lhe diga de novo essas palavras doces, “Sugar and spice, and all things nice”, todas estas coisas açucaradas, e onde ele a repele, chateado com a sua filha crescida, a sua menina já demasiado grande, ainda queira brincar no seu colo.
-Tu és perverso, ela quer amor só isso.
-Tu decepcionas-me Claire. És pequena e já és como as outras. O desconforto sabes o que é? McCarey, conheces? Um corpo demasiado grande, sabes o que é?
Ela baixou os olhos. A Criada, ela sabia-o, era a história de uma rapariga largada pelo pai e que encontra outro. Ele resgata tudo. Mesmo a sua escuridão, ele resgata-a. Como é que ela não havia de amar este homem para toda a vida?
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O problema de Manpower é Marlene Dietrich. Essa mulher não é uma mulher. Uma BD kitsch daria bem conta dessa improbabilidade transgender dessa queerização precoce, ao contar Marrocos de Sternberg do ponto de vista de um travesti, Gary Cooper, e de uma lésbica, Marlene. Isso funcionava, era bonito. Dez anos depois de Manpower, Marlene tornará também improvável Stagefright, com Hitchcock porque ele vai conseguir “gracekellyzá-la”. Marlene, mulher fatal, caricatura de mulher, o que é que um tarado sexual como Walsh podia fazer na cama do cinema dela?
-Lá recomeças tu. Pára com isso, Walsh não passou a vida a perseguir as mulheres como um obcecado. Tu dizias mesmo que ele preferia os cavalos.
-Ouviste mal, Claire. Eu disse que ele preferia os cavalos ao cinema. As mulheres, o cinema, eu sei que ainda és pequena mas não são a mesma coisa.
-Para Sternberg, a Marlene era a encarnação da mulher, não era? Ela era sublime, não era? Ela não cozinhava para Gabin como qualquer mulher apaixonada que se preze?
-Tu confundes a vida e o cinema. Olha para dentro das tuas cuecas, o pequeno pássaro vai sair.
-Não metas as mãos, metes-me nojo, detesto quando és assim. E n’ A Sede do Mal com Welles, a Dietrich como velha puta não ia mal ou ia?
-Sublime, ela estava sublime. Quase tão perfeita como em Angel de Lubitsch. Mas o seu maior filme, para ser mauzinho eu diria o seu único grande filme, é Rancho Notorious com Fritz Lang, o esqueleto do cinema clássico, a versão desossada de Johnny Guitar.
-Não é esse o filme que Fritz Lang queria chamar Chuck O ‘Luck e os produtores recusaram porque diziam que não compreendiam nada?
-Sim, isso fez rir Lang. Ele disse: “E Rancho Notorious vocês acreditam que as pessoas vão compreender o que quer dizer?”
-E Walsh achas que se excitava com a Marlene?
-Sim e não. A Marlene é excitante mas para um pederasta. E Walsh não era homossexual. Ele não reprimia nem sublimava isso; os gajos não eram a sua cena. Ele teve a bela ideia de lançar nos braços da Marlene aquela bichona do George Raft. É bizarro, barroco mas funciona.
-O melhor é quando ela pinta os lábios para ele à saída da prisão.
-Não digas nada Claire, estou a ficar excitado.
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O que é que o Tourneur lhe tinha dito? “Uma flor que se colhe a si própria comete suicídio.” Ele era parvo, acreditou durante muito tempo que isso era um truque zen. Logo que saiu de uma cura de desdalailamização[3] intensiva, passou a ver o mundo de forma diferente, e percebeu que isso não era senão um aforismo de idiota. Era uma declaração de amor, uma puta de uma declaração de amor.
-O que é que queres dizer com isso meu amor? Não interrompeste o teu folhetim Walsh para dizer banalidades como esta pois não?
-Por agora Claire, o folhetim Walsh, como tu o chamas, recomeça amanhã. E ele não está perto de acabar.
-Na tua cabeça sim. E nas tuas cuecas, meu amor, nas tuas cuecas. A partir do momento em que dizes o nome dele, Walsh, ficas logo excitado.
-Eu vejo um Tourneur porque os cretinos da TCM não acharam nada melhor para pôr numa sexta-feira santa. Não há Walsh na sexta, disse o Ted Turner. Que velho idiota!
–Cat People é incrível meu amor. É cool.
– Tu conheces A Felina? É verdade que dás uns ares de Simone Simon, sobretudo quando baixas os olhos. Sim, assim, um pouco mais, é isso, isso. Se eu fosse um cineasta faria de ti uma sex symbol.
-Mesmo quando dialogas és presunçoso. Sabes que isso me chateia, pára imediatamente.
-Essas coisas meu amor não se param assim só pedindo. As coisas vão, vêm, é bom assim.
-És nojento, és um velho nojento. E o amor? Não te interessas pelo amor às vezes?
-Não queres antes dizer que só me interesso por isso? Por exemplo, Terra Sangrenta é o meu Tourneur favorito. Ou como dizem os americanos Great Day in the Morning. Terra Sangrenta só o vi uma vez. E foi há… espera… Deve fazer… ah não, é demasiado, vinte sete anos. Dás-te conta disto, Claire?
-Uma vez, só o viste uma vez? Em 1974, é isso?
-Claire pára de falar, cala-te. Baixa os olhos.
-Caramba, tu és demais. Na alcatifa, na alcatifa, nem consegues conter-te. Quem é que te atura assim?
-Tu.
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Era o fim. Claire tinha partido, só restavam as seis letras do seu nome. Não havia razão para ir longe. E se víssemos um último Walsh? Abrir o Télé 7 Jours. Pelo menos mostram a integral dos programas da TCM e não uma selecção canónica como na Telérama. Nada a dizer da Telérama, tinha vontade de vomitar. Que apaguem de uma vez por todas a televisão, esses puritanos de meia tigela, que têm a braguilha emperrada, e o mundo ficará bem melhor. A partir do momento em que os profissionais da profissão jornalística se masturbam dia após dia no Loft não sei quantas, que McLuhan lhes poderá dizer a diferença, a única diferença, entre televisão e cinema? O cinema é frio, a televisão é quente. É o talk show. É o directo. E quem diz directo (e desde 1935 sabemos que a televisão é o directo) diz imprevisto, possibilidade de imprevisto. O “Loft Story”[4] surge desde o aparecimento da televisão, é a televisão. Ele pode morrer, o gajo. Ele pode fodê-la à rapariga. Ela tem as cuecas molhadinhas, viste?
Dois Walshes, restam dois. A Caminho da Forca é fixe. O outro, Glory Alley, podíamos hesitar, talvez não valessem Virginia Mayo e Kirk Douglas exaustos no deserto. Eles passam a mão na braguilha a cada plano, é incrível.
-O velho idiota fala como ela. Ela partiu e ele fala como ela. Mesmo sobre o Walsh, o velho Walsh, algo fácil para ele pois conhece-o de cor, já está em piloto automático, não dá uma para a caixa. Vinte cinco textos de merda sobre Walsh e nem uma ideia, nem uma ideia.
-Vês, ele não consegue. O facto de ter conhecido Walsh há quarenta anos, de ter tido o privilégio de mijar ao lado dele deixou-o sem forças. Já não se excita, é isso.
– Acreditas que Walsh as fodia a todas?
– Por exemplo, a Virginia Mayo no Colorado Territory, tu consegues ver a cada plano que ele a fodia. Ele fode-a, meu Deus, como ele a fode.
-Em A Caminho da Forca ele também a fode. Como diziam os rockers negros, que já faziam alusões claras ao sexo quando o Elvis ainda não tinha 12 anos, ele é o rock.
-É agora o que é o rock and roll?
-Um movimento para dentro, um movimento para fora. Tu entras, sais, rock and roll rock et roll. E a miúda grita como nos concertos do Elvis.
Pensar uma última vez em Claire. Apenas para a viagem. No fundo, ela parecia a Leslie Caron no Glory Alley. Strip-teaser à noite, enfermeira durante o dia. Para o seu pai, atenção, apenas para o seu pai.
-Ela é strip teaser ou enfermeira para o seu pai?
-Ele é cego, meu velho. Não vê nada.
[1] Neologismo criado a partir do nome do realizador soviético Mark Donskoy.
[2] Neologismo a partir da palavra “potlatch” que designa uma cerimónia praticada entre tribos indígenas da América do Norte que se caracteriza pela renúncia a todos os bens materiais efectuada pelo homenageado.
[3] Neologismo a partir da conhecida figura de Dalai Lama.